A segregação como norma
O Presidente da Câmara, acusado de desviar para a Suíça aproximadamente R$ 9 milhões, mente perante seus pares e diante de toda a nação, dizendo que não é verdade. Comprovada a veracidade da denúncia, a justiça brasileira busca repatriar os valores depositados nos bancos suíços.
Apesar das evidências, o deputado Eduardo Cunha se faz de vítima e continua a mandar no país. Manobra o Congresso e, com o apoio da bancada “BBB”, aprova pautas que ameaçam os avanços democráticos conquistados nos últimos trinta anos. Chantageia o governo e se mantém imune.
A sociedade civil não consegue partilhar consensos mínimos para enfrentar os desmandos do Congresso e impedir os retrocessos. A chamada grande mídia trata os atos do presidente da Câmara como leves desvios de conduta, por que não dizer estilo, espetacularizando o que é passível de críticas.
Diante da crise política, econômica e institucional que paralisa o Brasil, o Rio de Janeiro vive sua guerra particular e elege o jovem preto e pobre como elemento a ser controlado. E mais uma vez a emoção é acionada e o medo passa a justificar arbitrariedades e violação de direitos.
O verão na cidade olímpica do Rio de Janeiro
Ao menos no Rio de Janeiro, o maior perigo para as autoridades e a classe média carioca são os jovens pretos e pobres que se deslocam, em sua maioria, das zonas Norte e Oeste da cidade ou mesmo de algumas favelas da Zona Sul em direção à orla e se atrevem a invadir as praias, em especial Copacabana e Leblon, promovendo arrastões e evidenciando os contrastes existentes na cidade. Há alguns anos, a aproximação do verão coloca em destaque a palavra “arrastão”. Não seria espantoso se o termo entrasse para o dicionário brasileiro como sinônimo de grupos de jovens negros, pardos e pobres caminhando juntos em áreas nobres da cidade.
No primeiro final de semana de setembro, em que fez sol e calor forte, “arrastões e assaltos assustaram moradores e turistas no Rio de Janeiro” e “Menores promoveram arrastões em final de semana de praia lotada no Rio de Janeiro”. Esse foi o tom das manchetes que provocou o governo do estado a antecipar a presença ostensiva de policiais nas praias e adjacências.
O governo agiu rápido, mobilizou as forças de segurança e, em parceria com a prefeitura (Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social), promoveu um bloqueio na saída dos túneis que dão acesso ao bairro de Copacabana. Homens jovens, pretos, pardos, sem documentos, sem dinheiro, com cara de moleque atrevido, malvestidos não passam. São retirados dos ônibus, com a ajuda de um profissional da assistência social, e levados para um centro de triagem da prefeitura. Após avaliação dos assistentes sociais, seus destinos são decididos: retorno para casa ou encaminhamento para um dos abrigos municipais.
Uma reportagem do jornal Extra, publicada no dia 22 de outubro, chama a atenção: “Manguinhos: sem área de lazer, moradores nadam em esgoto. Com medo de serem detidos na ida à praia, jovens preferem brincar em meio à poluição”.
A foto mostra quatro meninos negros mergulhando nas águas poluídas da confluência do Rio Jacaré (sem meias palavras: esgoto puro) com o Canal do Cunha. São meninos da favela Mandela, uma das catorze do complexo de Manguinhos. Diz o texto: “Em tempos de confusão à beira-mar, com centenas de policiais à caça de jovens como eles, os meninos do Mandela preferem não se arriscar na Zona Sul”.
Em outro ponto da cidade, em uma favela da Zona Sul, chama atenção a preocupação de uma mãe: “Meu filho, aonde você vai? Pra praia! Desse jeito não, vai trocar de camisa e botar uma bermuda melhorzinha. Tá com dinheiro no bolso? Sabe que a polícia tá prendendo gente. Não esquece o documento”. Todo esse ritual porque um jovem de 15 anos, preto, morador de uma favela decidiu ir à praia num final de semana.
A mãe sabia, pela televisão, que se iniciara a Operação Verão e que a polícia estava barrando a chegada de “moleques” à praia. Para proteger o filho, jovem, morador de favela e preto, a mãe apelou para a estratégia da subordinação: se você estiver bem vestido, se comportar direitinho e se submeter, sem reação, à revista policial, você pode circular livremente pela cidade.
Parece que tudo está em seu lugar. Nos finais de semana, a polícia intensifica o controle na saída do túnel que dá acesso às praias. A estrutura da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social está de plantão com seus profissionais para acompanhar a polícia e fazer a triagem necessária; as mães, nas favelas e periferias, intensificarão os avisos para os filhos, para que se tornem invisíveis quando estiverem no “asfalto”. E os meninos do Mandela continuarão a tomar banho no esgoto.
O Rio de Janeiro tem uma particularidade: as desigualdades sociais e raciais atravessam o cotidiano da cidade, na maioria do tempo de forma invisível, sem produzir conflitos. Nesse aspecto, as favelas são o elemento incômodo, na medida em que abrigam e expõem diversos aspectos dessa segregação na cidade: territorial, social, racial, etária etc. Talvez por essa razão tantas violações aconteçam nessas localidades, sem produzir indignação coletiva.
“Um relatório da Anistia Internacional constatou um aumento de 39% no número de homicídios decorrentes de intervenção policial no estado do Rio de Janeiro entre os anos de 2013 e 2014. O documento também chamou a atenção para o elevado índice de impunidade de policiais que cometeram assassinatos. Segundo a organização, cerca de 80% dos 220 casos de homicídios cometidos por policiais em 2011 permaneciam em aberto até 2015 – e apenas um foi denunciado à justiça pelo Ministério Público” (3 ago. 2015 – BBC Brasil).
Toda semana a mídia divulga mortes violentas em favelas. Via de regra as vítimas são jovens e negros, e a justificativa oficial é o confronto com a polícia (auto de resistência). Esse termo já está assimilado pela sociedade carioca como verdade que dispensa investigações. No entanto, vez por outra, alguém interfere no roteiro e explicita o drama. Foi o que aconteceu na favela da Providência recentemente: “imagem de policiais militares alterando a cena da morte de Eduardo Felipe Santos Victor, de 17 anos, no Morro da Providência”. O laudo mostra que o jovem levou um tiro à queima-roupa quando estava deitado. Os policiais fazem parte da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) ali instalada.
Então, a expectativa de que os novos policiais destacados para atuar nas UPPs pudessem agir diferente, seguindo um novo padrão de policiamento, com respeito absoluto às normas legais, está a cada dia mais distante. Infelizmente, esse não é um fato isolado; revela, pelo contrário, que os novos policiais incorporaram rapidamente velhos vícios.
Esta cidade é de todos?
A Cidade Maravilhosa passa por seus últimos retoques para sediar mais um megaevento: a Olimpíada 2016. Vive momentos de tensão e recorre, mais uma vez, ao discurso do medo para legitimar o uso excessivo da força, dar início à limpeza social e cumprir o acerto com o mercado.
O problema é que a cidade é dinâmica, e a periferia, cada vez mais, vem afirmando seu protagonismo e disputa por direitos. Novas formas de resistências são forjadas pelos jovens em sua luta por visibilidade e ocupação da cidade.
O desafio é se contrapor ao discurso evasivo e midiático das autoridades do Estado, que fica na superfície do problema; desconstruir o ódio e a intolerância, que ganham consistência nas redes sociais; não cair na armadilha das soluções imediatistas, que não vão à raiz do problema; e agir na perspectiva do diálogo, do encontro e de soluções compartilhadas.
*Itamar Silva é diretor do Ibase.