Além do fim da história
O retorno de Trump ensaia uma forte reação dos EUA contra o desgaste de sua posição no mundo, mas pode ser o “canto do cisne” da hegemonia estadunidense e, com ela, da teleologia liberal que serviu de bússola ideológica à radicalização da acumulação de capital no pós-Guerra Fria
Causou espanto o tom de Donald Trump em sua posse. Muitos esperavam alguma moderação, expectativa que não cabe em relação à extrema direita, cujo método consiste precisamente em incitar o caos contra os limites institucionais ao seu programa. Para além do método, que há muito tempo está claro, o tom e as medidas de Trump apontam para uma reação agressiva ao sensível desgaste da hegemonia dos EUA.
Dito isso, qual é o significado dessa hegemonia e do seu desgaste para o nosso mundo? E que horizonte político nos aguarda, quando as instituições que prometiam a “paz perpétua” se deterioram sob o avanço de um regime cada vez mais oligárquico com contornos fascistas? Norteado por essas grandes questões, pretendo explorar aqui a sinuosa travessia histórica de nosso tempo, balizada pelo declínio da supremacia estadunidense e da democracia liberal, face institucional da ordem pós-Guerra Fria.

O último mandato do Ocidente
O fim da Guerra Fria abriu novos horizontes à política internacional. O término negociado da disputa entre URSS e EUA, sem escalar à guerra total, sinalizou para muitos a vitória da razão sobre a catástrofe pela primeira vez no século mais violento. O sucesso da dissuasão nuclear em evitar o fim da humanidade também orientou conclusões otimistas sobre a “superação” da tragédia, e o avanço da integração regional – pacificando longas inimizades nacionais até na Europa, palco das maiores guerras da história – parecia encaminhar o mundo à paz perpétua de Kant.
Foi nesse contexto que interpretações idealistas sobre os horizontes internacionais emergiram, como a teleologia de Fukuyama (1992) sobre o “fim da história”. Nela, a história, enquanto processo dialético prenhe de contradições que se traduzem em violência, seria aposentada pelo marco final do liberalismo, a globalização, com sua força “cosmopolita” e “pacificadora”. E os conflitos no crepúsculo do século XX e alvorecer do XXI se tornariam residuais e fadados à superação pela interdependência entre as nações, alavancada pela abertura de mercados que deveria promover adesão universal à órbita liberal. Na vanguarda desse processo estava a potência norte-americana, inspirada por um sentido de “excepcionalidade” e “vocação” para expandir seus valores como o “farol da humanidade” (PECEQUILO, 2005).
Herdeiros do domínio ocidental sobre o resto do mundo, os EUA assumiram a passagem de guarda após o longo turno britânico. O século XIX é conhecido como “o século britânico”, mas foi também o da projeção dos Estados Unidos sobre as Américas e o Pacífico. As condições para isso foram obtidas pela consolidação de um território formidável, riquíssimo em recursos, com generosas saídas para os dois maiores oceanos da Terra e fronteiras pacificadas e hipertrofiadas pela conquista do Oeste aos nativos americanos e de mais da metade do território do México. Foi dessa poderosa estrutura nacional – adensada pela musculatura industrial que crescia no lastro dos Relatórios sobre as Manufaturas, de Alexander Hamilton – que os EUA forçaram a abertura japonesa (1854) e puseram em marcha a Doutrina Monroe (1823), avançando sobre os territórios europeus remanescentes nas Américas e impondo o Big Stick às nações latino-americanas.
No século XX, se voltaram para o restante do hemisfério ocidental, participando decisivamente das duas guerras mundiais e tomando às decadentes potências europeias as rédeas da política internacional. Introduziram novos valores, antagônicos à realpolitik europeia, que resultaram na arquitetura institucional do mundo em que vivemos, baseada nos valores liberais. Superado o desafio imposto pelo Socialismo Real, no final da década de 1980, não restaria nada capaz de objetar uma hegemonia global e duradoura.
Elevados à condição de única superpotência, tornaram-se dominantes em todos os continentes e, até hoje, mais de oitocentas bases suas espalharam-se pelo mundo, instaladas por dez porta-aviões. A geopolítica dos EUA é global e se organiza em comandos pelo mundo fora: USEUCOM, Europa; USAFRICOM, África; USCENTCOM, Oriente Médio, Ásia Central e Egito; USINDOPACOM, Ásia-Pacífico; USSOUTHCOM, América do Sul e Central; e USNORTHCOM, América do Norte.
