Audiências de custódia presenciais são as únicas dignas deste nome
O sucesso das audiências de custódia como método de prevenção da tortura – que aflige majoritariamente corpos negros – é inegável, sendo seu enfraquecimento um nítido aprofundamento do racismo estrutural. Confira no segundo artigo da série especial sobre a realização de audiências de custódia por videoconferência
“existe um abismo semântico que separa a expressão ‘presença’ da ‘ausência’, efetivada na prática com as audiências virtuais”.
Luiz Henrique Almeida
Da previsão à realização
Toda pessoa privada de liberdade tem o direito de ser conduzida à presença de um juiz imediatamente após a prisão. É o que prevê a Convenção Americana de Direitos Humanos e o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos da ONU – tratados internacionais ratificados pelo Estado brasileiro e internalizados à ordem jurídica brasileira desde 1992.
No entanto, tal direito somente foi efetivado no Brasil 23 anos após a assunção daqueles compromissos internacionais, o que foi feito pela Resolução nº 213/15 do CNJ, que estabeleceu a audiência de custódia, a ser feita no prazo de 24 horas da formalização da prisão. Como ato judicial que é, conta com a participação de um defensor da escolha do preso ou da Defensoria Pública e de um membro do Ministério Público, sendo presidido por um juiz. Nessa audiência, apura-se a legalidade da prisão e a necessidade de sua manutenção, além de verificar se o preso sofreu algum tipo de tortura, maus-tratos ou arbitrariedades por ocasião da detenção.
Mobilizou o CNJ para elaborar aquela resolução o fato de o Supremo Tribunal Federal (STF), dois meses antes, ter reconhecido o “Estado de Coisas Inconstitucional” do sistema penitenciário brasileiro, notadamente superlotado e insalubre, onde impera a barbárie, tendo aquele tribunal apontado a superlotação como a fonte de diversos outros problemas.
Assim, a adoção das audiências de custódia representou avanço na apuração das condições em que se deram a prisão, bem como uma forma de refrear o superencarceramento em curso no país.
Por reconhecimento ainda que tardio de sua relevância, as audiências de custódia foram incluídas expressamente no Código de Processo Penal (CPP). Pelo projeto original, elas poderiam ser feitas por videoconferência, o que foi rechaçado pelo Parlamento, pela inadequação do vídeo às finalidades da audiência. Assim, as alterações do CPP não trouxeram tal previsão.
Com o advento da pandemia do Covid-19, porém, o debate tornou a surgir.
A tortura e racismo em dados
A realização das audiências de custódia constituiu oportunidade ímpar para dimensionar algo que já se intuía quanto ao funcionamento da malha criminal – aquela que deixa presas as sardinhas do sistema de justiça penal: jovens, negros, de baixíssima escolaridade e oriundos de regiões periféricas.
Dados coletados a partir de 2015 permitiram a constatação de que, embora previsto como crime hediondo, imprescritível e inafiançável, a prática da tortura permanece como uma realidade latente, por um lado, pela significativa incidência; por outro, pela manifesta impunidade.
Pesquisas da Defensoria Pública do Rio de Janeiro apontam que, entre 2017 e 2019, o percentual dos presos que afirma aos defensores ter sofrido agressões foi de quase 40%, patamar similar ao verificado em pesquisa da Defensoria Pública da Bahia, nos anos de 2017 e 2018.
No cenário nacional, o Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) aponta que 23,8% dos custodiados afirmaram aos juízes terem sofrido violência policial, sendo certo que tais declarações são prestadas na presença de agentes de segurança (que fazem a escolta das salas de audiências) em 96% dos casos, o que certamente amedronta os custodiados, que acabam optando por calar-se.
A violência revelada pelos números atinge majoritariamente os negros. No Rio de Janeiro, 80% dos que relatam terem sido vítima de agressões são autodeclarados pretos e pardos. Na Bahia, o percentual é de 91,7%. A repressão criminal violenta é uma permanente atualização da escravidão à brasileira.
Nesse cenário, para além de jogar luz no problema, as audiências de custódia efetivamente previnem tais práticas. Entre 2018 e 2019, houve redução de 23% no número de relatos de tortura nas audiências de custódia – é o que aponta pesquisa realizada pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro. A consolidação da condução imediata do preso à presença do juiz, com a participação da defesa e do Ministério Público (órgão responsável pela fiscalização externa da atividade policial), que verificarão a ocorrência de agressões, inibe a perpetuação de detenções violentas.
O arrefecimento da incidência de relatos de agressões no momento da prisão (prevenção da prática de tortura) não foi acompanhado de níveis significativos de acusações pela prática do crime de tortura (repressão ao crime de tortura), a revelar que a permanência da violência de Estado ainda é tolerada pelos atores do sistema de justiça. Nada obstante, o sucesso das audiências de custódia como método de prevenção da tortura – que aflige majoritariamente corpos negros – é inegável, sendo seu enfraquecimento um nítido aprofundamento do racismo estrutural.
A indesejada presença dos custodiados
A demora de mais de vinte anos para tirar do papel o direito de ser conduzido à presença do juiz revela que esse contato não é considerado uma prioridade do sistema de justiça criminal. De todo modo, uma vez consolidada a prática e demonstrados seus resultados, relacionados, sobretudo, à prevenção da prática da tortura – os índices de aprisionamento provisório permanecem altíssimos –, o advento da pandemia representa uma ameaça.
Em julho de 2020, já no contexto atual, o CNJ – ainda sob a presidência do ministro Dias Toffoli – regulamentou a realização de atos processuais por videoconferência, como forma de garantir o funcionamento dos serviços judiciários. Decidiu expressamente sobre o tema das audiências de custódia, vedando, no art. 19 da Resolução CNJ nº 329/20, sua realização por videoconferência, por motivos óbvios: a virtualização é incompatível com a “condução [do preso] à presença [do juiz]”. Entretanto, a vedação duraria pouco tempo.
Em 24 de novembro, o mesmo CNJ – agora sob a presidência do ministro Fux – revisitou o tema, para concluir que as audiências de custódia poderiam, sim, ser realizadas por vídeo, onde a tela de um computador separaria o juiz e a pessoa privada de liberdade “quando não for possível a realização, em 24 horas, de forma presencial”.
No julgamento, a maioria dos conselheiros salientara que a medida, por excepcional, se restringiria ao período pandêmico. Do mesmo modo, restringiu a videoconferência aos locais onde as audiências não estavam sendo realizadas de modo presencial. Todavia, as ressalvas não constaram do dispositivo modificado. Em outras palavras, o que o novo texto diz não foi o que a maioria dos conselheiros quis dizer.
O CNJ tem plena consciência que a videoconferência é medida excepcional. A imediação física, concreta, palpável, vívida e real é essencial para a constatação dos enormes contrastes que se fazem presente em nossa sociedade, historicamente estratificada e desigual. Sem o contato pessoal dos atores judiciais com o preso, que majoritariamente tem uma história de vida completamente diversa daqueles que decidirão sobre o seu caso, essa realidade continuará sendo algo distante, “coisa de TV”.
Somente no contexto dessa riquíssima proximidade se podem revelar olhares, gestos, expressões corporais e cheiros – como apontam os estadunidenses, para que possam “sentir o cheiro do medo” da pessoa presa – capazes de dar ao juiz a inteireza de dimensão do cotidiano de aprisionamento, violência, crime e castigo; tudo aquilo que forja a essência do ato de apresentação do preso ao juiz.
É na audiência de custódia presencial, única digna do nome, que o jovem, negro, pobre, periférico e sem estudos pode, sem demora, responder a homens e mulheres, brancos e privilegiados, aquilo que se considera necessário para a análise judicial da prisão, bem como para o controle da atividade policial e inibição da tortura e maus tratos.
