Atlas das situações alimentares no Brasil
Confira resenha do Atlas das situações alimentares no Brasil: a disponibilidade domiciliar de alimentos e a fome no Brasil contemporâneo, de José Raimundo Sousa Ribeiro Junior, Mateus de Almeida Prado Sampaio, Daniel Henrique Bandoni e Luiza Lima Silva de Carli (Editora Universidade São Francisco, 2021)
“A alimentação é um tema que interessa àqueles que procuram conhecer a realidade brasileira” – a frase de abertura do Atlas das situações alimentares no Brasil: a disponibilidade domiciliar de alimentos e a fome no Brasil contemporâneo (Editora Universidade São Francisco, 2021), elaborado pelos geógrafos José Raimundo Sousa Ribeiro Junior e Mateus de Almeida Prado Sampaio, pelo nutricionista Daniel Henrique Bandoni e pela designer Luiza Lima Silva de Carli, indica o principal objetivo deste imprescindível material, sobretudo em um momento de desmantelamento das políticas públicas voltadas para a segurança e soberania alimentar nacional: resgatar um tema crucial para o entendimento da dinâmica socioespacial da população brasileira destacando a fome e os distintos regimes alimentares deste país de larga escala.
Dividido em duas partes, o Atlas apresenta, de uma forma original, uma síntese gráfica, cartográfica e textual de dados produzidos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) acerca da fome, e trata de questões relativas à alimentação a partir de suas principais pesquisas sobre o tema: a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) de 2002-2003, 2008-2009 e 2017-2018 e a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), 2004, 2009 e 2013. O material evidencia a diversidade e desigualdade de situações alimentares em território nacional, bem como a disparidade de dados entre o urbano e o rural, as distintas classes de rendimento, as regiões do país e entre os demarcadores sociais da diferença: raça e gênero.
Na primeira parte, intitulada A disponibilidade domiciliar de alimentos, demonstra-se como os dados acerca da aquisição domiciliar de alimentos são importantes referenciais de caracterização das situações alimentares brasileiras: a partir de uma análise minuciosa e com excelentes representações gráficas e cartográficas, os autores apontam para uma diversa e desigual aquisição de alimentos ao longo dos anos de análise, seja no meio rural ou urbano, entre as distintas classes de rendimento e as regiões e os estados do país.
Interessante a forma como tais dados são trabalhados pela equipe, pois além de conseguirem apontar, entre os dezessete grupos de alimentos analisados, para as desigualdades de aquisição relacionada à localização em território nacional (caso, por exemplo, dos pescados, laticínios, farinhas e féculas), também fazem um importante trabalho em olhar para as desigualdades de aquisição relacionadas à classe de rendimento (tais quais, entre outros, os alimentos preparados e misturas industriais, as hortaliças folhosas e florais e as frutas – consumidos em maior quantidade e frequência entre as classes de maior rendimento do país).
O Atlas também apresenta uma avaliação da disponibilidade domiciliar de alimentos com base na classificação NOVA – trazendo para o centro do debate a discussão sobre os alimentos in natura ou minimamente processados, ingredientes culinários processados, alimentos processados e alimentos ultraprocessados por região do país, por escala temporal e por classes de rendimento.
Na segunda parte, intitulada A fome e o risco de fome, os autores apresentam as suas considerações teórico-metodológicas sobre a mensuração do fenômeno, justificando a escolha dos termos “sem fome e risco de fome”, “risco de fome” e “fome (moderada e grave)” para explicitar a “extensão e a intensidade da fome no mundo contemporâneo”, em detrimento dos termos utilizados tanto pela Escala de Segurança Alimentar dos Estados Unidos, como pela Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA) – importantes pesquisas no campo político dos estudos alimentares, mas que, no entanto, recorrem abertamente ao uso de eufemismos (segurança alimentar marginal, segurança alimentar muito baixa, insegurança alimentar leve, moderada e grave) em vez do termo fome.
É a partir da análise dos dados da Pnad (2004, 2009 e 2013) e da POF (2017-2018) que o Atlas fundamenta sua análise sobre a evolução da fome e do risco de fome no Brasil contemporâneo: o país, entre os anos de 2004 e 2018, vive duas tendências opostas na evolução da fome. A primeira, entre 2004 e 2013, de redução de aproximadamente 3,7 milhões de domicílios em situação de fome; a segunda, entre 2013 e 2018, um movimento oposto, de crescimento de 3,6 milhões de domicílios em situação de fome, indicando para um total de 36,7% dos domicílios do país (em 2017-2018) marcados pela fome ou pelo risco de fome.
O detalhamento de tais dados aponta para o que os autores reconhecem como uma “territorialização complexa da fome”: em termos relativos, ela é maior no meio rural; já em absolutos, são nos domicílios do meio urbano que encontramos os maiores índices de fome e risco de fome no país. Essa relação também pode ser estendida para a própria regionalização da fome no Brasil: em termos relativos, historicamente temos as regiões Norte e Nordeste como os lugares com os maiores índices de fome; em termos absolutos, vemos a preponderância do fenômeno no Sudeste.
Dados igualmente importantes e trabalhados pelo Atlas são aqueles relativos à fome e risco de fome entre (i) a classe de rendimento – a última POF (2017-2018) indica um aumento de fome em 42,2% dos domicílios com renda per capita de até um quarto do salário-mínimo, ao passo que os domicílios com renda de mais de 1 salário-mínimo a proporção foi de 6,4%; e (ii) os demarcadores sociais da diferença: domicílios chefiados por mulheres e pessoas não brancas são os lugares nos quais podemos ver os maiores índices de fome e risco de fome no país.
Setenta e cinco anos separam a publicação do Atlas do livro Geografia da Fome (1946), de Josué de Castro. Nele, o médico e geógrafo pernambucano apresenta o que seria, provavelmente, o primeiro mapa da fome no Brasil. Os autores resgatam a obra e indicam que a virada do século XX para o século XXI transforma essa cartografia pioneira diante da existência de uma disponibilidade alimentar mais complexa e desigual nacionalmente – certos alimentos se tornaram a base da dieta cotidiana da população brasileira, sendo assim impossível propor uma regionalização alimentar contemporânea nos moldes anunciados por Castro. Por outro lado, nas considerações finais do Atlas, há uma proposta inédita de cartografia das áreas de fome e risco de fome no país, partindo de uma definição socialmente reconhecida do fenômeno, em correlação com a disponibilidade domiciliar de alimentos de acordo com a classificação NOVA, para os anos 2017-2018 (Mapa M27).
Ainda que todos os dados trabalhados tenham sido de pesquisas realizadas anteriores à pandemia de Covid-19 (com início em 11 de março de 2020 em território nacional), os autores finalizam a discussão tratando do tema e apontando para um cenário de maior agravamento da fome no país. Com base na publicação do Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil (Rede Penssan, 2021), o Atlas expõe o intenso crescimento da fome (de 16% para 20,5%) e do risco de fome (de 20,7% para 34,7%) no Brasil em 2020.
No entanto, o Atlas deixa claro que o crescimento da fome não foi consequência da chegada de uma pandemia no país, mas, sim, um resultado do “projeto conservador e ultraliberal” deflagrado após o golpe político-institucional de 2016, o qual aprofundou os níveis de desemprego, subemprego, informalidade e, consequentemente, o tamanho da pobreza no Brasil.
Assim, este material é imprescindível: primeiro, porque ensina a ler, interpretar e correlacionar dados de maneira crítica e didática; segundo, porque ajuda a entender um Brasil profundo ainda pouco conhecido.
Livia Cangiano Antipon é doutoranda em Geografia pela Unicamp e sua pesquisa aborda as situações alimentares em São Luís (MA). Atualmente é visiting scholar da City University of New York, no Center for Place, Culture and Politcs, com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).