Entre a década de 1990 e meados dos anos 2000, os Estados Unidos eram a única potência global e não reconheciam nenhum rival em qualquer um dos planos em disputa – econômico, político, militar e mesmo cultural. Primazia inquestionável e tomada como um traço distintivo da ordem pós-Guerra Fria, e muito se questionava sobre quantas décadas (ou séculos!) ela duraria (comparações com o Império Romano, que durou mil anos, não eram raras).
Praticamente, nada se resolvia sem passar por Washington, como ilustra a disputa entre Marrocos e Espanha por uma ilha no Mediterrâneo, resolvida em 2002 por Collin Powell de sua casa. “Powell redigiu um acordo em seu computador doméstico, conseguiu que ambos os lados o aceitassem, depois assinou ele mesmo para cada lado e enviou-o por fax para Espanha e Marrocos. (…) Os dois governos emitiram declarações agradecendo aos Estados Unidos por ajudarem a resolver a crise. E Colin Powell foi nadar com os netos” (Zakaria, 2008, p. 230).
Ocaso
O auge da hegemonia dos EUA se deu no começo do século XXI. Sua política externa, marcada por variações de multilateralismo e unilateralismo, buscou a via multilateral durante a primeira década pós-Guerra Fria, o que elevou o soft power de Washington. Com isso, no começo dos anos 2000, o antiamericanismo se limitava às regiões historicamente inimigas dos EUA ou entre grupos sociais tradicionalmente anti-imperialistas.
A inflexão veio com o 11/09/2001 ao eliminar as restrições à vocação unilateral do gabinete de Geroge W. Bush, que se jactava do seu desprezo por tratados e organizações multilaterais, pela opinião pública internacional “e qualquer coisa que sugerisse uma abordagem conciliadora da política mundial. (…) Não foi apenas a substância da política externa americana que mudou (…). O estilo também se tornou imperial e imperioso. (…) Com frequência, os outros governos [eram] simplesmente informados sobre as medidas americanas. (…) ‘Quando nos encontramos com altos funcionários americanos, eles falam e nós escutamos. Raramente discordamos ou falamos com franqueza porque eles simplesmente não conseguem compreender. Apenas repetem a posição americana, como o turista que acha que basta falar alto e devagar para que todos entendam’, contou-me um experiente ex-assessor de política externa de um importante país europeu” (ZAKARIA, 2008, p. 237-8). No final da década, diversas pesquisas de opinião já acentuavam uma mudança de percepção até entre os europeus, que definiam os EUA como “a maior ameaça à paz mundial” (ZAKARIA, 2008), impressão que piorou na década seguinte com a sequência de desastres no Oriente Médio e o trumpismo.
Além do desgaste junto à opinião pública internacional, os Estados Unidos também passaram a enfrentar sérios problemas domésticos: desindustrialização, aumento da pobreza e do déficit público, que levaram ao crescimento da extrema direita e à intensa polarização política que convulsiona o país. Na política externa, os desafios não ficam atrás. Embora seu poder ainda seja um dos elementos mais relevantes da ordem internacional, já não ocupam o mesmo lugar. Seu assento à mesa não é tão confortável como outrora e precisam lidar com outros players cada vez mais próximos da cabeceira, tornando seu domínio contingente, como deixa patente a ineficácia das sanções contra Putin. E também precisam lidar com a ameaça de desdolarização, amplamente discutida entre as potências do Sul global e capaz de minar ainda mais o poder de sancionar e a capacidade de financiar a imensa dívida pública – um privilégio exclusivo. Em meio a tudo isso, a deterioração do poder dissuasório estadunidense é sensível (ou a Rússia jamais teria violado a fronteira da Ucrânia).
Na arena internacional, o crescimento de uns significa ameaça para outros, razão pela qual a lógica da estratégia é relacional. Nas últimas décadas, o protagonismo ocidental vem perdendo espaço para atores emergentes, notadamente a China. Na Europa, a Rússia volta à carga na grande estratégia e reage aos avanços da OTAN sobre suas fronteiras e áreas de influência, e o avanço da extrema direita por toda a União Europeia coloca em xeque a integração que muitos julgavam consolidada. No Oriente Médio, o Irã, mesmo após anos de sanções, se aproxima de sua planta nuclear, sob a proteção dos russos e chineses, escalando um dilema de segurança com Israel que tem potencial para desencadear um amplo conflito regional. Ao mesmo tempo, Israel avança em seu projeto de colonização da Palestina e além, buscando alterar o equilíbrio de forças e redesenhar o mapa político da região. A devastação humana e material provocada por suas forças deve deixar consequências duradouras e estimular mais recrutamentos nas fileiras dos incontáveis grupos jihadistas que atuam também no tabuleiro das proxy wars que desestabilizam permanentemente o Oriente Médio.
