A reforma tributária em três atos (parte 2)
Os bilionários brasileiros se mostram como são e sempre foram: gananciosos e antinacionais, defendendo seus privilégios ao custo do desenvolvimento nacional, mantendo toda a nação sob eterna dependência
Os ricos de qualquer lugar do mundo reclamam dos impostos e comumente se empenham para repassar os custos do Estado para o resto da sociedade. O que é uma especificidade brasileira é a sanha com que a elite local se atira na luta pelo controle do Estado, querendo-o só para si, somada à fragilidade reativa da sociedade. Um dos exemplos desse comportamento é o Impostômetro, iniciativa da Associação Comercial de São Paulo. Utilizado por todos os neoliberais, o Impostômetro estima o valor dos tributos pagos pelos brasileiros, desde o começo de cada ano.
Os números, naturalmente, impressionam o cidadão comum, quase sempre de bolso vazio, iludido pelas meias verdades escondidas no Impostômetro. Por isso, ele não se pergunta se os impostos são grandes ou pequenos frente ao PIB do país; ou se o dinheiro que sai do seu bolso também sai igualmente dos bolsos dos ricos; ou ainda, a quem beneficia verdadeiramente aquela montanha de dinheiro que o Impostômetro calcula. Para ele, que percebe, mas não entende a perversa distribuição de renda do país e vê seu trabalho diário valer quase nada no fim do mês, o valor dos tributos arrecadados parece mesmo um roubo, já que os serviços prometidos pelo Estado estão sempre aquém de suas necessidades.

Então, não surpreende ouvir pessoas comuns repetirem frases de efeito, como “a melhor maneira de ajudar os pobres é reduzir os impostos sobre os ricos” ou “viva aos Paraísos Fiscais! Que todo o mundo seja um Paraíso Fiscal! Impostos são roubo!” sem nunca saber quem realmente ganharia com um Estado pequeno, capaz de disponibilizar apenas a polícia na rua.
O cidadão comum não está errado em pensar o que pensa. Todos os dias, lhe é escondido de propósito, pelos grandes jornais, TVs e propagandas pagas na internet, o que de fato acontece entre a arrecadação de tributos e os gastos do governo. A única notícia que chega a ele são as formas de corrupção explícitas. Nenhuma palavra para elisão fiscal, ilegalidades, fraude, multas não pagas, perdões fiscais, desvios e paraísos fiscais, desonerações de setores inteiros, lobbies tributários e jamais, em hipótese alguma, sobre o valor ou a taxa de juros pagos pelo governo aos bancos e fundos de investimento. Com isso se esconde, por exemplo, que a carga tributária que incide sobre os mais ricos é muito menor do que aquela cobrada sobre a classe média e os pobres. Em momento algum, se discute quais impostos arrecadam mais no Brasil; se esses impostos pesam mais sobre ricos ou pobres; ou se a alíquota de determinados impostos pensados para serem progressivos se tornaram insignificantes por pressão política das elites ricas. Nada disso lhe foi mostrado. Nada disso é discutido.
Assim, hoje, quando o Governo Federal propõe uma reforma tributária, de ampla repercussão, é natural que o cidadão comum torça o nariz, como faz a elite rica, embora os motivos de cada um sejam bastante diferentes. O cidadão comum não sabe se a nova legislação tributária, trazida pelo PLP 68/2024, manterá tudo como está ou mesmo piorará sua situação, pois foi ensinado pela mídia a desconfiar sempre que o assunto é imposto. Já os ricos estão preocupados com outras coisas. Os bilionários, verbi gratia, temem que a simplificação, os ganhos de eficiência e, principalmente, a transparência sobre o que é cobrado possa atrapalhar suas cotidianas maracutaias fiscais. A elite estranha a reforma porque, pela primeira vez, estão previstos dois mecanismos de grande impacto social: o cashback, que determina a devolução, aos mais pobres, de parte do imposto pago, e o Imposto Seletivo, que vai taxar atividades muito lucrativas, porém, geradoras de grandes problemas.
Leia aqui o primeiro artigo da série
O que são esses dois mecanismos previstos na reforma tributária? Primeiro, o cashback cria a devolução de parte do tributo pago, na forma de IBS e CBS, às famílias de baixa renda. Ou seja, trata-se de uma redução de fato do imposto sobre o consumo dessas famílias. O destinatário das devoluções previstas será o/a responsável por unidade familiar de baixa renda, cadastrado/a no Cadastro Único do Governo Federal (CadÚnico), incluído automaticamente na sistemática de devoluções. A restituição de parte do tributo pago será feita imediatamente no caso de serviços como energia elétrica, água, esgoto e gás natural e demais hipóteses conforme definidas em lei, enquanto, para as compras de outros bens e serviços, o crédito será mensal. O percentual ressarcido será de: a) 100% da CBS e 20% do IBS na aquisição de botijão de treze quilogramas de gás liquefeito de petróleo; b) 50% da CBS e 20% do IBS nas operações de fornecimento de energia elétrica, água, esgoto e gás natural; e c) 20% da CBS e do IBS nos demais casos. Além disso, ficam reduzidas a zero as alíquotas do IBS e da CBS incidentes sobre os produtos destinados à alimentação humana, relacionados na Cesta Básica Nacional de Alimentos. As vantagens desse sistema são várias: o cashback eleva a renda real disponível para as famílias de baixa renda; incentiva à formalização da economia e, segundo estudos recentes, a estratégia é mais eficaz.
