Atef Abu Saif: “a guerra sionista é uma guerra contra a memória”
O autor e ex-Ministro da Cultura da Autoridade Palestina vem para a Flip com os diários que escreveu em Gaza durante os ataques de 2023, publicados pela editora Elefante
Atef Abu Saif nasceu em 1973, no campo de refugiados de Jabalia, na Faixa de Gaza, dois meses antes da Guerra do Yom Kippur estourar. Durante a Primeira Intifada, quando o escritor tinha 15 anos, ele levou um tiro. “Minha mãe me disse que eu realmente morri por alguns minutos, antes de ser trazido de volta”, ele conta em Quero estar acordado quando morrer: Diário de um genocídio em Gaza, livro publicado pela editora Elefante em 2024. “Partes da bala ainda estão em meu fígado”.

Era o começo de uma vida marcada por guerras e pela ocupação israelense do território palestino. Pensar em como sobreviver é a norma, e só esse pensamento já é a prova sinistra “de que sobrevivi até agora”. Em 2014, ele estava em Gaza durante a Operação Margem Protetora, campanha militar de Israel que, segundo o Ministério da Saúde de Gaza, matou mais de 2300 palestinos e desalojou mais de cem mil pessoas.
Em 2019, a violência continuou. Cerca de 25 homens ligados ao Hamas espancaram Saif por causa de suas críticas à organização e sua relação com o Fatah, só um mês antes dele ser indicado como Ministro da Cultura da Autoridade Palestina, cargo que ocupou até o início de 2024. E foi por causa do cargo que ele estava em Gaza em outubro de 2023, quando a nova fase do genocídio israelense contra a Palestina começou.
Saif, que também é autor de ficção premiada ao redor do mundo – ainda sem publicação no Brasil – e professor universitário, ficou 85 dias na Faixa de Gaza, tentando não morrer na mira das bombas e drones de Israel. Os diários desses dias foram publicados, e ele vem para a Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) para discuti-los.
Atef Abu Saif vai participar da programação principal da Flip na sexta-feira, às 19h, na mesa “Não existe mais lá”, com participação da gaúcha Julia Dantas, com diários relatando a tragédia climática em Porto Alegre, e mediação de Bianca Tavolari.

Abaixo, confira a entrevista que Atef concedeu ao Le Monde Diplomatique Brasil por Zoom, enquanto estava na Espanha. A dor em seus olhos ao falar do genocídio era visível, mesmo com a baixa qualidade de imagem da webcam.
O que você quer dizer com “quero estar acordado quando morrer”, o título dos seus diários em português?
Na guerra, você morre de repente. Nós esperávamos morrer a cada minuto, e muitas vezes eu tinha a sensação de que, se eu morresse dormindo, meu corpo seria despedaçado e meus membros e minha cabeça seriam separados. Eu estava aterrorizado com o fato de que eu não teria um corpo quando eu morresse. Por isso, eu queria estar acordado, encarando a morte quando ela viesse me buscar.
Eu queria morrer respeitosamente. Eu não quero ser só um pedaço de carne. Eu quero estar acordado no sentido de que eu quero ter consciência do meu corpo quando eu morrer. E acredite em mim, Eduardo, quando eu digo que muitas pessoas morreram sem ter os corpos, que derreteram debaixo dos destroços. Muitos corpos se misturaram aos corpos dos outros. Em Deir al-Balah, ao sul da cidade de Gaza, eles estavam juntando a carne sem saber os nomes das pessoas, como se fosse carne moída.
Eu estava assustado com o fato de que eu não teria uma morte adequada. Em um dado momento, eu comecei a esperar – eu esperava, mas não aceitava – que eu ia morrer. E se eu precisasse morrer, a minha morte deveria ser respeitada, meu corpo deveria ser respeitado. Eu preciso de um túmulo para ser sepultado. Eu não quero ser deixado debaixo dos destroços. Parte da minha família em Gaza ainda está debaixo dos destroços, desde 15 de outubro, quase exatamente um ano atrás.
Nesse mundo, nós dormimos sem saber se vamos acordar ou não. Nesse mundo, você anda e não sabe se vai chegar no seu destino ou não. O medo do desconhecido é aterrorizante. E eu sempre quis só morrer normalmente. Mas na guerra, você não morre normalmente. A frase não é uma metáfora. Meu único desejo era só ter uma morte adequada, uma morte que não me deixasse em pedaços. Eu quero uma morte, morrer só uma vez.