Todo esse cenário aponta para uma Guerra Fria 2.0 em contexto multipolar, mais complexo e que tende a forçar como nunca as comportas da dissuasão nuclear – único dique detendo um conflito total entre as potências. Após o advento das armas nucleares, a guerra foi deslocada para a periferia internacional, e, com a escalada de tensões entre as potências, as nações do Sul global devem redobrar sua atenção. Para a América Latina, que atrai maciços investimentos chineses (com destaque para o Brasil), a consequência é óbvia: o recrudescimento da Doutrina Monroe. E já são sensíveis os primeiros desdobramentos disso no lawfare praticado no Brasil que resultou na deposição de uma presidente sem crime, na destruição da indústria naval e de construção civil e na prisão de Lula, retirando-o da disputa presidencial de 2018 em condições mais do que suspeitas. E agora, o discurso de Trump adota tom mais agressivo para os países latino-americanos, com menção direta ao Brasil: “eles precisam de nós, nós não precisamos deles.” Tudo isso aponta para mais pressão sobre os governos e as democracias da região, que já padecem de uma “infecção” crônica.
O outro lado da Cortina de Ferro: derrota estratégica e a ordem do capital
Ao longo do século XX, a URSS foi vanguarda e retaguarda de várias lutas. Das lutas trabalhistas e por direitos civis, como as de mulheres e negros – inclusive nos EUA, cuja segregação racial foi referência para os nazistas (LOSURDO, 2020) –, aos processos de descolonização. E não esqueçamos do seu mais importante legado: a derrota do Terceiro Reich. Nada menos que ¾ das forças nazistas foram destruídos pelo Exército Vermelho, com o custo de 25 milhões de vidas soviéticas (LUKACS, 1976).
Ao fazê-lo, a URSS ofereceu, ironicamente, as condições para a recuperação da democracia liberal. Segundo Hobsbawm (1995, p. 15): “Uma das ironias deste século é que o resultado mais duradouro da Revolução de Outubro, cujo objetivo era a derrubada global do capitalismo, foi salvar seu antagonista, tanto na guerra quanto na paz, fornecendo-lhe o incentivo – o medo – para reformar-se após a II Guerra Mundial (…)”. O resultado foi o welfare state, síntese do conflito entre capital e trabalho sob a sombra da revolução.
Embora se possa argumentar que a derrocada do welfare se iniciou na década de 1970, quando a queda da taxa de lucros levou a novas ofensivas do capital, foi o fim da URSS o golpe fatal nos trabalhadores de todo o mundo, abrindo caminho para a destruição dos sindicatos e direitos sob o corolário do neoliberalismo. Nesse sentido, o término da Guerra Fria foi uma derrota estratégica para o campo da esquerda e, três décadas depois, a democracia liberal se tornou a última trincheira contra a extrema direita, resumindo o campo progressista a uma defesa da democracia pouco fecunda entre boa parte do povo, que não reconhece bem aquilo que nunca conheceu.
Aqui, cabe fazer uma observação sobre a “crise da democracia”. Sendo a forma institucional responsável pela acomodação de agudas contradições socioeconômicas, mediante um regime de acumulação que, invariavelmente, leva à concentração de poder político, uma conclusão parece indubitável: a democracia liberal, historicamente, se tornou a hospedeira de um regime oligárquico que, como o Alien de Ridley Scott, é por ela gestado até o mortífero parto.
O momento que vivemos é o do nascimento da besta fera. O Alien é o que Clara Mattei (2024) chama de “ordem do capital”, um regime de concentração protegido pelas instituições liberais, historicamente condicionadas para conferir legitimidade e proteção a dois expedientes fundamentais dele: a propriedade privada dos meios de produção e as relações de trabalho assalariadas. O resultado óbvio da radicalização dessa engenharia política e econômica no pós-Guerra Fria é o mal-estar social que se alastra e municia a extrema direita, único campo do espectro político capaz de conversar com uma população que se sente traída por suas instituições. Nos EUA, por exemplo, é a primeira vez que uma geração vê o seu padrão de vida piorar em relação a seus pais (MOUNK, 2019), tendência que se irradia por todo o Ocidente liberal. Enquanto isso, as grandes fortunas batem recordes escancarando a eficiente drenagem de riqueza da base para o topo da pirâmide, após décadas de políticas de austeridade.