Considerando a possibilidade legal de realização de outras audiências por videoconferência, o Poder Judiciário estaria assim autorizado a processar e condenar alguém sem que este pudesse jamais ter estado diante de um juiz. A par dessa nefasta possibilidade, a coibição da prática de tortura restaria comprometida de modo agudo.
A experiência com pessoas que sofreram tortura aponta que, de início, se sentem excessivamente atemorizadas ou envergonhadas em expor claramente o que lhes ocorreu. As agressões, assim, são constatadas primeiro por sua postura, por sua expressão corporal, antes mesmo que as marcas da violência possam ser alvo de exame, algo que nem sempre é possível, porque muitos métodos de tortura, maus tratos ou tratamento desumano ou cruel podem assim ser chamados justamente por não deixar marcas no corpo, senão na alma – da qual os olhos são o espelho que uma tela de computador já não deixará ver.
Terá a vítima do ato de violência, muita vez isolada entre os responsáveis por sua captura, numa delegacia ou num presídio, ambiente adequado para expor claramente o que lhe ocorreu a pessoas que se encontram já tão distantes de sua realidade social? E agora distantes também fisicamente? E quando a câmera for desligada, que poder terá o juiz? O relato de tortura não pode se confundir com um ato de coragem do torturado.
O Protocolo de Istambul, manual da ONU para investigação e documentação eficazes de tortura e outros tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes, estabelece que a coleta de depoimentos de potenciais vítimas de tortura deve cercar-se de cautelas destinadas à proteção contra represálias; garantia também da obtenção de relatos fidedignos do ocorrido.
Sem essas garantias, “arriscam-se a obter uma imagem falsa e incompleta da realidade. Arriscam-se a colocar em perigo detentos que podem nunca mais vir a visitar. Arriscam-se, ainda, a fornecer um álibi aos autores de tortura”, que podem alegar que o magistrado indagou sobre tortura e nada foi constatado. O Protocolo alerta para o fato de que “a ideia de que algumas provas são melhores do que provas nenhumas não é válida no trabalho com reclusos que podem ser postos em risco por prestar depoimento”.
Ressalte-se que, em 2012, o Subcomitê de Prevenção à Tortura (SPT) da ONU, em seu relatório sobre visita ao Brasil, externou grave preocupação com a falta de independência dos Institutos Médico-Legais, afirmando que sua subordinação à Polícia ou à Secretaria de Segurança Pública comprometeria a autonomia dos peritos, e poderia desencorajar as vítimas de tortura a prestarem queixa. Em nova visita do SPT ao Brasil em 2015, a mesma recomendação foi reiterada, ante a ausência de avanço na situação.
A mera realização de perícia sobre a pessoa presa, assim, não é suficiente para prevenir e reprimir a tortura. É imprescindível a audiência de custódia – presencial, pelo exposto.
No Brasil, onde a violência da tortura machuca majoritariamente corpos negros, ela se revela como permanência inerente e estrutural da formação social brasileira. O passo que se dá na direção contrária da coibição dessas práticas é o mesmo que se dá na direção da sua perpetuação. É aí que se encontra o retrocesso da normalização das audiências de custódia pelo método da videoconferência. Em larga medida, chama-se de estrutural o racismo brasileiro porque é estruturante e estruturado, de e por tais práticas.
Por isso, apenas as audiências de custódia presenciais são dignas desse nome. Se feitas por vídeo, já não podem ser chamadas assim, porque não custodiam o preso, a legalidade, a necessidade da prisão, nem contribuem para coibir a tortura e abusos. Nas palavras dos conselheiros André Godinho e Ivana Farina Navarrete Pena, na sessão que editou o texto original da Resolução CNJ nº 329, “para que as audiências de custódia cumpram seu papel como tal, se mostra imprescindível a sua realização de forma presencial, quando o juiz terá todas as condições de aferir as condições em que efetuada a prisão, bem assim constatar eventuais violações sofridas pelo preso. O ato é, pois, incompatível com o instrumento da videoconferência”.
