A insistência na violação
Muito debatido no início do ano, o III Programa Nacional de Direitos Humanos é insuficiente. Segue sem resultados concretos o desafio de implantar um sistema nacional capaz de articular e orientar os instrumentos, os mecanismos, os órgãos e as ações nesse campo
Os recentes debates públicos sobre o terceiro Programa Nacional de Direitos Humanos (III PNDH), publicado pelo governo federal em dezembro de 2009, exige considerar o que são e em que situação estão os direitos humanos no Brasil de hoje. A questão é complexa e, na tentativa de melhor compreendê-la, a abordaremos sob o enfoque do cotidiano, do conceitual e do programático.
Cotidiano: entre violações e esperanças
O cotidiano da maioria do povo brasileiro é – e tem sido historicamente – marcado por um contexto que inviabiliza a produção e a reprodução da vida, interdita a manifestação e a expressão necessárias à participação, desmoraliza e criminaliza lideranças e movimentos sociais e ignora sujeitos.
A inviabilização da produção e da reprodução da vida se manifesta nos altíssimos graus de desigualdade e na pobreza insidiosa que atinge a milhões de pessoas, afetando de forma mais dura a negros, mulheres e jovens, entre outros grupos. A situação vem melhorando nos últimos anos – dados publicados recentemente pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, IPEA, mostram que nos últimos cinco anos houve redução tanto da pobreza extrema quanto da pobreza absoluta –, o que é motivo de alento, mas não de satisfação.
A pobreza, como já declarou a Organização das Nações Unidas (ONU), é a violação sistemática de vários dos direitos humanos e é fruto de um modelo de desenvolvimento altamente concentrador e excludente. Querer um Brasil que respeite e promova os direitos humanos requer ter na agenda central a realização de ações que modifiquem este quadro de forma sustentável e definitiva. Isso significa reorientar o modelo de desenvolvimento, o que passa por avaliação dos grandes projetos como o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC).
A interdição da manifestação e da expressão se revela na persistência da violência, assim como na alta concentração dos meios de circulação da informação e da opinião. A violência esgarça o tecido social e reproduz o medo, mantendo comunidades inteiras afastadas da convivência em sociedade – condição básica para que possam propagar livremente seus anseios e reivindicações. Associa-se a isso a alta concentração dos meios de comunicação, que reagem negativamente a todo tipo de medida de socialização ou de controle sob a alegação de que se trata de mecanismos de censura. Mas, por sua vez, instalam uma censura privada, pautada por interesses nem sempre públicos. Assim, juntos, violência e concentração dos meios de comunicação geram a interdição a milhões de pessoas, que são impedidas de participar da vida pública com sua opinião livre. Querer um Brasil com ampla participação requer adotar medidas sustentáveis para que as condições fundamentais da democracia atinjam cada ser humano, fazendo com que, a partir de suas próprias condições, ele exerça sua presença no mundo.
A desmoralização e criminalização de lideranças e movimentos sociais vêm sendo usada como estratégia para conter a organização popular e, com isso, os avanços por ela propostos. A desmoralização é uma forma de transformar lutas e pessoas em defensores do anacronismo. A criminalização é uma maneira dura de instituições que foram criadas para proteger a sociedade e seus direitos se tornarem agentes que propõe a “extinção” de organizações populares – como fez, por exemplo, o Ministério Público gaúcho em relação ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Organizações e lideranças populares são essenciais à democracia por serem a manifestação da rebeldia, necessária aos avanços da luta por direitos. Querer um Brasil que respeita os direitos humanos exige fortalecer as organizações populares a fim de que suas agendas ganhem força e possam ser pautadas na sociedade.
Por fim, o “ignorar sujeitos” se manifesta no conservadorismo persistente. Este último até aceita a diversidade social, contanto que não onere privilégios, e alguns casos inverte posições, colocando a promoção de determinados grupos historicamente excluídos, por meio de ações afirmativas, com um privilégio. Os exemplos mais cristalinos deste tipo de postura vêm se revelando no cerceamento ao acesso a territórios por indígenas e quilombolas, na proposição da inconstitucionalidade das políticas de quotas para a população negra, na rejeição aos avanços propostos pelo movimento LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e trangêneros), entre outros. O discurso da igualdade – neste caso, contraditoriamente à desigualdade real e à diversidade efetiva – é invocado como recurso de invisibilização, quando não de inviabilização, desses sujeitos sociais. Um dos resultados é a criminalização da pobreza, que atinge particularmente a jovens e negros das periferias urbanas. Querer um Brasil justo e igualitário é tomar a diversidade como conteúdo dos direitos humanos, o que passa pela implementação de medidas capazes de fortalecer os mais vulneráveis.
Conceitual: entre negação e afirmação
O contexto contraditório colabora para a baixa percepção dos direitos humanos como conteúdo capaz de traduzir uma agenda social que afirme a cidadania e, ao mesmo tempo, se torne expressão sintética dos anseios dos setores populares organizados e críticos. Isso revela uma posição paradoxal sobre o significado dos direitos humanos e, em consequência, de sua força para orientar a prática social e política.
O recente debate sobre o PNDH revela essa contradição: de um lado, os que os aceitam, quando os aceitam, apenas para si próprios ou para proteger seus interesses; de outro, os que compreendem direitos humanos como conteúdo substantivo da luta cotidiana para que cada pessoa possa ser o que deseja ser, e não como uns ou outros gostariam que fosse.
As elites insistem numa visão limitada dos direitos humanos. Pode-se dizer que ficam entre uma posição completamente negativa e que identifica direitos humanos com a proteção do que chama de “bandidos e marginais”, aquilo que de “pior” a sociedade produz. O aparente trocadilho do “humanos direitos” retoma às velhas fórmulas já experimentadas do reconhecimento restrito e que resultaram na eliminação física dos indesejáveis – o holocausto é o mais conhecido exemplo, mas a ele podem também ser somados o extermínio dos indígenas e a escravidão dos africanos. Essas posições querem fazer coincidir direitos com privilégios. Ou seja, pretendem que direitos humanos sirvam de conteúdo legitimador da desigualdade e de sua permanência. Expressam-se, por exemplo, na defesa da pena de morte, no já citado posicionamento contrário às quotas para negros, entre tantos outros temas, todos marcadamente discriminatórios e discricionários.
Alguns grupos ainda persistem em posições pautadas pelo universalismo abstrato na compreensão dos direitos humanos. São orientados por noções metafísicas que, mesmo reconhecendo a universalidade dos direitos humanos, vinculam-na à noção de natureza humana. Esta última, por seu generalismo, ignora a diversidade e resulta por tomar exemplaridades como referência do que significa dignidade. Insistem em dizer que os direitos humanos são “naturais” e “inerentes”. Essas posturas, em geral, são refratárias a mudanças significativas no campo moral e jurídico e se manifestam contrárias, por exemplo, à descriminalização do aborto e à instituição da união civil de pessoas do mesmo sexo.
Outros se agarram às normas e reduzem direitos humanos àqueles que configuram como “fundamentais”, na tentativa de circunscrevê-los na positividade estrita da lei. Trata-se de uma nova versão do velho positivismo jurídico que requer que a norma, para que possa ter vigência, seja precisa e objetiva. É claro que direitos humanos requerem proteção normativa e que as normas devem ser objetivas. Isso, no entanto, não significa restringi-los à “letra fria”. Esse tipo de visão aparece, por exemplo, quando magistrados são acusados de defenderem posições ideológicas que alargam o conteúdo da compreensão dos direitos e, especialmente quando o fazem para proteger os setores sociais excluídos.
Há ainda os que insistem que há “direitos” e direitos, uns mais e outros menos importantes, uns mais e outros menos urgentes. Ou seja, pessoas que dizem que os direitos civis e políticos são primeiros e mais importantes que os direitos sociais, econômicos e culturais, por exemplo. Numa sociedade marcada por carências, facilmente a cidadania se vê forçada a fazer escolhas, a definir prioridades, mesmo que isso não signifique necessariamente optar entre o disponível e o indisponível. Posições desse tipo abrem mão dos avanços – e das dificuldades – implicados numa perspectiva interdependente e indivisível dos direitos humanos. Elas se refletem nas opiniões de que o III PNDH trata de muitos temas, indo além do que seria a tarefa dos direitos humanos.
Por fim, vem crescendo uma compreensão histórico-crítica dos direitos humanos. Esta posição os entende como processo conflituoso de estabelecimento de condições capazes de gerar reconhecimento dos sujeitos de direitos como são – e não como uns ou outros gostariam que fossem. Defendem, por exemplo, que a dignidade humana não é uma característica dispensável. Isso não significa dizer que todo mundo nasce com ela e esta é imutável ao longo da vida, mas que vai ganhando conteúdos e conformações novas como obra dos próprios seres humanos.
Nesse sentido, os direitos humanos como conteúdo que expressa o que as pessoas precisam para viver não estão disponíveis – nem aos indivíduos, nem à sociedade, nem ao Estado. Essa compreensão subsidia a formação de agendas consistentes e que expressam os anseios das organizações populares, partindo da posição de que os direitos humanos se afirmam historicamente como luta por direitos e que têm nos sujeitos populares seus principais protagonistas. No debate sobre o III PNDH pode-se ver esse entendimento expresso largamente nos posicionamentos de organizações sociais, de intelectuais e personalidades comprometidas com o fortalecimento da perspectiva de que os direitos humanos ganham efetividade no cotidiano da vida das pessoas, como substantividade e não como mais uma adjetivação.
Programático: entre “socorrista” e sistemático
Crescem as iniciativas para que os direitos humanos ganhem força programática, ou seja, que se transformem em agenda de atuação da sociedade e também do Estado. Neste sentido, o PNDH se constitui num poderoso instrumento. Principalmente no caso de sua terceira versão, por articular diversos temas e perspectivas, além de ter sido publicado com amplo apoio dos diversos setores do governo – são 31 os Ministérios que o assinam junto com o Presidente da República – e de se pretender uma política estatal.
Este movimento é relativamente recente no Brasil e pode-se dizer que foi inaugurado pela Constituição de 1988. Nesta esteira, a comitiva do Estado e da sociedade civil que participou da Conferência de Viena, em 1993, ao retornar, construiu o que ficou conhecido como Agenda Brasileira de Direitos Humanos. Isto ensejou a implementação de várias iniciativas, entre as quais os PNDHs – o primeiro é de 1996.
A prática das políticas públicas que quer assumir a complexa responsabilidade do Estado em matéria de direitos humanos exige desenvolver ações de forma sistemática e articulada, que visem reconhecer, respeitar, garantir, promover e proteger os direitos, além de reparar violações. Ademais, determina que, considerando a natureza federativa do país, haja compromisso também dos Estados e dos municípios.
Analisando os aspectos acima apontados, pode-se dizer que as políticas públicas ainda estão longe de se constituir em políticas de Estado e de ter capacidade de resposta sistemática. O que se vê muito é a ação “socorrista”, aquela que é reativa às circunstâncias, sobretudo em se tratando de situações de violações. Soma-se a isso que a maioria das políticas públicas sequer se entende como parte da alçada de direitos humanos, não sendo formuladas nesta perspectiva.
Nesse campo, a formulação das políticas públicas ainda tem um longo caminho a percorrer para que seja orientada pelos direitos humanos. Alguns casos já avançam nesta direção, como na política de atenção à criança e ao adolescente, ao idoso e às pessoas com deficiência. Todavia, se considerarmos as pautas temáticas, como saúde, educação, moradia, alimentação, assistência, previdência, trabalho, cultura, ciência e tecnologia e tantas outras, pode-se notar que, em grande medida, elas sequer incorporaram a gramática dos direitos humanos, havendo, em alguns casos, até resistência.
No campo da execução é fundamental que se considere a centralidade do orçamento público. Mesmo que se contemple, estruturalmente programas e ações de direitos humanos, os ajustes fiscais são privilegiados, não existindo a perspectiva de direcionar os recursos públicos para a realização de direitos. Um dos principais instrumentos do ciclo orçamentário, o Plano Plurianual, por exemplo, ainda tem uma compreensão restrita dos direitos humanos, já que vislumbra apenas as ações feitas junto a grupos e segmentos sociais excluídos, atendo-se praticamente a programas e ações das Secretarias Especiais. Essa constatação mostra que ainda há muito a ser feito, considerando inclusive os compromissos assumidos com a publicação do III PNDH, para que o orçamento público traduza as intenções com a realização de políticas de direitos humanos de forma ampla e sistêmica.
A Constituição Federal introduziu importantes instrumentos para promover a participação direta da sociedade civil organizada em espaços públicos – Conferências, Conselhos e outros – a fim de que seja efetivado o controle social das políticas públicas. Nos últimos anos, mais de 50 conferências nacionais traçaram diretrizes de políticas públicas em vários temas.
Particularmente, a 11ª Conferência Nacional de Direitos Humanos, realizada em dezembro de 2008, foi um marco decisivo para avançar numa compreensão mais sistemática das políticas públicas nessa área. Além disso, o encontro traçou as diretrizes e aprovou as propostas que resultaram no III PNDH. Todavia, quando se trata de observar a centralidade do papel dos Conselhos, mesmo que existam em várias áreas e sobre os mais diversos temas, esses ainda são poucos e frágeis no campo específico dos direitos humanos. Prova concreta disso é que o Projeto de Lei que institui o novo Conselho Nacional de Direitos Humanos tramita no legislativo desde 1994 e que somente 14 Estados brasileiros têm Conselhos de Direitos Humanos constituídos, mesmo que nem em todos esses estejam satisfatoriamente em funcionamento.
A garantia da participação da sociedade no controle social de políticas públicas requer também acesso público amplo às informações, permitindo-se assim o diagnóstico de situações e mesmo condições de avaliação das ações realizadas. No que tange aos direitos humanos, ainda engatinha a formulação de indicadores consistentes, capazes de subsidiar a elaboração de diagnósticos da situação e de orientar de forma sistemática a elaboração das políticas. O acesso a informações sobre execução das políticas, inclusive do orçamento, ainda é restrito e direcionado, o que efetivamente impede o empoderamento dos sujeitos sociais que participam das instâncias, comprometendo a efetividade desses espaços.
O desafio, sugerido pelo Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH) e aprovado pela 9ª Conferência Nacional de Direitos Humanos, em 2004, ainda persiste: sem que se avance na implantação de um Sistema Nacional de Direitos Humanos que seja capaz de articular e orientar de forma sistemática os instrumentos, os mecanismos, os órgãos e as ações de direitos humanos, estaremos longe da desejada ação programática nesse campo. O III PNDH é, assim, insuficiente para que as políticas públicas sejam efetivamente pautadas pelos direitos humanos e que esses se convertam em conteúdo programático das políticas públicas.
*Paulo César Carbonari é conselheiro nacional do Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH); mestre em filosofia; professor no Instituto Superior de Filosofia Berthier (IFIBE, Passo Fundo, RS).