A importância de uma regulamentação da cannabis no Brasil que inclua as associações de pacientes
Não se trata apenas de uma questão de saúde pública, mas de dignidade. Quantas mães precisarão recorrer à justiça para tratar seus filhos? Quantos idosos continuarão sofrendo com dores que poderiam ser aliviadas?
Há cerca de uma década, desde que a Anvisa passou a permitir a importação de produtos feitos com a planta da cannabis, milhares de brasileiros que dependem destes derivados para tratar condições crônicas e doenças que impactam diretamente em sua qualidade de vida enfrentam obstáculos no acesso a esses fitoterápicos, seja pelo custo proibitivo dos produtos importados, pela burocracia ou pela falta de políticas públicas consistentes.
Enquanto o poder público avança a passos lentos, são as associações de pacientes que têm garantido tratamento a crianças com epilepsias refratárias, idosos com dores crônicas e adultos com esclerose múltipla, ansiedade ou outros transtornos neurológicos. Apenas no estado do Ceará, milhares de pessoas são atendidas por essas organizações, o que evidencia um cenário categórico: a regulamentação do uso medicinal da maconha no Brasil não pode ignorar o papel essencial dessas entidades.
O movimento Ceará Saúde Livre (CSL), do qual faço parte, é guiado pelos princípios do antiproibicionismo, do combate ao racismo estrutural, da justiça social e da autonomia no cuidado. Nossa intenção é somarmos a uma luta que é histórica, e não dividir uma série de movimentações fundamentais para chegarmos onde estamos.
Desde a recente criação, essa iniciativa busca fortalecer o debate público e pressionar por políticas com objetivo de democratizar o acesso à cannabis, especialmente para os grupos mais vulneráveis. Estamos aqui para somar forças, ampliar vozes e garantir que os benefícios da planta cheguem a quem precisa, com segurança e dignidade.
Atualmente, estamos mobilizados pela aprovação do Projeto de Lei nº 1014/2023, na Assembleia Legislativa do Ceará (ALECE), que prevê uma política estadual de cannabis medicinal com acesso via SUS, produção local não comercial e incentivo à pesquisa. Essa iniciativa não é isolada: 17 estados e o Distrito Federal já possuem leis semelhantes, e o governo federal apresentou, em maio deste ano, um Plano de Ação Interministerial para regulamentar o cultivo, a prescrição e a distribuição de derivados da planta.
No entanto, um ponto crucial precisa ser destacado: as associações de pacientes já fazem o que o Estado ainda não conseguiu. Elas produzem mais de 200 mil frascos de medicamentos por ano, atendendo cerca de 90 mil pessoas em todo o país, muitas delas em situação de vulnerabilidade. No Ceará, operamos com rigor sanitário e ético, seguindo protocolos científicos e garantindo que famílias tenham acesso a tratamentos que, muitas vezes, são a última esperança.

A luta pela cannabis é múltipla e complexa, exigindo diferentes estratégias e articulações. A criação de novas frentes, como o CSL, não enfraquece movimentos já consolidados — pelo contrário, amplia os espaços de diálogo e fortalece a causa. Precisamos urgentemente de uma regulamentação que não apenas reconheça, mas integre e apoie o trabalho dessas associações, garantindo segurança jurídica, suporte técnico e uma relação transparente com o SUS.
Apesar disso, ainda vivemos sob um vácuo regulatório que deixa pacientes e cuidadores em insegurança jurídica. Enquanto a Anvisa permite a importação de produtos caros e inacessíveis para a maioria, as associações — que poderiam oferecer alternativas acessíveis e de qualidade — são frequentemente criminalizadas ou impedidas de atuar com plena legitimidade, como aconteceu recentemente no Rio Grande do Sul.
O Ceará tem a chance de não apenas ser mais um estado a adotar uma política pública humanizada, baseada em evidências científicas e no direito constitucional à saúde, mas inovar e beneficiar a população de forma direta e efetiva. Para isso, é preciso que a regulamentação não apenas reconheça, mas fortaleça o trabalho das associações, garantindo segurança jurídica, apoio técnico e integração com o SUS.
Não se trata apenas de uma questão de saúde pública, mas de dignidade. Quantas mães precisarão recorrer à justiça para tratar seus filhos? Quantos idosos continuarão sofrendo com dores que poderiam ser aliviadas? O caminho já está sendo traçado em outros estados e no plano federal. Agora, é hora do Ceará, e do Brasil, darem o próximo passo: uma regulamentação que não apenas permita sem o devido acesso, mas que inclua de fato quem precisa.
Isabela Fernandes é psicóloga, diretora da Adapta (Associação de Pacientes em Fortaleza) e integrante do movimento Ceará Saúde Livre.