A nova corrida do Chaco
Uma nova elite agrária nos países da Bacia do Prata representa uma mudança relevante para a política da região – e apresenta uma nova geografia das práticas políticas
Antes do golpe policial-militar-religioso representado por Jeanine Áñez nas eleições bolivianas em 2019, um movimento que o precedeu estabeleceu um precedente muito importante. Onze anos antes desta ruptura institucional em escala nacional, um conjunto de lideranças cívicas se reuniu, buscando opor-se ao governo central de Evo Morales. Em nome do processo de descentralização promovido pelo governo nacional, alguns departamentos da região oriental da Bolívia, fronteiriços ao Brasil, demandaram uma maior capacidade de decisão frente à capital, La Paz. O estatuto de autonomia apresentado ao referendo trazia 168 artigos, que davam principalmente poder de gestão territorial a estes departamentos, num país que aos poucos deixava de ser unitário e, em 2009, mudaria de constituição para se tornar, inclusive, plurinacional1.
De forma mais relevante, o estatuto plurinacional buscava dar aos departamentos, cujos chefes de governo até uns anos antes do referendo eram diretamente nomeados pelo governo central boliviano, capacidades discricionárias muito relevantes. Além da gestão e recolhimento de impostos gerados pela produção de hidrocarburos, este referendo também dava à chefia do governo departamental a capacidade discricionária de “ser o responsável pelo direito de propriedade, administração e distribuição de terras”. Assim, seria o governo regional a ser o responsável por sancionar “(não se definiu como) toda terra improdutiva2”.
O ano era 2008, e esta movimentação representou uma nova forma de articulação política que hoje, doze anos depois, se mostra cada vez mais relevante para compreender o quê tem ocorrido nos países da Bacia do Prata. Se o mundo passa por um momento de diversas “fraturas” sociais, caracterizadas por uma divisão cada vez mais clara entre as classes privilegiadas e o resto da população, há se que se entender, também, se há movimentos tectônicos de difícil percepção ainda que de grandes consequências também em nossa região.
A aposta aqui apresentada é que, diferentemente de outras regiões do mundo, as “clivagens que erodiram a coesão social, as práticas de cidadania e a confiança em instituições públicas3” se apresentam, em nossa região, de uma outra maneira que no norte geopolítico. As “profundas linhas de falha que se manifestam economicamente, politicamente, socialmente e espacialmente” e que fazem com que “aos governos crescentemente falte a capacidade de promover o desenvolvimento inclusivo e proteger o bem-estar e direitos de seus cidadãos num mundo que muda rapidamente e é cada vez mais incerto4” se manifestam, hoje em dia, nessas disputas entre uma nova elite regional e as populações de outras regiões dos países que constituem a Bacia do Rio da Prata.
O Grande Chaco sul-americano
A formação territorial da América do Sul é extremamente complicada de ser abordada em um processo simples. O consenso típico, da formação socioespacial baseada em centros urbanos e suas zonas rurais de influência – suas hinterlândias, ou áreas que se caracterizam por uma dependência dessa centralidade urbana – dá certa conta de abordar o processo a partir de uma perspectiva historiográfica. Outras características, como a manutenção da colonização e a oposição entre elites nacionais e regionais e população ampla, também marcam muito a formação territorial dos países da região5.
Há, porém, uma questão relevante que permaneceu durante muito tempo e que agora parece estar assumindo uma força central, sobretudo na região da Bacia do Prata. Trata-se da conquista, da colonização, da ocupação fática de regiões até então distantes, e que sempre preocuparam os governos centrais.
Dentre essas regiões, marca-se o grande complexo de planícies e planaltos que se estendem pelo centro do subcontinente. Formando um grande complexo de vales hipertrofiados e que se colocam entre as duas maiores formações montanhosas da América do Sul – a Cordilheira dos Andes, a Oeste, e a Serra do Mar, a Leste –, as terras baixas da Bacia do Prata até o século XX eram consideradas pelos governos de seus países como áreas ou de segurança nacional, como no governo brasileiro de Getúlio Vargas, ou ainda como fonte de possibilidade de alcance de recursos naturais.
De fato, aquela que é considerada a última guerra de formação territorial na América do Sul ocorreu em torno de disputas nessa região, que na fronteira dos países beligerantes (Bolívia e Paraguai) chama-se Chaco. Essa guerra, motivada pela expectativa de existência de poços de petróleo na região, foi semelhante, na América do Sul, àquilo que a Guerra Civil Espanhola representou para a Europa: uma situação política que envolvia interesses muito além que apenas a situação local, e que representou as grandes lutas que viriam a acontecer nas próximas décadas no continente.
Definida a soberania de uma parte do Chaco em mãos paraguaias (com o apoio relevante, mas não muito seguro, do Brasil e dos Estados Unidos), começa um processo de longa duração que definirá, décadas mais tarde, algumas características dessa região que estou chamando aqui de “Grande Chaco Sul-Americano”. Sobretudo a partir da década de 1970, com uma interação cada vez maior entre os governos autoritário da região e os planos de “desenvolvimento” e “integração” nacionais, a inserção da lógica do agronegócio exportador na região se torna um fundamento essencial nas mudanças políticas que ocorreriam em nossos países quase meio século depois.
Centros de gravitação e deslocamentos de poder
Uma das formas de definir esse “Grande Chaco Sul-Americano” é mais humana que física. Estritamente falando, o Chaco se estende do norte da Argentina (onde, inclusive, há uma província com este nome) até a região oriental da Bolívia, passando pelo ocidente paraguaio.
Trata-se de um conjunto de planícies e de terras baixas que se estendem por toda essa região e que, nos séculos XIX e XX, eram fonte de preocupação estratégica, uma vez que o domínio dessas terras baixas e contínuas permitira a fácil circulação de exércitos e a definição da direção do escoamento produtivo6. Geopolíticos brasileiros, inclusive, chegaram a denominar essa região como a heartland, a região mais vital, de todo sistema espacial sul-americano, e cujo domínio significaria a capacidade de atuar politicamente em um grande número de países relevantes da região a leste da Cordilheira dos Andes – e, portanto, alterar os equilíbrios de poder no sistema político e econômico da América do Sul7.
Se essa transformação e esse reequilíbrio não aconteceram de forma estritamente estatal, uma vez que as fronteiras nacionais jurídicas permanecem as mesmas desde a Guerra do Chaco, uma nova corrida na região tem representado um deslocamento relevante de poder. Neste caso, não se trata mais de uma corrida em direção aos recursos naturais, mas sim uma corrida para que interesses das elites regionais do Grande Chaco sejam representados por seus governos nacionais.
Falando a respeito da modernização da agricultura estadunidense na década de 1950, o geógrafo Jean Gottmann aponta uma questão relevante. Com a introdução tanto de novas técnicas quanto de novas tecnologias, os avanços sentidos pela produção agrícola norte-americana não se fizeram sentir apenas na relação dos produtores com a terra, ou ainda nos resultados materiais da produção mais elevada e das vendas que agora poderiam ser feitas para outros países.
“Essas técnicas são importantes, mas o seu uso e seus efeitos são subordinados”, afirmava Gottmann, “às novas técnicas de crédito, do financiamento, da organização da venda, do uso da legislação fiscal e de subsídios – esse todo criando um novo capitalismo agrícola, poderoso, condenado a uma expansão contínua e beneficiando, em termos de lucros pecuniários, a um número cada vez mais restrito de indivíduos e de empresas”8. E é nesse ponto que talvez mais se perceba as consequências políticas do deslocamento de poder econômico entre as elites agrárias.
No Brasil, essa tensão está perceptível em meio à oposição de uma parcela da bancada ruralista às lógicas de (des)proteção ambiental e promoção de uma cultura de slash and burn (derrubar e queimar) do governo Jair Bolsonaro e seu ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles. Se no início de seu governo, Bolsonaro afirmava à bancada ruralista que “esse governo é de vocês”9, já em 2020 as relações entre a bancada ruralista – representação suprapartidária que agrupa os interesses do agronegócio brasileiro – e o governo federal encontravam-se problemáticas. As lógicas militaristas do governo Bolsonaro, e seu combate à ciência, pesquisa e desenvolvimento atingiram também a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), que é uma das grandes aliadas do agronegócio brasileiro10.
