As vacinas contra o Negacionismo
Uma análise crítica dos ataques fortuitos à Ciência e à Democracia, particularmente registrados durante a pandemia, são a evidência clara de que uma sociedade que não investe sobre seus próprios pilares é capaz de tudo, inclusive de se autodestruir.
O historiador israelense Yuval Noah Harari, autor de Sapiens: Uma breve História da Humanidade, percorre uma longa jornada em sua obra para mostrar que desde nossas raízes evolutivas até a era do capitalismo e da engenharia genética o Homo sapiens se “transformou no dono do planeta e no terror do ecossistema” e “está prestes a se tornar um deus, capaz de conquistar não apenas a juventude eterna como também capacidades divinas de criação e destruição” (p.437). Em que pese o argumento cientificista de Harari e sua conclusão de que somos deuses feitos por si próprios, tendo apenas as leis da física para nos fazer companhia, será que os eventos ensejados pela pandemia realmente nos permitem acreditar neste percurso? A disseminação de um vírus teria forçado nossa aproximação com a Ciência e com a exigência de uma Educação científica no espaço público? Ou, ao contrário, teria insuflado o aparecimento de uma legião de conservadores, dogmáticos e negacionistas, os quais estariam interessados em proteger a estabilidade de suas velhas crenças e a vigilância dos outros a partir de uma moralidade burguesa? Responder estas questões, então, pode ser o primeiro passo para descobrir a responsabilidade com o nosso próprio futuro e com a imagem de um animal que deixou de ser um mero símio para se tornar governante do mundo.
Especialmente nas últimas décadas, a Ciência moderna deixou de driblar os problemas inerentes ao seu método e suas ferramentas e passou também a preocupar-se do seu enraizamento no espaço político. Por quê? Porque foi justamente no espaço político, livre e com a fecundidade plural que lhe é própria, que a Ciência pôde opor-se aos padrões ingênuos e ao misticismo de seu próprio criador – um homem fraco e amaldiçoado pelo ressentimento de destruir os deuses que criou.
A Ciência, portanto, na medida em que se tornou uma prática discursiva racional assumindo a responsabilidade de sua própria direção, teve que ignorar o conformismo e a tradição da história humana para cultivar-se sobre a fecundidade do espírito criativo e do desvelamento dos mistérios. Afinal, como escreveu o filósofo da ciência Paul Feyerabend, raramente nos perguntamos o que faz com que a Ciência seja preferível a outras formas de existência, as quais usam padrões diferentes e obtêm resultados distintos, esquecendo que, agora, a Ciência já não é uma instituição particular, mas parte do tecido básico da democracia, exatamente como a Igreja foi no passado (Paul Feyerabend, A Ciência em uma sociedade livre, p.92).
Assim, no espinhoso labirinto da produção científica estão naturalmente as objeções globais que ocorreram antes e contra o próprio racionalismo, as vozes dos fantasmas negacionistas e, de forma nebulosa e espúria, o medo e a ansiedade diante do novo. Por que, então, preferimos que a política governe nossos espíritos enquanto negamos que a ciência possa governar nossos corpos?
Seria cômico, se não fosse trágico e decadente, pensar que seja possível a existência de espíritos livres em corpos enfermos e debilitados, cujo prognóstico é evitado a fim de amenizar a consciência sobre o próprio destino. Por isso, toda ameaça à ciência é, fundamentalmente, uma ameaça à democracia, uma vez que ambas dependem do espaço livre para explorar o solo da natureza e as fragmentariedades da coexistência.
O negacionismo, então, aparece como um sintoma do afastamento da comunidade científica do espaço público: cientistas higienizados, intelectuais fechados em seus laboratórios, os quais, raramente, abrem as portas à periferia do conhecimento para mostrar como fazem o que fazem. Obviamente, não se trata de um problema da comunidade científica, mas das condições democráticas que permitem a mútua relação destes agentes. Deveríamos esperar outras imagens e fantasias destas periferias do conhecimento sobre a atividade científica e, consequentemente, as crenças que dela se alimentam?
Vejamos, por exemplo, aquilo que o estudo divulgado pelo programa Todos pela Educação, com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad, 2021), revelou sobre o índice de analfabetismo registrado no Brasil desde 2012: 11 milhões de pessoas não sabem ler e escrever [segundo o IBGE, analfabetos são cidadãos que têm 15 anos de idade ou mais]; 41% das crianças de 6 e 7 anos não estão alfabetizadas; a região Norte concentra 13,9% dos analfabetos enquanto as regiões Sul e Sudeste apenas 3,3%. Democratizar o acesso à Educação e popularizar o acesso a produção do conhecimento científico, portanto, são elementos fundamentais para eliminar a aparente ânsia de destruição do irracionalismo negacionista.
O espaço da Ciência, então, assim como o espaço da Democracia, deve ser o espaço da contrariedade, da dialética e do confronto responsável. Em outras palavras, espaço de experimentação de ideais e manipulação de conceitos, pois apenas Ciência e Democracia são capazes de defender a convivência com ignorantes, dogmáticos e incautos. Ciência e Democracia são avessas a construção de muros, a incitação da violência, a propagação da imbecilidade, ao cerceamento da liberdade (do corpo e da alma), ao autoritarismo e a produção de discursos atentatórios à dignidade dos seres humanos. Para tanto, não basta reafirmar as utopias que elas carregam sobre si e sobre as arqueologias do futuro. É preciso dar-lhes o impulso histórico e político necessários para que elas continuem sendo os melhores instrumentos intelectuais para realizar o descortinamento do mundo e de nós mesmos.
Por isso, uma análise crítica dos ataques fortuitos à Ciência e à Democracia, particularmente registrados durante a pandemia, são a evidência clara de que uma sociedade que não investe sobre seus próprios pilares é capaz de tudo, inclusive de se autodestruir. Afinal, que tipo de racionalidade poderia explicar o combate animalesco às vacinas e a incitação ao ódio como forma de deposição da democracia?
A lógica dos negacionistas – tradicionalmente construída sobre a premissa que nega a realidade para escapar de uma verdade desconfortável – não pode ser combatida com os mesmos instrumentos e estratégias. A persuasão, a mentira, a vingança, a fraude, a manipulação dos desejos e dos sonhos, a politização da religião e a evangelização da política, para não falar da tirania do mérito, são truques estilísticos da mentalidade negacionista para combater a luz da ciência e os espíritos livres que, nos dizeres de Nietzsche é “aquele que pensa de modo diverso do que se esperaria com base em sua procedência, seu meio, sua posição e função, ou com base nas opiniões que predominam em seu tempo” (Nietzsche, Humano, demasiado humano, §225), mas que só podem se cultivar em um ambiente profundamente democrático.
O vírus da Covid-19, então, não será o último vírus que precisaremos como humanidade combater. Há outros que continuam tão contagiosos, perigosos e mortais, fazendo cotidianamente suas novas vítimas. Estes últimos, ao contrário do primeiro, se disseminam através do contato virtual e causam sequelas tão graves que só poderão ser tratadas pela tomada de autoconsciência. Assim, como disse o escritor James Bridle em A Tecnologia e o Fim do Futuro ao se referir a Walter Benjamin, para o qual não há documento da civilização que não seja documento da barbárie, “treinar as inteligências nascentes com os resquícios de conhecimento antiquado é codificar tal barbárie no futuro” (p.166). Vacinar-se contra o negacionismo através do cultivo da ciência e da defesa democracia é, portanto, um dever moral.
Léo Peruzzo Júnior é professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da PUCPR.