A militarização do Ministério da Saúde e a “missão cumprida” de Pazuello
Pazuello, sem formação qualquer na área da saúde, assumiu o Ministério mais importante na pandemia porque era necessário que houvesse uma disposição, dentro de uma cadeia de comando, de respeitar a hierarquia e assumir os riscos em nome de um “projeto ideológico”, sem responder pessoalmente às consequências desses atos
“Missão cumprida”. Esta é a resposta do general Eduardo Pazuello quando perguntado na CPI da Pandemia no Senado sobre por que foi exonerado do Ministério da Saúde. De certa forma, não poderia ser mais verdadeira e coerente essa reposta, mesmo que não seja pela razão de ter realizado um bom trabalho para a população brasileira, para a saúde pública e no enfrentamento à Covid-19. A missão que o general Pazuello cumpriu, e com vigor, foi a de conduzir o Ministério da Saúde, sem pestanejar, para uma política genocida e negacionista, de execução da estratégia de disputa de narrativa que o gabinete do ódio e o presidente Jair Bolsonaro arquitetaram para a pandemia.
Pazuello assumiu o Ministério em maio de 2020, não apenas pela ampliação do papel dos militares naquele momento do governo Bolsonaro, mas sobretudo porque o que era exigido para o cargo pressupunha assumir um risco de responsabilidade civil sem precedentes. Com a saída de Luiz Henrique Mandetta e a breve passagem de Nelson Teich no Ministério entre abril e maio de 2020, já estava evidente que a aposta de Bolsonaro para lidar com a pandemia não seria a observância das principais orientações científicas, da OMS e da lógica da preservação das vidas. Para executar essa tarefa era fundamental uma determinada lógica de raciocínio que seria colocada em prática pelo gabinete do ódio e teria como finalidade manter e aumentar a concentração de renda e os interesses de determinados setores econômicos do país.
Pois a estratégia de Bolsonaro era manter a tentativa de responsabilizar os governadores ou STF pelos problemas da pandemia, gerar uma comunicação contraditória sobre as medidas corretas de segurança sanitária (e até mesmo uma política de disseminação do vírus, segundo pesquisa)[1] e tentar sair como aquele que se preocupava com a situação econômica do país – que sabia-se desde o início que seria drasticamente afetada. O contexto dessa política formulada ainda na ausência de vacinas e com Trump à frente da Casa Branca, e seu aliado nesse discurso, tinha outras possibilidades. Desde a eleição de Biden e da entrada de Lula no jogo eleitoral de 2022, Bolsonaro mantém a política de aglomerações, mas tenta disputar o legado da vacina – por exemplo – mesmo mantendo em certos nichos das redes sociais uma política anti-vacina.
Pazuello, sem formação qualquer na área da saúde, assume o Ministério mais importante na pandemia porque era necessário que houvesse uma disposição, dentro de uma cadeia de comando, de respeitar a hierarquia, de assumir os riscos em nome de um “projeto ideológico”, sem responder pessoalmente às consequências desses atos. Em verdade, era necessária a primazia própria da hierarquia, do que a da responsabilização, do militarismo em relação à perspectiva republicana. A militarização do Ministério da Saúde terá como gênese, portanto, essa perspectiva antirrepublicana e antidemocrática.
O processo de militarização da política que temos presenciado no último tempo, sobretudo a partir do retorno de protagonismo de militares na política no governo Bolsonaro, mas que se inicia com o golpe de 2016, tem significado a própria construção de uma lógica, de valores e de uma determinada cultura política militarizada no centro da gestão governamental da presidência. Há um impacto significativo democrático nessa ocupação, porque a formação militar não é orientada para a gestão democrática de conflitos, mas pela lógica da guerra.[2]
Atualmente, segundo levantamento do TCU de julho de 2020, Bolsonaro conta com a participação de mais de 6 mil militares em seu governo, não apenas nos principais ministérios, mas na cúpula de inúmeras estatais, e em todas as áreas da administração pública. No setor da saúde, houve crescimento na ordem de 94,55% desde 2016, e no primeiro mês da gestão interina de Pazuello, foram nomeados cerca de 30 militares só no ministério da saúde. Portanto, resta evidente, que a pandemia não foi tratada como um tema central de saúde pública, com a busca pela melhor ciência e melhores especialistas, pelo contrário.
Todos os princípios consagrados no art. 37 da Constituição Brasileira de 1988 (legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência) trabalham com a ideia de que vivemos numa república e que todos os agentes públicos possuem responsabilidade administrativa e podem responder também civil e penalmente pelos seus atos. Dentro desse contexto, o papel de agentes públicos, que servem para a coletividade, é fundamental. A moralização do serviço público no Brasil e a tentativa de construção de regras republicanas, como o próprio concurso público, foi um avanço importante da Constituição de 1988.