Essa não é a primeira vez que você escreve um diário durante a guerra [Atef também escreveu The Drone Eats With Me, um diário durante os ataques israelenses de 2014, sem publicação no Brasil]. O que te levou a fazer isso de novo?
Eu não pretendia escrever o diário nos primeiros três ou quatro dias. A guerra estourou quando eu estava nadando na praia, e eu tive que sair correndo de lá. Era cedo da manhã e eu fui correndo até o meu carro. Quando eu cheguei à Casa da Imprensa, que depois foi destruída pelos tanques israelenses, eu fiquei sentado, sozinho, ouvindo as explosões e os ataques.
Então, ali eu tentei começar a testar essa metáfora: um homem está nadando na praia e a guerra começa. Um momento de entretenimento, de prazer, aproveitando a praia, a água calma e quente, vira um dos piores momentos da vida de alguém. Eu estava escrevendo, lembrando de como corri da praia. Eu estava descrevendo meus passos, porque até hoje eu ainda ouço meus passos na areia quando eu corria. Isso não é metáfora, é verdade.
No dia seguinte, eu tive vontade de elaborar aquilo, então comecei a descrever o que acontecia comigo. Eu não queria começar a escrever um diário, e só comecei a publicar esses textos depois de dez dias de guerra. Eu estava fazendo eles em inglês e árabe, e meus editores estavam pedindo o que eu estava escrevendo. Depois de três ou quatro dias de guerra, eu percebi que poderia morrer. Então, comecei a escrever textos mais longos. Caso eu morresse, as pessoas poderiam encontrá-los.
Nós estávamos impotentes e desamparados nessa guerra. Eu vi o míssil caindo na minha frente, vi o prédio caindo, vi o teto da Casa de Imprensa caindo em nós. Eu vi os jornalistas mortos na minha frente no terceiro dia de guerra. Eu vi tudo. Então eu pensei que é bom que eu escreva porque, caso eu morra, as pessoas podem saber o que aconteceu comigo e o que eu fiz.
O que escritores fazem? Eles escrevem, mesmo na guerra. Então eu decidi que escreveria todo dia e publicaria, porque nós somos as vítimas dessa guerra. E eu queria que todos no mundo lessem sobre nós. Então eu comecei a escrever sobre as pessoas, as famílias e os amigos. Era a história do nosso esforço, para sobreviver apesar de tudo. Eram as nossas histórias, que a guerra queria que fossem esquecidas.
Em um certo momento, não havia mais jornalistas em Gaza. 174 deles foram mortos, incluindo meus amigos. Quando todos os jornalistas saíram da Cidade de Gaza e foram para o sul, aquilo que nós estávamos escrevendo estava contribuindo para iluminar a verdade e mostrar o que acontece no genocídio que está acontecendo em Gaza.
Você disse que escreveu para que as pessoas soubessem o que está acontecendo em Gaza. Isso me lembra uma frase sua, nos diários, quando você escreve que “a cada ataque, as memórias se espalham junto com os destroços”. O que os palestinos fazem para preservar essa memória?
Parte dessa guerra é uma guerra contra a memória. Quando Israel ataca Gaza, eles não matam só as pessoas, matam o lugar. É uma tentativa de eliminar as raízes dos palestinos, que os conectam ao seu local, que hoje é Gaza.
Eu sentia pena e tristeza. Eu escrevi romances sobre aquele lugar. E eu pensei que, se as minhas personagens pulassem para fora das páginas dos livros, elas não conheceriam Gaza. Elas não reconheceriam as ruas em que viveram. Todos os dias eu estava vendo esse lugar morrendo, deformado. Todos os dias Gaza estava perdendo parte de seu caráter e de seu espírito. Todos os dias Gaza estava perdendo partes de seu corpo.
Todo prédio é uma memória. Cada casa não é só um salão, um quarto, uma cozinha e um banheiro. Cada casa é um armazenamento de memória. Quando você destrói a cidade e as casas, prédios, ruas, jardins e estátuas, você destrói todas as memórias que as pessoas construíram em volta desses lugares.
Me aterroriza que essa guerra contra nossa memória tome forma em diferentes camadas. Como um intelectual palestino e um nacionalista, eu acredito que parte da guerra sionista contra nossa nação, desde 1948, é uma guerra contra a memória, contra nossa narrativa. Para fazer isso, primeiro eles tomaram nossas casas em Jafa, Haifa, Safad e outras cidades. Eles transformaram a casa do meu avô em um restaurante em Jafa, porque eles querem desconectar o espaço e o lugar das memórias de seus donos.
