Apagamento da participação muçulmana na história da Índia
As recentes decisões do governo indiano indicam uma deterioração democrática e a crescente politização da educação, da história e da memória dá indícios de um projeto autoritário de gestão popular
Líder populista com discurso de cunho nacionalista e fortemente religioso, o primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, voltou aos holofotes após a controversa decisão do seu governo em alterar materiais didáticos para suprimir informações julgadas inconvenientes. Em resumo, os livros de história e política distribuídos aos alunos deixaram de mencionar a participação de muçulmanos no decorrer da história da Índia, o caráter secular de sua fundação e os episódios de violência religiosa relacionados ao extremismo hindu, que culminaram no assassinato de Mahatma Gandhi.
O que se observa é a instrumentalização do passado em favor do domínio narrativo presente. Ao apagar da história e, consequentemente, da memória oficial os eventos e personagens que não se alinham à ideologia atualmente predominante, o governo indiano manipula a percepção identitária do país em prol de uma visão purista que exclui o que é considerado diferente. Não à toa, têm sido recorrentes as notícias de ataques a locais sagrados do Islã ou de agressões contra pessoas que professam a fé muçulmana dentro da Índia.
Em episódio semelhante, no início deste ano, as autoridades indianas proibiram a exibição do documentário britânico “Índia: a Questão Modi” no país, alegando resquícios coloniais e uma suposta campanha de ódio. A produção da BBC trata da atuação do atual primeiro-ministro na Revolta de Gujarat, ocorrida em 2002, quando um incêndio em um trem (posteriormente qualificado como acidental) levantou a ira da população hindu local, causando o massacre de mais de mil muçulmanos da província, considerados responsáveis pela tragédia, à época.
Com efeito, são bastante eloquentes as intenções políticas desse tipo de ação. Remodelar a história pátria e vetar a divulgação de questionamentos sobre eventos polêmicos são operações que se traduzem na tentativa de um apaziguamento social forçado e dotado de perigosa artificialidade. Ao mascarar a diversidade da nação indiana e pregar uma espécie de unitarismo religioso como norma, tem-se como objetivo uma padronização popular que facilita seu convencimento e manejo pela burocracia governamental. Negar a pluralidade é negar a democracia.
Ademais, a deturpação de fatos históricos minora a capacidade crítica da juventude indiana, que se vê impossibilitada de fazer uso da função exemplar da memória coletiva, a qual permitiria a devida meditação sobre erros passados a serem evitados e acertos pretéritos a serem repetidos ou até aprimorados. De fato, uma população com diminuta habilidade pensante equivale a um amálgama social débil e amplamente sujeita a manipulações.
Assim, em muito preocupam as recentes decisões do governo indiano, já que parecem indicar uma deterioração democrática dessa grande nação. A crescente politização da educação, da história e da memória dá indícios de um potencial projeto autoritário de gestão popular e de eliminação de qualquer figura opositora. Mais do que nunca, é imperativo desenvolver estratégias de reação por parte da sociedade civil e da classe acadêmica indiana, que também poderá se valer da pressão da comunidade internacional para obstar tão danosas ações. É hora de fazer história e não de apagá-la.
Nina Nobrega Martins Rodrigues, advogada e mestre em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo