Alemães com medo do espantalho grego
A vitória dos conservadores nas eleições gregas foi saudada por uma insólita coalizão: de Washington a Pequim e de Paris a Berlim, chefes de Estado parabenizaram o povo que decidiu manter os pagamentos ao sistema financeiro. Intransigentes, líderes alemães se apoiam no sentimento de que gregos abusam da solidariedadeOlivier Cyran
Nesta manhã de junho, o ensaísta mais influente da Alemanha participa de uma audiência no Café Einstein, um estabelecimento de alto nível de Berlim, a dois passos do Portão de Brandemburgo. O recepcionista acompanha o visitante à sala reservada ao “Herr Doktor”, onde uma equipe de televisão já arrumava as coisas para sair. Outros jornalistas esperam a vez. É preciso ser rápido: meia hora por entrevista.
Esse homem de palavras tão disputadas pela imprensa alemã é um ex-banqueiro magro e de bigode, que jamais sorri. Seu nome, Thilo Sarrazin, vale ouro no mercado editorial: L’Allemagne court à sa perte [A Alemanha se extingue a si mesma], lançado em 2010, vendeu 1,5 milhão de exemplares, o que o tornou um dos maiores best-sellers além-Reno desde 1945. Nesse livro, o ex-membro da diretoria do Deutsche Bank descreve em termos apocalípticos a agonia de uma nação devastada pela imigração, pelo Islã e pelo peso demográfico dos “trabalhos menos inteligentes”.
Hoje, Sarrazin inunda as estantes das livrarias com outra torrente: A Europa não precisa do euro,1 lançado em maio e já o mais vendido entre as obras políticas. O ensaísta incita a próspera Alemanha – que ainda não está completamente morta – a cavalgar sozinha e não depositar um centavo mais em seus parceiros mediterrâneos, acusados de destruir a Europa em sua alergia ao trabalho e indolência orçamentária.
Essa tese, contudo, não é novidade. O nacionalismo econômico de Sarrazin irritou diversos rivais, entre eles Hans-Olaf Henkel, o ex-presidente da poderosa Federação da Indústria Alemã (BDI), que também lançou seu próprio panfleto em janeiro. Em Salvemos nosso dinheiro! A Alemanha exportada. Como a fraude do euro ameaça nossa prosperidade,2 também um best-seller, o porta-estandarte dos exportadores alemães preconiza a divisão da Europa em duas zonas monetárias diferentes: uma munida de um euro forte, reservada aos países do Norte, e a outra, dotada de um euro fraco, que uniria os “Estados azeiteiros” do Sul.
Um inimigo por outro
A “estrela da social-democracia”, como o apelidou Die Welt(Sarrazin é membro do Partido Social-Democrata Alemão – SPD), se expressa em tom monocórdio, ignorando graves e agudos. Primeiro, dedica-se a retificar a impressão segundo a qual ele teria trocado um inimigo público por outro, a figura do muçulmano retraído pela de sibarita grego: “Assegurar a paz entre os povos consiste em respeitar o direito de cada um a viver como bem entende. Se os gregos querem fazer uma sesta antes de trabalhar, se querem sair do trabalho três horas mais cedo para conviver mais com a família, isso é um problema deles. Com a condição de que eles não peçam depois que equilibremos a conta”. Ao ser questionado sobre a origem desse conhecimento da intimidade do povo grego, o economista respondeu: “Li um artigo muito interessante sobre isso em Der Spiegel”.
Enquanto Sarrazin segura a vontade de espirrar, em um esforço considerável que arranca lágrimas de seus olhos, repensamos as palavras da véspera proferidas no bar Zur Traube, em Neukölln, um bairro popular de Berlim. “Os gregos levam uma vida suave e se aposentam aos 50 anos. Pelo menos, é o que dizem os jornais. Não me incomoda, eu faria como eles, mas não acho normal que a Alemanha pague sua dívida. Seria somar problemas demais, você não acha?”. Essas palavras não saíram da boca do banqueiro, mas de uma vendedora da rede de farmácias Schlecker, Martha Zwicker, de 48 anos, contratada no fim de 2010 por 7,5 euros a hora e demitida em março deste ano, pouco antes de os acionistas venderem a cadeia de drogarias.
Esperando que o plano de reconversão negociado pelos sindicatos se concretize, ela empresta um ombro às confidências desconexas de seu vizinho de balcão, Tino, que terminou sua jornada de trabalho na garagem ao lado. Ele também não tem uma boa opinião sobre os gregos: “No país deles só há corrupção e quadrilhas. Pagamos suas contas e eles nos tratam como nazistas!”.
Clichês na imprensa
Considerações como essa não surpreendem em um país onde 62% da população é hostil a qualquer tipo de plano de auxílio a Atenas.3 Desde a eclosão da crise grega no fim de 2009, a imagem clichê de uma Europa preguiçosa que mama nas tetas germânicas se propagou em todos os setores da sociedade, das elites dirigentes aos balcões dos bares, passando pelas redações de jornais. A cobertura do periódico Focus, cuja capa exibia uma Vênus de Milo mostrando o dedo sob o título “Os vigaristas da família euro”, mostrava o tom dessa discussão em fevereiro de 2010. As páginas da publicação construíram uma interpretação da crise que foi utilizada em seguida, com mais ou menos nuances, por todos os meios de comunicação hegemônicos. “Aparentemente, o que dizem os jornais é verdade: vocês só aceitam trabalhar em troca de gorjeta”, acusava o escritor Walter Wüllenweber em uma “carta aberta aos gregos”, publicada por Stern em 5 de março de 2010.
Com manchetes suculentas, como “defraudadores do Peloponeso”, “euro mussacá” e “aposentadoria de luxo dos gregos”, o jornal Bild Zeitung, do grupo Axel-Springer, forneceu aos leitores – estimados em 10 milhões de pessoas, ou seja, quase um alemão a cada cinco com idade para ler – uma interpretação cômoda da crise, à base de clichês que não contrariam muito os interesses dos bancos e de milhares de empresas. Essa “reportagem” de 26 de abril de 2010 resume o conteúdo: “O Bild [Banco Interamericano de Desenvolvimento] se rendeu ao país das bancarrotas e das aposentadorias de luxo, de defraudadores fiscais e aproveitadores”. Como não bastasse, o enviado especial jura ter conhecido um aposentado do correio grego que recebe “3.500 euros por mês”.4 Efeito garantido sobre o leitor, em particular se ele fizer parte dos 40% de assalariados alemães que vivem com menos de mil euros mensais.
Refúgio dos investidores
Os panfletos do Bild instalaram um burburinho de fundo que repercutiu também em seus concorrentes mais respeitáveis. Em 22 de maio deste ano, ao usar a manchete “O grego que dá medo reivindica caridade e ameaça a Europa” para se referir a Alexis Tsipras, dirigente da coalizão de esquerda Syriza, o jornal conservador Die Welt recorreu ao mesmo tipo de munição que o infranqueável Bild – que, por sua vez, publicou duas semanas antes uma foto de Tsipras com a seguinte manchete: “Se esse homem chegar ao poder, NOSSOS bilhões estarão em perigo!” (9 maio 2012). É esquecer rápido demais que os bilhões em questão não teriam se acumulado dessa maneira sem os desequilíbrios orçamentários que hoje Berlim denuncia, já que o excedente comercial alemão provém em grande parte do déficit de seus parceiros europeus.5 Ademais, desde o início da crise do euro, a Alemanha se tornou o refúgio dos investidores; assim, o país financia sua dívida com taxas de juros historicamente baixas. Segundo cálculo realizado pela versão digital do jornal econômico Les Échos (21 jun. 2012), “a base de custo desses empréstimos compensa praticamente todos os empréstimos outorgados a Atenas”.