O próprio nascedouro do direito administrativo tem estreita relação com a dinâmica republicana. É na Revolução Francesa que ele se inaugurará, com a superação do Antigo Regime, e de um Estado completamente dominado pelos interesses da sua Coroa. A coisa pública, a dinâmica de bens públicos comuns que precisam ser salvaguardados, dentro de um universo de iguais (os cidadãos), é essencial para a lógica republicana – e é nela que se funda e forma toda a concepção de oposição com o regime monárquico.
De outro lado, a lógica militar responsabiliza individualmente um subordinado, responde pela ordem do superior hierárquico, que deve ser obedecido sem discussões. O pressuposto da hierarquia militar é que há um certo grau de informações diferenciado na cadeia de comando e, de certa forma, também um pressuposto de liderança moral dessa cadeia. O inferior hierárquico responde pela sua desobediência ou negligência, mas não por ter seguido ordens. É notório que, como qualquer instituição, mesmo os militares têm tentado se atualizar e trazer para a sua perspectiva valores de discernimento próprio e responsabilização. Mas não é essa lógica que predomina, porque toda a finalidade da instituição é pensada para estar preparada em tempos de guerra, onde no front de uma batalha que envolve vidas, o tempo de raciocínio é pequeno e o custo de se tentar descobrir informações para uma escolha consciente, desaconselhável. O problema de uma instituição forjada para a guerra que atua com preponderância na institucionalidade política em tempos de paz é que há algo de autoritário na lógica da militarização que tende a orientar a conduta do agente envolvido.
Dentro dessa lógica de superioridade moral, inclusive, há algo de profunda correlação da política bolsonarista com práticas evidentes do fascismo alemão e nos remonta o julgamento de Eichmann, narrado por Arendt,[3] que demonstra como a burocracia estatal “militarizada” operava em certa dinâmica hierárquica. Eichmann foi o grande logístico da denominada “solução final”, que foi o extermínio, em massa, dos judeus na câmera de gás. Quando confrontado sobre as ordens que recebeu – que não foram apenas de executar, mas de possibilitar tudo o que envolvia a execução de milhares de pessoas – apontava que se os seus superiores, que possuíam uma capacidade moral de julgamento superior à sua, entenderam que havia justiça naquelas medidas, isso o mantinha tranquilo. A banalidade do mal, observa Arendt, é sobretudo, a naturalização e baixo peso ético dado para uma política que matava milhões. Essa dinâmica é, sem dúvida, de uma lógica militarizada, autoritária por excelência. A comparação é pertinente, porque Pazuello não demonstra qualquer crise moral com a política do genocídio, o que pressupõe baixo discernimento ético sobre seu trabalho e o valor da vida humana.
Porque sabiam que era de enormes riscos a condução da pandemia sobre esses parâmetros. O medo de uma política de retaliação e responsabilização, conforme aumentava o número de mortes no país, fez com que surgisse a tentativa de criação de um “salvo conduto”, uma política de excepcionalização das regras de responsabilidade de agentes públicos. Através da edição da MP 966 de 13 de maio de 2020, publicada no DOU 14 de maio, um dia antes de Teich deixar o Ministério da Saúde e Pazuello assumir interinamente e renovada por mais três meses em julho, previa-se que, no caso de atuação na pandemia, os agentes públicos apenas poderiam ser responsabilizados quando “agissem ou omitissem com dolo ou erro grosseiro”. A medida até era parecida com p ordenamento jurídico já existente, mas dificultava imensamente qualquer política das instituições de controle externo.
Mas no meio do caminho tinha uma CPI. A criação dessa comissão, por si só, é uma afronta ao governo, pois é uma forma de controle sobre a atividade pública, à qual Pazuello não está acostumado. Ser um agente público num ambiente democrático pressupõe coragem de ser questionado, inquirido, de vencer a estratégia pela força da argumentação e a contundência da sua conduta. Ser confrontado numa CPI é uma atividade inerente a um político e agente público e dentro da lógica democrática. A postura de soberba adota por Pazuello é medo de enfrentar uma dinâmica que não é própria da lógica militar, onde a força das armas prevalece.
