Brasil: retorno ao protagonismo sul global
O Brasil tem potencial para operar como construtor conjunto da emergência definitiva Sul Global e a saúde jogará um papel central nesse processo como uma ferramenta de desenvolvimento e integração regional.
A histórica vitória de Luís Inácio Lula da Silva no pleito presidencial brasileiro de 30 de outubro, pouco mais de dois meses após a ascensão de Gustavo Petro à presidência da Colômbia, abre novamente uma janela de oportunidades rumo à integração latino-americana e caribenha. Uma nova onda de governos progressistas, que tem pela frente o desafio de enfrentar um cenário internacional mais complexo que o da passada “onda rosa”, uma oposição muito mais à direita que a anterior e encontrar mecanismos para sobrepor-se às políticas norte-americanas de contenção à soberania regional.
No xadrez geopolítico atual, observa-se uma crise estrutural do capitalismo com uma potência nuclear envolvida em um contencioso no leste europeu, marcando o rito de passagem à uma nova ordem mundial, em que a parceria estratégica Russo-China emerge colocando em xeque décadas de hegemonia estadunidense e impondo às nações do sul do mundo o desafio de buscar formas de organização que viabilizem espaços de participação nos debates decisórios e influência na nova governança global.
A declaração final da recente cúpula dos Brics confirma o movimento de adensamento institucional do grupo, em composições como Brics Outreach/Brics Plus, assim como o Acordo da Parceria Econômica Abrangente Regional (RCEP) – maior acordo comercial do mundo -, a União Econômica Eurasiática, estruturas como a Organização para Cooperação de Xangai e o resgate do Pan Africanismo no seio da reemergente União Africana afirmam esta tendência, levantando profícuos debates sobre questões de economia política e desenvolvimento internacional.
A busca por mecanismos alternativos ao atual sistema de financeirização global – controlado pelos grandes fundos de investimento – tem alimentado discussões sobre propostas de comércio em moedas próprias, criação de divisas com lastro em commodities, bancos de investimento e desenvolvimento regionais, expondo uma disputa entre o capital produtivo, o financeiro/especulativo e o socialismo que será decisório para o futuro próximo, e a América Latina não pode perder o bonde da história.

A integração latino-americana como necessidade e a saúde como ferramenta
Após o rechaço a Área de Livre Comércio das Américas (Alca) e o fracasso do Acordo de livre-comércio da América do Norte (Nafta), na última década assistimos o desmonte da União das Nações Sul Americanas (Unasul), duros ataques a Comunidade dos Estados Latino Americanos e Caribenhos (Celac) e tentativas frustradas dos setores conservadores de criar novos arranjos como a Aliança do Pacífico e o Prosul. Ao mesmo tempo vimos um Mercosul paralisado após duas décadas de negociações com a Europa sobre um acordo de livre comércio que não avançou, e um nítido avanço do capital chinês na região que já avalia um acordo de livre comércio com o gigante asiático. A desastrosa cúpula de Los Angeles foi mais um claro sinal das equivocadas e impositivas políticas norte-americanas para o continente, que somado a uma OEA obsoleta e desmoralizada, marca o vazio institucional na região, exigindo profunda reflexão, rápida ação e responsabilidade das lideranças e movimentos no continente.
A saúde na região das Américas, de forma geral, está composta por sistemas fragmentados e subfinanciados, com graves problemas estruturais, que durante a pandemia de Covid-19 tiveram seus limites esgarçados, fragilidades e fortalezas expostas, com severos danos a seus recursos humanos. Demograficamente, a região encontra-se em processo de transição, com queda da natalidade e um nítido aumento da carga de doenças crônicas não transmissíveis, decorrente do envelhecimento populacional e com consequente aumento da demanda de serviços especializados. Pelo prisma epidemiológico, nota-se a persistência de doenças infecciosas e a reemergência de doenças que haviam sido erradicadas como o sarampo, com o agravante da diminuição na cobertura vacinal, e o avanço da pólio e da monkeypox. No espectro ambiental, observa-se o aumento da intensidade de eventos climáticos extremos, além dos históricos desafios políticos e sociais do continente com o aumento da fome, da insegurança alimentar e da violência.