Profissional comercial em um grupo farmacêutico e militante do partido de Angela Merkel (União Democrática Cristã – CDU), Otto Henninger, de 62 anos, torce o nariz diante das confissões “xenófobas” da grande imprensa. Mas também se inquieta por seu capital. “A Alemanha é o país que financia a maior parcela do plano de ajuda à Grécia, um buraco sem fundo no qual nós, os contribuintes, depositamos dezenas e dezenas de bilhões. Não é viável. Em última instância, também nossa economia está ameaçada”. Diante do pedido de que identificasse mais precisamente a quais ameaças se referia, o homem suspirou desgostoso. Na realidade, está preocupado com sua futura aposentadoria. Como 13 milhões de compatriotas, ele se inscreveu no programa de previdência complementar por capitalização instaurado pelo governo Schröder em 2001. Esse dispositivo lhe promete uma aposentadoria de fato confortável, mas baseada em parte em fundos de pensão “cuja solvência depende da boa saúde dos mercados europeus”. Daí o acompanhamento dessas questões por todos os Ottos Henninger do país.
“A verdade”
Os alemães se mostram pouco inclinados a compartilhar o destino dos “causadores de quebras”, mas se bronzeiam felizes nas praias gregas e consideram essa experiência suficiente para torná-los “bons conhecedores” das realidades locais. “Os gregos são bon-vivants, e nós gostamos disso. Mas também são sonegadores de impostos e escondem suas fortunas em contas no exterior.” Todos? “Sim, todos. Todos os que eu conheço, em todo caso. E eles mesmos dizem que são os culpados.”
Os gregos convidados a opinar nos meios de comunicação parecem dar razão a Henninger. “Claro que somos responsáveis”, assegura a escritora Soti Triantafyllou em entrevista publicada no jornal de centro-esquerda Süddeutsche Zeitung. A Grécia? “Um jardim de infância, uma sociedade de moleques imaturos” que de fato merece o martelo (4 jun. 2012). No mesmo dia, outro escritor grego, Nikos Domou, satisfazia os entrevistadores do Spiegelao dissertar sobre os problemas psicológicos de seus compatriotas: “Queremos ter tudo, aproveitar-se de tudo”.
Esse refrão é repetido por todos os jornais como se fosse “a verdade”, assim como o prestigioso Spiegel, convencido de que na Grécia “os funcionários se aposentam antes dos 50 anos” (Spiegel Online, 1º maio 2010). Não é tão difícil, contudo, checar a informação: bastaria ir até a embaixada grega em Berlim e conversar com um dos funcionários, Pantelis Pantelouris, ainda ativo aos 65 anos. Esse antigo resistente do regime dos coronéis, cuja redução de efetivos o obrigava a trabalhar sete dias por semana, muitas vezes até as 22 horas, está pronto para se aposentar. Da mesma forma que a maioria dos funcionários gregos, receberá uma pensão raquítica, equivalente a metade de um salário já amputado em 40%.
Generalização
Seu filho, Michaelis, está furioso. Nascido em Berlim e criado em Hamburgo, jamais se sentiu tão grego como nos últimos anos. “Cada vez lido pior com as zombarias, os insultos e as calúnias que proferem contra os gregos.” Jornalista independente, alimenta um blog de contrainformação no qual analisa os elementos de linguagem aplicados a seus compatriotas.6 Ele observa que “os meios de comunicação tratam os gregos como tratam os desempregados: por causa de uma ou duas fraudes no sistema de benefício social, aponta-se o dedo a todos os trabalhadores desocupados. É uma forma de sabotar as solidariedades possíveis entre os assalariados mal pagos e os mais pobres que eles”.
Pantelouris se pergunta sobre a “relação erótica” que os alemães mantêm com o dinheiro e suas economias. “A palavra ‘dívida’ (schulden) é muito próxima à palavra ‘erro’ (schuld). Esse parentesco semântico expressa uma visão de mundo: endividar-se é cometer um erro, um pecado. A dívida não é vista como uma ferramenta econômica eventualmente útil, e sim como uma maldição.” Talvez seja um vestígio traumático da República de Weimar, quando a hiperinflação obrigava os alemães a passar uma bolsa cheia de notas para comprar pão? “Se eles têm tanto medo da alta dos preços, é também pela repetição incessante de que eles deveriam ter medo.”