A experiência bem sucedida de nove estados da federação
A situação sanitária vigente deixou claro que alguns serviços podem ser adaptados ao sistema remoto, sem qualquer alteração da qualidade, enquanto muitos outros não. É o caso da audiência de custódia.
Comungando esse entendimento, nove estados da Federação as vêm realizando regularmente – presencialmente, como deve ser, observando, para tanto, um rigoroso protocolo sanitário, para que o ato possa transcorrer com reduzidas chances de contaminação.
O estado do Rio de Janeiro foi pioneiro na retomada, ocorrida ainda em 3 de agosto de 2020. As audiências de custódia são realizadas sete dias por semana em todo o estado.
Diversas reuniões foram realizadas até que o esforço conjunto do Tribunal de Justiça, da Defensoria Pública, do Ministério Público, da Secretaria de Administração Penitenciária, da Polícia Civil, dentre outros, amparados em pareceres técnicos das autoridades sanitárias, levou à bem sucedida retomada das audiências de custódia.
Equipamentos de proteção individual são obrigatórios a todos que atuam nas centrais, e são também fornecidos a todas as pessoas conduzidas à audiência. A organização dos espaços e procedimentos de entrada e saída de presos foram reformulados, para observar o distanciamento social. Todas as adaptações tiveram baixo custo relativo, mas foram plenamente eficazes para garantir a realização do ato – essencial, reitere-se – e a segurança dos presentes. Até o momento, não há notícia de contaminação em audiências de custódia no estado.
Nos estados em que ainda não foram retomadas, cumpre discutir, além da (im)prestabilidade da audiência por vídeo para os fins a que se destina, a razoabilidade de se obrigar a sociedade a arcar com os custos da instalação de infraestrutura necessária. Discussão que adia, sobretudo, aquela outra mais importante – e priorizada nos estados onde a audiência presencial foi retomada: a das medidas de adaptação aos protocolos sanitários.
A aquisição de câmeras de alta definição – de visão 360º, ou mais de uma por sala de audiências, como foi exigido pelo CNJ –, a instalação de conexão de internet de alta velocidade em todos os presídios ou delegacias, e de infraestrutura para suportar a conexão e o consumo energético, nitidamente, são medidas de alto custo e difícil concretização no Brasil, país em que, recentemente, todo um estado da federação ficou por dias sem luz.
A videoconferência imporá ao orçamento público mais um gasto, e diante de um gravíssimo cenário econômico, que fez com que as contas públicas despencassem.
Não só a realidade dos presos que são apresentados à audiência de custódia é plural, mas também a do Brasil, que conta com Estados que possuem diferentes níveis de riqueza e desenvolvimento.
Ao permitir a realização de audiências de custódia por videoconferência, o CNJ deu um passo em direção ao esvaziamento da essência do ato. Do ponto de vista institucional, dificulta a coibição da prática da tortura, desumaniza a prestação jurisdicional e diminui a acurácia na análise da legalidade da prisão e da necessidade de sua manutenção.
Sob a ótica das garantias fundamentais, pode pôr em risco a pessoa torturada e infirmar o combate ao racismo, além de contribuir para a manutenção dos altos índices de encarceramento provisório no país.
Por todos os ângulos que se olhe, a videoconferência nas audiências de custódia revela muito mais dificuldades e retrocessos do que avanços e acertos. A ampliação das bem sucedidas experiências estaduais no caminho responsável da retomada cautelosa das audiências de custódia presencial é a solução consentânea com a preservação dos direitos fundamentais e, num horizonte mais amplo, com os anseios de uma sociedade mais equânime, meta indistinguível da própria noção de Justiça.
Mariana Castro é defensora pública e coordenadora do Núcleo de Audiências de Custódia da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro;
Nathalia Parente é defensora pública e subcoordenadora do Núcleo de Audiências de Custódia da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro; e
Thiago de Luna Cury é defensor público e coordenador do Núcleo Especializado de Situação Carcerária da Defensoria Pública do Estado de São Paulo.
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