Tanto é verdade que chegou a atrasar seu depoimento sob pretensa alegação de Covid para poder melhorar sua estratégia jurídica e sua preparação de mídia training. De igual modo, através da AGU, impetrou habeas corpus no STF para garantir-lhe o silêncio e que não ser constrangido ou preso durante a sessão da CPI. A concessão da liminar por Lewandowski garantiu a segunda parte integralmente, mas na primeira houve uma importante ressalva. O silêncio seria garantido para que ele pudesse não se incriminar, mas não atingiria terceiros, ou seja, ele não poderia ficar em silêncio sobre supostas condutas de terceiro. E isso inclui, por óbvio, o presidente da Pepública.
É razoável supor que Pazuello não permaneceu calado durante a CPI exatamente por conta dessa brecha. Pois, para salvar Bolsonaro, ele precisava se responsabilizar exclusivamente pelas ações do Ministério da Saúde diante a pandemia. Se ele usasse o HC, não poderia cumprir esse papel, teria que se proteger e acabaria resvalando no presidente as responsabilidades pelas ações criminosas. Por isso, em seu depoimento, assume a responsabilidade unilateralmente pelas decisões tomadas pelo Ministério da Saúde, chegando ao cúmulo de apresentar que nenhuma decisão relevante teve qualquer orientação da Presidência da República. Entre essas decisões, estariam: compra de vacinas, relações com outros países, indicações de campanhas publicitárias, uso ou não da cloroquina. Mas sabemos que essa não é a verdade, pois são evidentes uma série de contradições no discurso apresentado por Pazuello e nas peças publicitárias, lives e pronunciamentos à imprensa que foram veiculadas pela Presidência ao longo da pandemia. De qualquer forma, o depoimento constrói, contraditoriamente, no mínimo a responsabilização de Bolsonaro, que aparece como omisso na maior pandemia mundial do último século.
Para os militares, o papel no governo Bolsonaro e, em especial à frente do Ministério da Saúde, será mais uma mancha na sua história de atuação antidemocrática. Essa possibilidade de vinculação da imagem do Exército aos mais de 400 mil mortos no país, foi inclusive objeto de tensão entre os militares da ativa com Pazuello, que não foi para a reserva, mesmo assumindo o cargo de ministro[4].
Por todo o exposto, ressalta-se que a militarização da política no Brasil sempre foi utilizada como forma de manter a desigualdade em altos patamares. No caso da condução da pandemia, ela manteve essa lógica, pois foram sobretudo os mais pobres, os negros, os periféricos, que mais morreram e tiveram suas condições de vida precarizadas.[5] As condições desiguais de isolamento social, que vão do auxílio emergencial às condições de moradia – com a população negra tendo que enfrentar ainda chacinas de operações policiais na pandemia –, do acesso à saúde às condições escolares e inclusão digital, dentre outros, fez com que a miséria se ampliasse, o número de desempregados e aumentasse a desigualdade[6]. Em verdade, muitos lucraram exorbitantemente em meio à pandemia. Esse projeto de morte serviu a alguns setores e Bolsonaro não esteve sozinho, conforme se demonstra por apoios de inúmeros empresários ao longo desse processo. Nesse momento histórico, quando Bolsonaro assume o poder com um projeto socioeconômico nefasto, de aprofundamento de uma agenda ultraneoliberal, novamente há protagonismo dos militares nessa condução. E agora aliados com outras dinâmicas próprias da nova extrema direita do mundo.
Julia Almeida Vasconcelos da Silva é advogada, mestre em Direito pela UFRJ e integrante do NEV/USP.
[1] Boletim n. 10, Direitos na pandemia: mapeamento e análise das normas jurídicas de resposta à Covid-19 no Brasil, 3.049, São Paulo, 20 jan. 2021.
[2] Em verdade, ressalta-se que já vivenciávamos territórios completamente militarizados no Brasil, e a lógica da guerra e do extermínio reinam há décadas nas periferias brasileiras, num verdadeiro genocídio de jovens negros. A chacina do Jacarezinho no Rio de Janeiro, no dia 6 de maio, demonstra o tamanho da naturalização da necropolítica.
[3] Arendt, Hannah. Eichmmann Em Jerusalém. Um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
[4] Nesse sentido ver https://diplomatique.org.br/a-reforma-ministerial-no-campo-da-seguranca-e-suas-consequencias/.
[5] Estudo Inequalities and Covid-19 Mortality in the City of São Paulo , publicado em 28 de fevereiro de 2021, no International Journal of Epidemiology, da Oxford Academic.
[6] Ver mais em: https://d2v21prk53tg5m.cloudfront.net/wp-content/uploads/2021/04/cms_files_115321_1599751979Poder_Lucros_e_a_Pandemia_-_completo_editado_-_pt-BR.pdf.