Estamos, na prática, diante de um novo ancien régime gestado pela democracia liberal, cuja tecnocracia econômica vem transferindo em ritmo cada vez maior a renda nacional para o 1%, capitaneado por oligarcas do setor de tecnologia (desenvolvido com imensos investimentos públicos) que fazem do controle da informação uma arma de destruição em massa apontada para o que resta das instituições democráticas e seus mínimos espaços de resistência ao novo absolutismo.
Nesse diapasão, o estado da democracia é de estrangulamento sob as rédeas do capital. Não são necessárias muitas linhas para demonstrar a influência perniciosa do dinheiro no processo político, fazendo da soberania popular uma miragem. Democracia tem fundamentalmente a ver com acesso ao poder. Quando a política é interditada pelo capital, a democracia acaba devorada pelo apetite insaciável de oligarquias capazes de apelar sem constrangimentos ao nazifascismo, chocado na incubadora liberal. Por isso, nunca é demais lembrar: liberalismo e colonialismo são faces de uma moeda – afinal, foi a exploração colonial e o tráfico negreiro que viabilizaram a revolução industrial em primeiro lugar (LOSURDO, 2020; WILLIAMS, 2012); e o nazifascismo é expressão orgânica da violência colonial (CÉSAIRE, 2020). Portanto, qualquer exame atento da história não deixa dúvidas quanto à porosidade da fronteira entre liberalismo e fascismo.
É por isso que não há coincidências com o nazifascismo. As tentativas de desqualificar a única interpretação possível do gesto de Elon Musk são sintomas da indigência moral e intelectual resultante de décadas de educação neoliberal, voltada para destruir a solidariedade e proteger monopólios da informação idealizados para sustentar um regime de acumulação somente possível mediante expedientes de alienação vorazes, que agora culminam na concentração de poder sem precedentes das big techs.
Para onde estamos indo com tudo isso? Se o trumpismo é o ocaso da hegemonia dos EUA, a ascensão da extrema direita é o sintoma inequívoco de uma transformação global que vem desafiando as fundações da modernidade, vertebradas no colonialismo do Norte sobre o Sul. Velhos equilíbrios de poder estão se alterando e, como sugere a história, é provável que não sejam reacomodados pacificamente. E a demolição das instituições liberais – operada não pela esquerda revolucionária (enterrada com a URSS), mas por uma extrema direita galvanizada pela insatisfação popular contra essas mesmas instituições – está levando a democracia liberal à conversão oligárquica de tons fascistas que estamos testemunhando, processo que pode escalar fricções geopolíticas, dado o tipo de lideranças que seleciona e alça ao poder.
Vivemos em um momento histórico perturbador, que pede muita calma, análise e organização, nessa ordem. É necessário interpretar cuidadosamente a complexa e desafiadora conjuntura, pois não há enfrentamento possível às ameaças que estão postas sem o bom reconhecimento do terreno da história.
João Rafael Gualberto de Souza Morais é historiador, doutor em ciência política e professor do Instituto de Estudos Estratégicos da UFF.
Referências
CÉSAIRE, Aimé. Discurso sobre o colonialismo. São Paulo: Veneta, 2020.
FUKUYAMA, Francis. O fim da História e o último homem. Rio de Janeiro: Rocco, 1992.
HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: Breve século XX, São Paulo, Companhia das Letras, 1995.
KANT, Immanuel. À paz perpétua. Porto Alegre: L&PM, 2011.
LOSURDO, Domenico. Liberalismo entre civilização e barbárie. São Paulo: Anita Garibaldi, 2020.
LUKACS, John. A última guerra europeia: setembro de 1939 – dezembro de 1941. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1976.
MATTEI, Clara E. A ordem do capital: como os economistas inventaram a austeridade e abriram caminho para o fascismo. São Paulo: Boitempo, 2024.
MOUNK, Yascha. O povo contra a democracia: por que nossa liberdade corre perigo e como salvá-la. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
PECEQUILO, Cristina Soreanu. A política externa dos Estados Unidos. Porto Alegre: UFRGS, 2005.
WILLIAMS, Eric. Capitalismo e escravidão. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
ZAKARIA, Fareed. O mundo pós-americano. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.