Uma clivagem de pertencimento, ou a transnacionalidade no Grande Chaco Sul-Americano
As ações do Ministério do Meio Ambiente, e sua desconsideração por questões ambientais, representam um perigo também para a agricultura de exportação de frutas e outros alimentos não comoditizados para a Europa. Isso porque as práticas de slash and burn, assim como a “passagem da boiada” em meio à pandemia da Covid-19, geram uma oposição cada vez maior na União Europeia para o fechamento do tratado de livre-comércio com o Mercosul. E, aí, perde grande parte da tradicional elite fundiária brasileira, ligada tradicionalmente à exportação de produtos primários, mas de qualidade, e que representa uma versão antiga da agricultura brasileira11.
A “nova elite do Chaco”, esta sim representada por Salles e Bolsonaro, faz parte de outra lógica, caracterizada pela sua transnacionalidade. Há, obviamente, uma transnacionalidade importante na lógica das commodities: são produtos dos quais não importa a origem, e que são vendidos por meio do fantasma do sistema financeiro internacional. Porém, essa transnacionalidade é marcada por outras características.
Há um sentimento transnacional de pertencimento que deve ser muito bem analisado. A nova elite do Chaco, num processo muito parecido com a formação das elites “americanizadas” da Colômbia e do Chile, não tem o seu pertencimento pautado por um projeto de Brasil – nem elitista, nem popular, nem desenvolvimentista. Da mesma forma, a elite paraguaia que assumiu a condução do agronegócio no país a partir da década de 1970 tampouco se vê como paraguaia. Ou são os brasiguaios expatriados, mas que mantém com o Brasil a sua lógica de pertencimento, ou são descendentes dos alemães menonitas que para o país foram nos séculos XIX e XX. Jeanine Áñez, ao chegar na residência presidencial após o golpe de 2019, fez questão de enfatizar que “a Bíblia está de volta ao palácio”, demonstrando o caráter religioso também transnacional desse movimento12. Na Argentina, a derrota de Mauricio Macri aponta para a incapacidade de setores tradicionais do agronegócio argentino, convertidos em exportadores de soja, em conversar com uma população majoritariamente urbana.
É essa, inclusive, a definição que o coletivo argentino de cartografias sociais e contestatórias Iconoclasistas dá a esse novo movimento do Grande Chaco Sul-Americano. Analisando a produção agrícola, as mudanças legislativas, permissões e impactos nas vidas de comunidades tradicionais dessas regiões, chegaram à percepção de que se estava formando, na região, aquilo que chamaram de “República Tóxica da Soja”. Resultado de uma reflexão coletiva, tinha dentre seus vários objetivos refletir “sobre a expansão da mancha sojeira e de outros cultivos transgênicos, o avanço do desflorestamento e consequente ecocídio, a contaminação de rios e cursos de água, as mortes por uso de agrotóxico […], a infraestrutura instalada, as expulsões, repressões e criminalização das organizações campesinas”13.
Percebe-se, pelo número de elementos elencados pelos Iconoclasistas que não se trata de uma simples continuidade da exploração fundiária e do poder pela terra na América do Sul – marca relevante da região desde o período de invasão ibérica. Mas, nesse caso, trata-se de uma região que tem características tão específicas que, nas palavras de Jean Gottmann, forma “um balanço político […] que começa a afetar a estrutura política interna das nações; ele se faz se sentir nos debates relativos ao comércio internacional; ele não pode deixar de afetar, pouco a pouco […] o conjunto das relações internacionais”14. A atuação do chanceler brasileiro, Ernesto Araújo, é mais do que representativa dessa transnacionalidade em favor do projeto slash and burn, ao assumir, como outros em tempos anteriores, que o presidente estadunidense é salvador de um Ocidente ao qual o Brasil faz parte, e que o foco brasileiro deva ser apenas a soja, e não envolvimento político em questões de reforma do sistema15 internacional.
