A sombria carreira do enviado especial norte-americano à Venezuela
Há alguns anos, o cáustico Elliott Abrams amava apresentar-se como um velho sábio, um expert em diplomacia sempre preocupado em dar sua opinião informada. Encarregado por Donald Trump de “restaurar a democracia na Venezuela”, ele voltou aos negócios. Olhando sua ficha, os habitantes que vivem onde será sua missão podem começar a se preocupar…
O anúncio pelo secretário de Estado norte-americano, Mike Pompeo, da nomeação do neoconservador Elliott Abrams ao posto de enviado especial à Venezuela, no dia 25 de janeiro de 2019, não passou despercebido. A imprensa interpretou a decisão de confiar a esse homem a missão de trabalhar para a destituição do presidente Nicolás Maduro como uma declaração de independência de Pompeo em relação ao presidente Donald Trump. Seu desafortunado predecessor, Rex Tillerson – ex-CEO da ExxonMobil –, esperava de fato recrutar Abrams. Mas Trump se opôs, apesar do lobby do doador de extrema direita Sheldon Adelson – que parece conseguir tudo o que quer do presidente. O motivo da recusa? Abrams se uniu a outros neoconservadores para criticar Trump durante a primavera republicana de 2016. Até os esforços do genro do presidente, Jared Kushner, se revelaram em vão diante de seu conselheiro na época, Steve Bannon, que convenceu o chefe da Casa Branca de que a reputação de “mundialista” de Abrams o desacreditava.
De acordo com a revista Bloomberg, essa promoção revela um “giro”: “suas posições são representativas de uma política externa que Trump condenava durante sua campanha – notadamente o apoio à Guerra do Iraque, que ele critica há tempos. Mas Abrams, assim como o presidente, parece ter mudado”.1 Essa ideia de que “as pessoas mudam” figura igualmente entre as explicações dadas por Abrams para limpar sua participação no escândalo do Irangate – quando a administração do presidente Ronald Reagan financiou seu apoio aos “contras” antissandinistas na Nicarágua pela venda de armas secretas a Teerã –, apresentado como insignificante. Apesar de envolvido no caso, Abrams culpou dois promotores de dissimular informação no Congresso. Ele foi expulso da ordem dos advogados de Columbia, antes de ser perdoado pelo presidente George H. W. Bush. “Não acho que isso tenha a menor importância. Não nos interessa o que aconteceu em 1980, e sim o que acontece em 2019”, comentou Abrams.2
Massacres e genocídios
A julgar pelo passado de Abrams, o ano de 2019 corre o risco de ser desastroso para o povo venezuelano. Assistente subalterno no Congresso antes de sua nomeação durante a administração Reagan a uma série de cargos relacionados a direitos humanos na América Central e ativo novamente na segunda administração de George W. Bush, em seguida desempenhou um papel militante no seio de um think tank, o Council on Foreign Relations [Conselho de Relações Exteriores], e de várias organizações judaicas conservadoras. À exceção de Henry Kissinger e Dick Cheney, poucos altos funcionários norte-americanos fizeram tanto pela promoção da tortura e de mortes em massa em nome da democracia. Depois do Irangate, sua progressão nas altas esferas da política externa norte-americana, beneficiária de um tratamento midiático que o faz passar por uma personalidade respeitável, esclarece a realidade de seu pequeno mundo – em particular sua falta de preocupação pelos valores que os políticos norte-americanos geralmente defendem.
No início de sua carreira, a serviço dos senadores democratas Henry “Scoop” Jackson e Daniel Patrick Moynihan, Abrams contribuiu com os esforços neoconservadores para converter o Partido Democrata dos anos de 1970 ao intervencionismo em situação de guerra. Contudo, afastados dos altos postos da administração pelo presidente Jimmy Carter, eles terminaram por mudar de lado. “Éramos de fato excluídos. Obtivemos apenas um cargo insignificante: negociador especial. Não para a Polinésia nem para a Macronésia, e sim apenas para a Micronésia”, reclama Abrams.3 Depois de construir um confortável ninho no seio da administração Reagan, ele gravitou rapidamente pelos altos escalões do Departamento de Estado. Passou pelo cargo de secretário de Estado adjunto às organizações internacionais, depois – ironicamente – pelos “direitos humanos” e, por fim, pelas questões interamericanas. Nesse último cargo, protegeu o secretário de Estado, George Shultz, de investidas de reaganianos desejosos de entrar em guerra com a União Soviética, envolvida em uma série de conflitos na América Central.
