Afinal, a Nação reivindica um corpo negro
A força numérica e simbólica dos protestos fez lembrar as grandes mobilizações de 2013 e 2015/2016. Mas, neste 15 de março o que estava em jogo era algo de natureza completamente distinta. Essa foi a primeira vez que a Nação reivindicou de forma massiva um corpo negro
A dor e a revolta pelo assassinato de Marielle, mulher, negra, favelada e ativista dos direitos humanos, romperam os tradicionais espaços de luto e luta associados à reivindicação dos corpos negros.
A comoção tomou conta do país, levou milhares de pessoas às ruas e produziu imagens fortes como na Cinelândia: um clarão aberto no meio da multidão para a passagem do caixão que trazia o corpo desfigurado da vereadora eleita com 45 mil votos.
A força numérica e simbólica dos protestos fez lembrar as grandes mobilizações de 2013 e 2015/2016. Mas, neste 15 de março o que estava em jogo era algo de natureza completamente distinta. Essa foi a primeira vez que a Nação reivindicou de forma massiva um corpo negro.
E isso foi um acontecimento, no sentido que Hannah Arendt emprega ao termo. Um fato político que, independente dos seus desdobramentos político-institucionais no futuro, tem em si mesmo força suficiente no presente para parir o novo.
A novidade é que choramos juntos – nós homens e mulheres brancos – o corpo de uma mulher negra. E esse foi o acontecimento que pariu o novo. Nos protestos que ajudamos a tornar massivos, tematizamos o genocídio negro na esfera pública das avenidas e com isso amplificamos a voz de resistência que há muito vem sendo alimentada nas favelas, por outras mães e mulheres negras que decidiram não aceitar a morte como destino, nem para si nem para os seus.
Quando as mulheres negras reivindicaram para si o corpo de Marielle, dando as mãos em corrente para liberar o espaço para seu corpo passar, elas esgarçaram a pequena fenda já aberta em campanhas anteriores. Na força dos seus abraços de dor e solidariedade, elas abriram um clarão que deixou nu o DNA escravocrata de nossa democracia.
Ainda em 2013, a campanha “Cadê Amarildo?” desnudava a face brutal de uma democracia que convive, desde sempre, com a lógica do extermínio. Amarildo foi sequestrado e torturado até a morte no interior de uma UPP. Dessa vez, a política do extermínio assumiu a forma da intervenção militar no Rio de Janeiro e o crime foi executado à vista de todos. Afinal, como em todo crime político, o que se busca matar não é apenas o corpo, mas principalmente o projeto que ele encarna.
Estamos em um ponto de inflexão na democracia brasileira. Não há conciliação capaz de conter as energias de revolta e injustiça que foram liberadas quando choramos juntas. A democracia brasileira terá que enfrentar a questão racial. Isso abre um outro momento em nossa história. Paradoxalmente, é justamente quando o golpe tornou nu a falência de nossas instituições políticas que temos uma chance real de avançar.
Hoje se busca disputar os sentidos dessa morte. Há os que querem matá-la uma segunda vez, usando a comoção gerada por sua morte para legitimar a intervenção militar e ampliar o alcance do braço repressivo do Estado. E há também os que esvaziam a potência desse momento, reduzindo sua morte à polarização política que desde 2013 toma conta do país. Sim, não há dúvida que o assassinato de Marielle está relacionado ao avanço das forças conservadoras e ao seu efeito concreto no Rio de Janeiro com a intervenção militar. Mas, o corpo que tombou foi o de uma mulher negra. E a novidade é que essa morte, nos deu a todos a chance de um recomeço. Que estejamos à altura deste momento.
*Luciana Tatagiba é professora Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp.