A hybris da guerra
Sob o descanso previsível de uma população global castigada pela resiliência pandêmica, aceleram-se os desdobramentos dramáticos de um conflito que tende a redesenhar blocos de poder, alcances geopolíticos e formas mundiais de governança
O noticiário internacional sugere que as tendências bélicas entre Rússia e Ucrânia ultrapassaram o ponto de não retorno. A interrupção do fornecimento de gás russo para o continente europeu, a apropriação de fatias territoriais ucranianas pelo gigante asiático e o pedido da Ucrânia para ingressar na OTAN (a aliança militar ocidental) parecem ser – salvo reciclagem das próprias tendências – sintomas robustos de uma fase política da guerra ainda mais incendiária. A convocação de 300 mil reservistas pelo Kremlin (sob preparação para quaisquer circunstâncias de guerra) e a ruptura de negociações de paz com a delegação russa (por decreto do presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky) podem ter arrematado a irreversibilidade dos fatos, entregando o desenlace pacífico à esfera redentora dos milagres.
Se não houver recuo ou estagnação das investidas beligerantes – por força exitosa de mediações sobretudo externas –, a escalada previsível, na rediviva de uma Guerra Fria movida por disputa de território, combustível, esfera de influência e modelos de mundo, poderá progredir celeremente para o estado de hybris, a conhecida desmedida insolente da cultura grega antiga, com consequências transfronteiras indiscriminadas.
Realinhado à China, Vladimir Putin não pode falhar, sob pena de ver sua imagem como estrategista internacionalmente desmoralizada, no estirão mais tenso de sua longeva carreira estadista. Qualquer fiasco nessa direção cavará inglória não somente na história da Rússia, mas também na modernidade mundial pós-Holocausto.
De outro lado, países ocidentais liderados pelos Estados Unidos, protagonistas de sanções econômicas à Rússia em apoio à Ucrânia, sequer imaginam qualquer derrota. O vexame seria transcontinental, uma vez que União Europeia e EUA fornecem suporte militar e ajuda financeira bilionários ao país invadido pelos russos.
O horizonte da hybris na guerra conhece a infelicidade desse impasse: está liberado o caminho para a utilização de armas nucleares, a começar pelas de tipo tático, prometidas, aparentemente sem blefe, pelo mandatário da ex-União Soviética, país que conjuga capitalismo oligopolista e centralismo estatal com a posse do maior arsenal atual de destruição nuclear.
O noticiário e a historiografia futuros, descontada a desinformação estrutural como cenário bélico conexo, hão de reportar o destino deste soluço sombrio do mundo civilizado, na sesta de uma humanidade em ressaca histórica por causa da pandemia e do excesso diário de informações e imagens deprimentes por todas as telas.
Até o momento, o acúmulo de ogivas nucleares foi utilizado apenas para efeito de dissuasão, isto é, para forçar adversários a sequer iniciar agressões ou a adotar decisão de recuo estratégico, sob pena de represália de altíssima monta.
Se o saldo de perdas de soldados, armamentos e território invadido fizer o Kremlin autorizar o despejo desses artefatos na Ucrânia – e espera-se que isto seja mais um arroubo dissuasório –, o fato representará, pelo ineditismo histórico pós-1945, uma ruptura vultuosa com o modelo vigente de modernidade beligerante, que proíbe, por tratados, o emprego de arsenais nucleares. É o mesmo que dizer: encurralada pelo ocidente, a Ásia de alfabeto cirílico, com assento permanente no Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU), ensaia precedente de horror maior que o já representado pelas permissões internacionais da ordem bélica existente.
A oposição russa interna, sob contínua repressão do Kremlin e recém-laureada com o Nobel da Paz, jogará papel contributivo na contenção desse sinistro.
Seja como for, numa guerra só aparentemente local – ela acomete, com carnificina de civis ucranianos, a economia de dezenas de países, em especial na Europa –, o bloco de poder vitorioso (se de triunfo unitário se trata) tende, ao longo das próximas décadas, a herdar, sob a cooptação de um direito internacional erodido, a prerrogativa de regrar o planeta, do ponto de vista político, militar e/ou comercial.
* Eugênio Trivinho é Professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da PUC-SP.