A extrema direita latino-americana nunca havia contado com um aliado norte-americano tão enérgico quanto Abrams. Mesmo quando a polêmica girava em torno de massacres, como o dos milhares de camponeses inocentes em El Salvador, Nicarágua, Guatemala e até no Panamá (que George H. W. Bush terminou por invadir), ele sempre soube como atuar como um emissário que mascara a responsabilidade de Washington perante jornalistas, militantes pela justiça e até mesmo vítimas.
Em março de 1982, o general guatemalteco Efraín Ríos Montt chegou ao poder por um golpe de Estado. Então secretário de Estado adjunto de direitos humanos, Abrams se apressou em felicitá-lo por ter “levado a progressos consideráveis” na questão dos direitos fundamentais e insistiu no fato de que “o número de civis inocentes assassinados diminuiu progressivamente”.4 Ao mesmo tempo, contudo, segundo um documento desclassificado, o Departamento de Estado recebia “alegações fundamentadas relacionadas a massacres em grande escala de homens e mulheres, crianças e indígenas perpetradas pelo Exército em uma zona remota”.
Isso não impediu que Abrams pedisse ao Congresso que aprovasse o fornecimento de armas aperfeiçoadas aos militares guatemaltecos, argumentando que “o progresso deve ser recompensado e encorajado”. Em 2013, a Comissão pelo Esclarecimento Histórico, criada sob os auspícios das Nações Unidas, reconheceria o general Ríos Montt culpado por “atos de genocídio” durante o encontro dos Maias Ixil no Departamento de Quiché.
Citações imaginárias
Promovido em 1985 ao posto de secretário de Estado adjunto de questões interamericanas, Abrams não parava de condenar as organizações que denunciavam os assassinatos em massa perpetrados pelo general-ditador Ríos Montt, e depois seus sucessores, Oscar Mejía Víctores e Vinicio Cerezo Arévalo. Em abril de 1985, a militante guatemalteca Maria Rosario Godoy de Cuevas, dirigente do Grupo de Apoio Mútuo, uma organização que reunia mães de desaparecidos, foi encontrada morta em um carro acidentado com seu filho de 3 anos e seu irmão. Não contente de apoiar a versão (pouco crível) do regime de que havia sido uma fatalidade, Abrams perseguiu na justiça os que tentaram abrir uma investigação processual sobre o caso. Quando o New York Times revelou uma carta aberta contestando os números do Departamento de Estado em relação aos assassinatos em massa, redigido por uma mulher ela mesma testemunha de uma execução sumária que havia ocorrido em plena luz do dia em Guatemala City sem que a imprensa divulgasse uma nota sequer, ele escreveu uma carta descaradamente mentirosa ao redator-chefe. Chegou a citar um artigo imaginário, publicado em um jornal que não existia, a fim de provar que esse assassinato havia sido, sim, reportado pelos meios de comunicação.
Em 1982, o New York Times e o Washington Post publicaram artigos evocando um massacre cometido um ano antes por tropas formadas e equipadas pelos Estados Unidos na região de El Mazote, em El Salvador. Imediatamente se posicionando em defesa dos assassinos, Abrams declarou diante de uma comissão no Senado que os artigos “não eram confiáveis” e que “visivelmente” se tratava de um “incidente instrumentalizado” pelas guerrilhas. Em 1993, a Comissão pela Verdade das Nações Unidas concluiu que 5 mil civis foram “deliberada e sistematicamente” assassinados em El Mazote.