Você pode até entender porque, na guerra, alguém mata um soldado ou um miliciano, mas não dá para entender porque se destrói a maior biblioteca pública de Gaza. Por quê? Por que nove museus foram destruídos em Gaza durante a guerra? Por que atacaram a terceira igreja mais antiga do mundo, de Santo Porfírio, na cidade velha de Gaza, onde 18 cristãos palestinos foram mortos? Por que destruíram a mesquita histórica da Cidade de Gaza? Isso não faz sentido na guerra, mas há um sentido. O principal propósito dessa guerra é eliminar a memória do espaço, desenraizar as memórias do solo porque você quer mudar o espaço.
Isso não é um desenvolvimento recente. Eles estão fazendo isso há cem anos, desde que o projeto sionista começou na Palestina, quando começaram a tomar nossos territórios e roubar nossos sítios arqueológicos.
A batalha narrativa é uma das batalhas fundamentais contra nosso povo e nossa existência nesse país.
O seu primeiro livro publicado no Brasil é essa coletânea de diários, mas você também é um autor de ficção, escrevendo romances e contos sobre a Palestina e a vida dos palestinos. Você enxerga sua obra ficcional como um tipo de declaração política? Há algum papel possível para ficção num genocídio como esse?
A cultura é uma ferramenta política. A dança, as roupas tradicionais, a linguagem, o dialeto, isso é parte da resistência contra a ocupação. Eu acredito no papel da cultura, não só da escrita, para enfrentar o genocídio e a limpeza étnica.
Se você não se agarra à sua cultura, seu caráter, aquilo que te distingue, se perde. Eu disse que uma das principais batalhas de Israel contra o nosso povo é de narrativa, de narração. Parte disso é linguístico, como mudar os nomes dos lugares, já que os nomes dos lugares os lembram da nossa história ali, porque datam de seis mil, cinco mil, quatro mil, três mil anos atrás.
A cultura é o DNA da identidade nacional. O que diferencia os palestinos de outras nações, incluindo árabes, é como nos vestimos, nossos bordados e estampas, nossas canções nacionais, as histórias que nossas mães nos contavam. Todas as nações têm suas próprias características e sua própria cultura.
Eu sempre vou acreditar no poder das palavras e da escrita. Normalmente, os palestinos lutam com palavras, com música. Muitas das nossas canções nacionais eram bem políticas durante o controle otomano, depois britânico e depois israelense. Mesmo que sejam canções de amor, ainda têm conotações políticas.
Israel percebe a importância disso, então eles começam a roubar nossa cultura. Roubam nossas roupas e matam nossos autores e nossos jornalistas, porque eles não querem ninguém transmitindo a verdade sobre o que está acontecendo.
O que é ficção? Ficção é sobre a vida. Eu estou escrevendo sobre as pessoas de Gaza, descrevendo suas vidas e o espaço que habitam. O que sobrou de Gaza, agora que foi destruída? As imagens dos fotógrafos anteriores e as descrições dos autores.
Eu não estou dizendo que a cultura deveria servir à política, mas sim que ela deveria servir ao esforço nacional.
Já faz um ano que a fase mais recente da guerra começou, mas ela não parece estar parando, e sim se expandindo. Israel agora está bombardeando o Líbano e a Síria, e o Irã bombardeou Israel. Quais são os maiores perigos que o Oriente Médio vai enfrentar nos próximos dias?
O maior perigo que o Oriente Médio está enfrentando é [Benjamin] Netanyahu. Ele é um homem que quer queimar tudo ao seu redor. Quando ele foi visto por todos como um criminoso de guerra e considerado um fracasso pelos israelenses porque não conseguiu libertar um prisioneiro em Gaza, ele destruiu Gaza e matou os civis. Quando toda a comunidade internacional passou a enxergá-lo como alguém que não quer um cessar-fogo e sim mais guerra, ao invés de parar ele começou outra guerra.
Netanyahu não quer negociar com os palestinos. Ele nunca negociou, desde 2011. O seu interesse é que haja mais guerra na região. Nós, os palestinos, estamos sofrendo com guerra há cerca de cem anos. Agora, a comunidade internacional deve dizer se está disposta a deixar Netanyahu destruir a região. Porque, se for para Israel decidir, eles não vão se importar.