Um episódio recente ilustra essa hipótese. No início de maio, o presidente do Banco Central alemão, Jens Weidmann, declarou que o país poderia muito bem suportar uma inflação levemente superior à média europeia (2,6% ao ano). O comentário arrancou um grito de horror do Bild Zeitung, que publicou a seguinte manchete: “Alerta à inflação! Banco Central enfraquece o euro. Com que rapidez nosso dinheiro será consumido?” (11 maio 2012). A manchete vinha ilustrada com a fotografia de uma nota de mil marcos que datava de 1923. “É absurdo!”, indigna-se o blogueiro de Hamburgo. “Em uma Europa onde a maior parte das pessoas reclama por moedas, trata-se antes de uma deflação do que uma inflação!”
O fantasma da inflação, contudo, não é incoerente: caminha junto com a nostalgia dos tempos de ouro do deutschemark (marco alemão), quando a mais robusta das moedas europeias já continha todos os atributos de uma moeda única, mas a serviço exclusivo das economias merecedoras.
Mão de obra qualificada
Uma leve gagueira em sua dicção monocórdia trai a emoção que invade Sarrazin quando ele evoca as décadas do pós-guerra, durante as quais “reinava a paridade absoluta entre o marcoe as outras moedas de países satélites da Alemanha, como a Holanda, a Áustria e a Dinamarca”. Apesar de não ser favorável a uma saída à força do euro, como reivindica o pequeno partido Eleitores Livres, o ex-codiretor do Deutsche Bank tem o prazer de reforçar que “os excedentes comerciais acumulados pela Alemanha fora da zona do euro fazem que a moeda única seja cada vez menos vital em nossa economia” – ponto de vista bastante difundido entre as elites patronais.
Se por um lado a Europa não é mais motivo de entusiasmo econômico, por outro os empregadores alemães ainda permanecem muito ligados à necessidade de mão de obra qualificada e barata entregue em domicílio. A crise constitui, nesse sentido, um tipo de providência, porque impulsiona milhares de sulistas estrangulados pelo desemprego a buscar a sorte na Alemanha. Segundo as estatísticas federais, as ondas de imigração provenientes da Espanha e da Grécia cresceram, respectivamente, 49% e 84% durante o primeiro semestre de 2011. Esse fluxo de trabalhadores prontos a trabalhar praticamente reconciliaria os industriais com o ideal comunitário. “Bingo! Isso é a Europa, sim ou não?”, alardeava entusiasmada a gerente de uma fábrica de cola durante um fórum econômico, em dezembro do ano passado, enquanto o patrão dos biscoitos Bahlsen rememorava os belos anos da década de 1960, quando sua empresa “importava espanhóis às centenas”.7
Essa recepção calorosa, contudo, se choca com algumas restrições. Em março, o governo federal suprimiu por decreto os benefícios sociais aos quais os imigrantes europeus podiam ter acesso quando entravam em território alemão. “A cultura da hospitalidade não deve ser um convite à imigração por nosso sistema social”, advertia o porta-voz do Ministério do Trabalho. O espectro de uma onda de hispânicos e gregos utilizando os serviços sociais alemães parece, entretanto, sem consistência, já que o próprio ministério reconhece que as demandas de auxílio social se limitavam a alguns “casos isolados” – como o de Kostas Konstantinos, por exemplo. Desembarcado em Berlim em setembro de 2011 sem um centavo no bolso, esse técnico em informática ateniense de 35 anos havia solicitado um auxílio de 530 euros que lhe permitira acompanhar um curso de alemão e ambicionar “outro emprego, além de ser garçom em um restaurante grego”. Subitamente privado desse benefício e da cobertura de saúde, ele teve um ataque de estresse pela situação em que se encontrava e agora se pergunta como pagar as tarifas que o hospital está cobrando.
O Ministério do Trabalho contribui, porém, para a amizade entre os povos. Enquanto deixa Konstantinos na rua, concede uma subvenção especial às fundações de cinco grandes partidos políticos (CDU, SPD, FDP, Verdes e Die Linke) para que abram um escritório em Atenas. Como explica o ministério em um comunicado, essa operação deve ser interpretada como “um sinal da intensificação da amizade germano-grega”.
Olivier Cyran é jornalista.