Mais do que isso, nos países da Bacia do Prata o questionamento deve ser se uma gradativa autarquia do Grande Chaco deve se expandir à última terra baixa que ainda não se encontra sob o domínio da exploração agropecuária de exportação de commodities. Unida à Bolívia pelo sistema hidrográfico dos rios Purus, Madeira e Guaporé, a planície amazônica pode encontrar-se sob pressões a partir também da fronteira oriental do Grande Chaco, no vale do Xingu e dos rios Araguaia e Tocantins, no Centro-Oeste brasileiro. Seguindo as beiradas da Cordilheira, a integração desta região à lógica do agronegócio representaria a última guerra de conquista na América do Sul. Como diz Gottmann, “essa situação já começou a modificar as estruturas políticas internas” dos países da região, “assim como suas ideias de política exterior”. Basta buscar compreender se esta mudança é um processo inexorável, ou se há formas de impedir sua toxicidade.
Gustavo Glodes Blum é internacionalista, estudante do curso de doutorado da Universidade Estadual de Campinas, onde se dedica ao estudo da Geografia das Relações Internacionais sob orientação da professora Claudete de Castro Silva Vitte.
[1] “As contradições da revolução boliviana”, Le Monde Diplomatique Brasil, 27 set. 2011.
[2] “Entenda o referendo sobre autonomia na Bolívia”, BBC Brasil, 02 mai. 2008.
[3]A ideia de uma sociedade fraturada foi central para um esforço do Instituto das Nações Unidas para Pesquisa sobre Desenvolvimento Social (UNRISD, na sigla em inglês) que realizou uma conferência internacional sobre o tema em 2018. As principais conclusões – e os trechos aqui citados – constam do Issue Brief #10 do instituto, publicado no ano seguinte. Cf. UNRISD, “Overcoming inequalities in the contexto of the 2030 Agenda for Sustainable Development”.
[4] Idem.
[5]Cf. Carlos Walter Porto Gonçalves, “A reinvenção dos territórios: A experiência latino-americana e caribenha”, FLACSO, 2006.
[6]Cf. Luiz Alberto Moniz Bandeira, “Brasil, Argentina e Estados Unidos: Conflito e integração na América do Sul (Da Tríplice Aliança ao Mercosul)”, 2010.
[7] Autores como Delgado de Carvalho e Everardo Backheuser fizeram essa leitura, que culminou na perspectiva de Golbery do Couto e Silva que pautou a política interna e externa dos governos da ditadura civil-militar brasileira (1964-1985) e os grandes planos de integração nacional e expansão econômica brasileira do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2002-2010).
[8] Jean Gottmann, “Incidences Politiques de l’évolution agricole moderne”, In : Politique étrangère, nº 2, 1964 – 29e année, p. 181-192.
[9] “‘Esse governo é de vocês’, diz Bolsonaro à bancada ruralista, Metro1, 04 jul. 2019.
[10] “Bancada ruralista cobra apoio e se afasta do governo”, Correio do Povo, 07 dez. 2019.
[11] Cf. Isabela Lamas, “Destruição ambiental no Brasil: entraves para ratificação do Acordo Mercosul-União Europeia e interesses do agronegócio”, Terra em transe – Grupo de Estudos sobre Conflitos Internacionais (PUC-SP) e Outras Palavras, 20 out. 2020.
[12]Akram Belkaïd e Lamia Oualalou, “Uma internacional reacionária”, Le Monde Diplomatique Brasil, Edição 158, 1 set. 2020.
[13] O trabalho final, que consiste numa cartografia muito interessante do projeto do coletivo Iconoclasistas, pode ser acessado no seguinte link: https://iconoclasistas.net/republica-toxica-de-la-soja/.
[14]Gottmann, ibidem.
[15] Cf. Consuelo Dieguez, “O chanceler do regresso”, Piauí, Edição 151, abr. 2019.