Todo o mundo pede para Israel parar a guerra, e Israel diz não. Israel é o único país do mundo que nunca pôs em prática nenhuma resolução ou norma internacional. Mesmo se o mundo todo mandar algo, Israel não vai fazer. Eles só vão fazer o que for do interesse deles, e aparentemente o interesse deles é contra o desejo de todo o universo, e infelizmente ninguém pode dizer “não” a eles.
Numa entrevista sua, quando você ainda era Ministro da Cultura da Autoridade Palestina, você disse que seu trabalho era criar nova esperança. E agora, dá para criar esperança olhando para o passado do povo palestino?
Claro. Se você não tem esperança, você não sobrevive. A esperança é a única coisa que nós temos como humanos. Se nós, palestinos, não acreditássemos no futuro, poderíamos morrer ou desaparecer no próximo dia que tentarem nos desenraizar da nossa terra. A esperança é essencial para a nossa continuidade como seres humanos. Nós, palestinos, conhecemos e entendemos o papel da esperança nas nossas vidas.
Israel está há 60 anos ocupando nosso país. Eles podem ocupar mais cinco, dez anos… e daí? Ainda é o nosso país. Nós não temos outro lugar para ir. Não queremos tomar outros países, não estamos buscando territórios para comprar. Nós queremos nosso país de volta, queremos viver em paz. E se você quer viver em paz conosco, seja bem-vindo.
Como nós podemos resolver esse problema? Ou pela continuação da guerra, ou pela paz. Infelizmente, a comunidade internacional não está disposta a intervir para impor a paz a Israel. Quando a Palestina e Israel fizeram um acordo de paz, nos acordos de Oslo, os israelenses mataram seu primeiro-ministro [Yitzhak Rabin]. Nós não matamos [Yasser] Arafat [ex-presidente da Autoridade Palestina]. Nós o recepcionamos com flores em Gaza. Violência só pode trazer violência. Estabilidade pode trazer mais estabilidade, e conversas sobre paz podem gerar mais conversas sobre paz.
Eu estive presente em quase todas as guerras em Gaza desde o meu nascimento, em 1973. E, mesmo assim, eu acredito que o futuro pode ser melhor. Ele pode não ser, mas eu estou sempre buscando um futuro melhor para mim e os meus filhos. E eu não vou desistir. Desistir significa deixar minha terra, e eu não vou fazer isso. Eu amo a Palestina. Gaza não é a cidade mais linda do mundo, nem a mais próspera, mas, para mim, ela é.
Eu não quero outro país. Eu não sou um estrangeiro, essa é a minha terra. E eles não podem arrancar as minhas raízes daqui. E, por causa disso, eu acredito que nós podemos ter um futuro melhor.
Nos primeiros dias da guerra, você voltou para o seu apartamento em Jabalia e puxou Anna Kariênina da prateleira. Esse detalhe logo me chamou a atenção, porque o romance é meu livro favorito. Um russo do século 19 escreveu um livro cheio de especificidades sobre sua cultura e seu tempo, e conseguiu tocar um palestino e um brasileiro. Será que a arte pode ser um meio de união, um farol que aponta para soluções pacíficas?
Boa literatura sempre vai importar. E boa literatura não está ligada a uma cultura específica. Bons autores são lidos no mundo todo. E mesmo que eles não escrevam com todas as pessoas em mente, a boa escrita sempre faz sentido para todo mundo.
Nós, humanos, compartilhamos uma memória. Eu sou um autor palestino que escreve sobre Gaza, mas eu estou escrevendo sobre um ser humano em Gaza. Esse ser humano pode estar em São Paulo, em Gaza, no Cairo ou em Berlim, tanto faz. A boa escrita é sobre a condição humana.
No fim do dia, todos nós somos um. Somos bilhões de versões da mesma pessoa. Nossas vidas são todas iguais. Sobre o que é a literatura? Amor, ódio, morte, vida… esses são os quatro tópicos principais. E no meio disso temos a luta, o conflito, aquilo que faz a literatura ser boa.
Eu espero que o que eu esteja escrevendo não seja só escrito para os palestinos. Eu espero que pessoas no Brasil, na Espanha, na Itália, na Índia e na África também gostem. Porque a boa literatura deveria fazer sentido para todo mundo.
Eduardo Lima é um jornalista de São Paulo. Atualmente, ele escreve sobre ciência, história e clima para a revista Superinteressante.