A nova noção de risco
Utilizando conceitos oriundos do universo das companhias de seguros, as “reformas” são legitimadas aos olhos das populações. A noção de risco foi assim mobilizada a fim de redefinir os direitos sociais e instaurar a confusão entre seguros sociais e privados. Paralelamente, a ideia de solidariedade foi reativada.Noëlle Burgi
nome da “competitividade” da economia, da “mobilidade”, “autonomia”, “responsabilidade” individuais, as regras e os valores que alicerçavam o Estado social europeu são temas de uma desconstrução metódica. O pacto que ligava, implícita ou explicitamente, os diferentes componentes da sociedade (capital, trabalho, Estado) é questionado de uma maneira gradual, mas muito eficazmente.
Utilizando conceitos oriundos do universo das companhias de seguros, as “reformas” são legitimadas aos olhos das populações. A noção de riscofoi assim mobilizada a fim de redefinir os direitos sociais e instaurar a confusão entre seguros sociais e privados. Paralelamente, a ideia de solidariedade foi reativada para sugerir que a revisão dos direitos coletivos visava um novo equilíbrio, respeitando sempre a responsabilidade de cada um e a proteção de todos.
Historicamente é verdade que a seguridade social tornou possível a construção de Estados sociais. Ela forneceu suas ferramentas ao modelo solidarista ou mutualista, que é a base da cobertura dos riscos sociais na França. Ela legitimou, assim, a transição das relações de responsabilidade organizadas pelo Código Civil rumo a um regime de socialização1.
Mas, na virada do século XX, os usos da ideia2 de solidariedade não podem estar dissociados da reatualização da problemática do sistema de seguros. Na sua versão revificada, o significado do risco, salientado pelos líderes europeus, é diametralmente oposto aos valores e princípios defendidos pelos fundadores dos sistemas de proteção social.
Acidente e Objetividade
O risco é, em sentido estrito, uma hipótese, cuja ocorrência pode ser estimada. Tecnicamente é uma categoria criada pelo segurador, que transforma uma experiência vivida – uma catástrofe – em um fato tido como acidente, que tem sua própria objetividade e pode ser gerido através de uma regra de divisão do ônus de prejuízos. Assim definido, o risco é um simples instrumento de gestão. Não caberia substituir com tal conceito os princípios fundamentais da seguridade social.
Uma das principais tarefas atribuídas aos sistemas de proteção social criados após 1945 era servir como mecanismo anticíclico. Tratava-se, emconjunturas econômicas difíceis, de não abandonar as massas de desempregados e manter, portanto, a ordem civil.
Como escreveu o economista Christophe Ramaux, as categorias do risco e do seguro não dão conta do salto qualitativo que representou a transição de uma política pública de amparo de caráter minimalista, antes de 1945, a mecanismos de assistência que garantem um “bem-estar” e, até mesmo, um “melhor-estar” social 3.
As categorias de risco não permitem determinar nem o nível dos benefícios nem fornecer critérios quanto à abrangência da proteção coletiva: deve-se, por exemplo, estendê-las a todos ou reduzi-las a uma fração da população? Elas não resgatam a unidade do conjunto: aos riscos cobertos pelo Seguro Social (doença, maternidade, velhice, invalidez, acidentes de trabalho ou doenças ocupacionais e encargos familiares), devem se somar a garantia dos serviços públicos e o direito ao trabalho.
No entanto, os conceitos de risco e seguro são hoje considerados critérios de julgamento legítimos e suficientes. Eles permitem pensar a “crise do Estado-providência” nas sociedades “pós-industriais”. Levando o raciocínio ao seu extremo, os economistas François Ewald e Denis Kessler elevam o risco em “valor dos valores”, que eles qualificam de “núcleo da consciência moral, social e política contemporânea”, de “princípio da instituição da política”4.
Necessidades Históricas
Por sua vez, o sociólogo Pierre Rosanvallon situa o “princípio assistencial” como fundamento do pacto social5. No mundo desencantado em que ele retrata “o colapso das grandes ideologias e das grandes narrativas”, nada mais poderia frear o processo de racionalização. A justiça, tanto quanto a administração e até mesmo a política, se organizaria em torno de regras objetivas, sem considerar a pessoa, sem ódio e sem amor. As escolhas econômicas seriam, então, interpretadas como necessidades históricas diante das quais só prevalece a “gestão dos riscos”, “o próprio objeto da ação política”.
Com esse enfoque fecha-se a prioria discussão sobre os critérios pelos quais os sistemas sociais europeus são “reformados”. Evita-se o debate sobre o projeto e o tipo de compromisso buscado por meio de uma “requalificação” dos riscos sociais. Pelo paradigma assistencial, a ideia de risco mantém a ilusão de uma continuidade com os valores e as normas impostas a partir de 1945. Apesar disso, desde os anos 1980 a reestruturação lenta e obstinada dos sistemas europeus de proteção social parece se reconciliar com as políticas minimalistas do século XIX, ainda que sob formas muito diferentes.
Na verdade, a tendência mais ou menos acentuada em todos os países da UE é a da constituição, com o apoio ativo da Comissão Europeia, de uma base de benefícios que garantam recursos e coberturas mínimas para os mais despossuídos, numa lógica assistencialista. Ao mesmo tempo, o campo das garantias “clássicas” (desemprego, doença, velhice…) tende a se contrair, o que incentiva o uso de dispositivos facultativos (fundos de pensões etc.) e o desenvolvimento de mercados privados de poupança e seguros 6.
Essa luta parece coroada de êxito, a julgar pelos inúmeros programas de estudos consagrados, na Europa e nos Estados Unidos, aos “novos riscos sociais”. Esse conceito polissêmico designa principalmente a pobreza e a exclusão, a dependência, a monoparentalidade, a “(des)empregabilidade”. “Fenômenos” como esses, causados pela transição para uma sociedade “pós-industrial”, justificariam uma “recalibragem” dos riscos, ou seja, uma revisão geral da proteção e dos direitos sociais. Seria apenas uma revisão técnica, exclusivamente preocupada com a racionalização – sendo a racionalização, como escreve o filósofo Edgar Morin, “a arma mágica da ideia contra o real”7.
Mas nenhum critério permite que, nas palavras do sociólogo Robert Castel, zonas de vulnerabilidade abertas e em expansão sejam atendidas. Isso porque elas institucionalizam a precarização e levam o Estado a promover um “assistencialismo” forçado, que, além do mais, lança mão de mecanismos sofisticados de monitoramento e de controle dos sujeitos sociais desfavorecidos.
É necessário, portanto, debater os princípios fundamentais, as regras e os valores capazes de recriar uma alquimia que confira um verdadeiro estatuto de autonomia ao engajamento individual num projeto em comum. Na falta de tal discussão, a solidariedade, de volta à ordem do dia, não terá outra função se não a de contornar o consentimento.