Já o Imposto Seletivo (IS) cria um tributo sobre produção, extração, comercialização ou importação de bens prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente, cobrado em cota única e sem cumulatividade com a CBS e o IBS. Por isso, os bens atingidos são: a) veículos; b) embarcações e aeronaves (exceto foguetes e satélites); c) bens minerais extraídos; d) produtos fumígenos; e) bebidas alcoólicas; e f) bebidas açucaradas. A alíquota do imposto não será única, variando de maneira inversamente proporcional aos problemas que o bem ou serviço causam à coletividade. É importante salientar que o IS não incidirá sobre energia elétrica, comunicações, transporte público coletivo urbano, semiurbano e metropolitano e sobre bens que receberem isenção prevista de 60% do IBS e CBS. Além disso, a produção nacional não será prejudicada, pois a importação dos mesmos tipos bens será igualmente taxada pelo IS. O imposto pretende, no longo prazo, penalizar produtos poluentes ou prejudiciais à saúde, terminando por estimular investimentos em alternativas sustentáveis e inovadoras.
Em resumo, o que se observa? O PLP 68/2024, além de racionalizar e simplificar a legislação tributária referente aos impostos indiretos, como discutido no primeiro artigo, cria um mecanismo que eleva a renda real disponível do grupo mais pobre do Brasil, realizando um mínimo de justiça tributária. Ademais, institui, pela primeira vez, um moderno tributo, comum nas economias desenvolvidas, com o fito de cobrar de atividades tóxicas parte dos custos que causam ao bem-estar coletivo e individual. A lógica da reforma tributária é, portanto, elogiável, embora pouco ambiciosa, dada a secular regressividade dos impostos brasileiros e a ausência dos pobres nos orçamentos dos governos nas três esferas.
Os mais ricos, porém, resistem à reforma tributária, exceto se forem aprovadas isenções ou regimes especiais que atendam seus interesses mais particulares. Na verdade, engolem o cashback porque é valor pequeno, restrito aos necessitados do CadÚnico, incapaz, portanto, de rivalizar com a montanha de dinheiro que extorquem da sociedade com auxílio do Banco Central. Seu prejuízo não será grande. Já o IS, diferentemente, levantou gritos de raiva, vocalizados pelos lobbies habituais em Brasília. Por quê? Porque as externalidades negativas, causadas pelas atividades econômicas atingidas pelo tributo, até hoje, não eram compensadas em favor da sociedade. Por isso, até agora, a população sofria sozinha com a poluição causada pelos veículos à combustão e o Estado arcava sozinho com os custos hospitalares de doenças causadas pelo fumo, bebidas alcoólicas, etc. Com Imposto Seletivo previsto, parte do custo com a reparação do bem-estar coletivo recairá sobre essas atividades geradoras de problemas.
Nesse sentido, fica claro que o Impostômetro e o discurso neoliberal sobre a estrutura tributária brasileira são duas grandes falácias ou, pelo menos, metade – um terço, talvez – da realidade dos fatos e números sobre impostos e sobre quem realmente paga pelo funcionamento do Estado no Brasil. A carga tributária nacional é, sabidamente, regressiva, ou seja, são os pobres que arcam, em termos relativos, com a “parte do leão” dos impostos no país. Pior, na outra ponta, os gastos e investimentos públicos beneficiam majoritariamente a elite, em razão da sua força política quase imperial. No fundo, é a mesma elite, desde os tempos do Brasil Império. Quando, hoje, pela primeira vez, se propõe uma reforma sobre os impostos que não aumentará a carga tributária e que institui mecanismos modernos, como o cashback e o Imposto Seletivo, os bilionários acionam seus potentes lobbies para evitar qualquer avanço da justiça fiscal e a taxação que reduza seus sacrossantos lucros.
Em nenhum momento, essa mesma elite foi capaz de reconhecer que o PLP 68/2024 favorece a competitividade econômica do país e atende parte de suas demandas expressas sob o título “Custo Brasil”. Menos ainda aceitou, sem reclamar, o esforço, mesmo pequeno, feito para diminuir a injustiça tributária sofrida pelos mais vulneráreis entre os vulneráveis do país. De outro modo, os bilionários brasileiros se mostram como são e sempre foram: egoístas, mesquinhos, gananciosos e antinacionais, defendendo seus privilégios ao custo do desenvolvimento nacional, mantendo toda a nação sob eterna dependência. Esse é o seu caráter.
Ricardo L. C. Amorim é economista e assessor parlamentar na Câmara dos Deputados.