Em 1985, quando o ditador panamenho Manuel Noriega ordenou a tortura e o assassinato por decapitação do guerrilheiro Hugo Spadafora, Abrams interveio junto ao Departamento do Estado e diante do Congresso para impor o silêncio sobre esse caso. “[Noriega] nos ajudou muito […], ele não representa um verdadeiro problema. […] Os panamenhos prometeram nos ajudar a combater os ‘contras’. Se você persegui-lo na justiça, não poderemos contar com eles”, explicou.5
Abrams estava envolvido no escândalo Irangate em vários níveis. Em 1986, um piloto mercenário norte-americano foi abatido enquanto transportava armas ilegais destinadas aos “contras” nicaraguenses. Abrams apareceu na CNN para certificar que o governo norte-americano não estava de nenhuma forma envolvido com aqueles voos. “Seria ilegal. Não temos o direito de fazer isso e não fazemos. Definitivamente não foi uma operação do governo norte-americano. […] Se as coisas aconteceram dessa forma, se os norte-americanos foram mortos e seus aviões abatidos, é porque o Congresso não agiu [para financiar os ‘contras’]”, afirmou em cadeia mundial. Diversas vezes, assegurou no Congresso que “a função do Departamento de Estado [em termos de ajuda aos ‘contras’] não era arrecadar fundos, e sim de obtê-los do Congresso”. Era tudo mentira. As entregas de armas eram financiadas pelo tenente Oliver North e pela CIA. Quando fez essas afirmações, Abrams retornava justamente de Brunei, onde havia arrecadado fundos para os “contras”. Em 1991, a revelação dessas falsificações lhe valeu uma condenação por dissimulação de informação no Congresso.
Legitimidade de “expert”
Abrams não se envolveu com a administração de Bill Clinton, mas foi recrutado por seu sucessor, George W. Bush, para trabalhar no Conselho Nacional de Segurança em questões relacionadas a Israel e Palestina. Seu grande êxito na época, revelado pelo jornalista David Rose na Vanity Fair, foi impedir as eleições de 2006 de terminarem com um governo de coalizão entre Hamas e Fatah na Cisjordânia e em Gaza, conspirando com o segundo para obrigar o governo eleito, dominado pelo Hamas, a se exilar em Gaza.6 Essa manobra selou uma divisão sem fim entre essas duas facções, atualmente incapazes de negociar uma paz duradoura com Israel (se é que Israel estaria disposto a isso). Finalmente, segundo uma investigação do jornal britânico The Guardian,7 Abrams teria encorajado em 2002 o golpe de Estado militar na Venezuela contra o governo democrático de Hugo Chávez (revertido após imensa mobilização popular).
Nenhum desses fatos impediu o Conselho de Relações Exteriores de acolher Abrams entre seus membros permanentes em 2009, conferindo-lhe uma legitimidade de “especialista”. Esse prestigioso think tank somente manifestou algum embaraço quando sua nova equipe foi repreendida pelo presidente Barack Obama por ter designado ao posto de secretário da Defesa Charles Hagel – um “antissemita” que “parece ter problemas com os judeus”, segundo o ex-presidente (Rádio Pública Nacional, 7 jan. 2013). Nenhum membro parece, por outro lado, ter se incomodado por sua contribuição nas manipulações eleitorais, massacres ou genocídios. Sua nomeação ao Conselho de Relações Exteriores e, atualmente, ao posto de enviado especial dos Estados Unidos à Venezuela denota a intenção dos conservadores em relação à política externa dos Estados Unidos.
*Eric Alterman é jornalista
1 Jennifer Jacobs e Nick Wadhams, “‘Never Trumpers’ can get State Department jobs with Pompeo there” [Contrários a Trump podem conseguir trabalho no Departamento de Estado com Pompeo lá], Bloomberg, Nova York, 31 jan. 2019.
2 Citado em Grace Segers, “US envoy to Venezuela Elliott Abrams says his history with Iran-Contra isn’t an issue” [Enviado norte-americano à Venezuela, Elliot Abrams, diz que caso do Irã e os contras não é uma questão], CBS News, 30 jan. 2019.
3 Citado em Samuel Blumenthal, The Rise of the Counter-Establishment. The Conservative Ascent to Political Power [O levante do contrassistema. A ascensão conservadora ao poder político], Union Square Press, Nova York, 2008 (1. ed.: 1986).
4 Citado em Samuel Totten (org.), Dirty Hands and Vicious Deeds. The US Government’s Complicity in Crimes Against Humanity and Genocide [Ações violentas e mãos sujas: a cumplicidade do governo norte-americano em crimes contra a humanidade e genocídios], University of Toronto Press, 2018.
5 Citado em Stephen Kinzer, Overthrow: America’s Century of Regime Change from Hawaii to Iraq [Derrubada: o século norte-americano de mudanças no regime, do Havaí ao Iraque], Times Books, Nova York, 2006.
6 David Rose, “The Gaza bombshell”, The Hive, 3 mar. 2008. Disponível em: <www.vanityfair.com>.
7 Ed Vulliamy, “Venezuela coup linked to Bush team” [O golpe na Venezuela ligado ao time de Bush], The Guardian, Londres, 21 abr. 2002.