Diante desse cenário, com o crescimento de eventos biológicos em larga escala e a necessidade de enfrentar as desigualdades sanitárias e socioeconômicas gritantes em nosso continente, a saúde afirma-se como uma importante ferramenta de desenvolvimento sustentável, democrática e de integração regional.
O resgate do protagonismo brasileiro
A retomada da autoridade do Brasil como interlocutor com voz ativa no cenário regional e global no campo da saúde passa, em primeiro lugar, por reordenar a casa. O próximo governo precisa ser fortemente pressionado pelos movimentos populares, movimentos sanitários, entidades, conselhos e organizações não governamentais para definitivamente reconhecer que o acesso universal a serviços integrais de saúde é um direito fundamental das pessoas e não uma mercadoria cuja distribuição segue as leis de mercado. A saúde deve ser uma prioridade, compreendida como instrumento civilizatório, de cidadania e soberania e o enfrentamento aos Determinantes Sociais da Saúde um indutor da redução das iniquidades.
Revogar a Emenda Constitucional 95, investir no SUS, priorizar a atenção primária, valorizar seus trabalhadores e trabalhadoras – que foram a principal barreira de contenção a pandemia -, qualificar a gestão, fortalecer a participação e o controle social, ampliar o debate sobre a regionalização e a digitalização, além de desenvolver um complexo econômico e industrial da saúde (CEIS) são algumas das muitas tarefas a serem levadas a cabo.
Em âmbitoregional, a reconstrução e reformulação das instituições – principalmente a Unasul e a Celac – são tarefas prioritárias. O resgate da Unasul e a retomada dos trabalhos de seu braço para a saúde, o Instituto Sul-Americano de Governo em Saúde (ISAGS), precisam ser pautadas e o Brasil tem capacidade para liderar este processo. O ISAGS, que teve suas atividades suspensas em 30 de junho de 2019, nos legou um conjunto de experiências exitosas, como a participação na estruturação do Banco de Preços de Medicamentos (BPM) e o Mapa da Capacidade de Produção de Medicamentos que certamente teriam impactado positivamente na definição das políticas para enfrentamento a Covid-19. Ficaram também aprendizados que devem ser resgatados, como seu papel de centro disseminador de conhecimento na formação de recursos humanos e lideranças pensando a governança sul-americana em saúde, a defesa da democratização do direito à saúde na região e o suporte estratégico na definição de posições conjuntas dos estados sul americanos.
Durante a 30ª Conferência Sanitária Pan-Americana, realizada em Washington, em 28 de setembro, o experiente sanitarista brasileiro Jarbas Barbosa foi eleito diretor geral da organização de saúde pública mais antiga do mundo, com a árdua tarefa de liderar a entidade na região das Américas em um momento histórico. Com muitas lições aprendidas na pandemia, mas com a necessidade de definir qual será o papel da Organização Mundial da Saúde (OMS) em nível de governabilidade global e os limites de interferência dos atores privados, a entidade precisa ser reformulada, já que vimos durante a pandemia suas recomendações técnicas, em muitos países membros, serem suplantadas por interesses de atores econômicos e políticos, em uma forte tensão que se não enfrentada poderá comprometer a capacidade de articulação, de governança internacional e de resposta global às próximas emergências sanitárias.
Quero destacar a importância de um instrumento presente há mais de 20 anos na composição do Ministério da Saúde, a Assessoria de Assuntos Internacionais de Saúde (Aisa), que mantém estreitos vínculos com o Ministério de Relações Exteriores fortalecendo a política externa brasileira, principalmente, nas áreas de cooperação técnica internacional em saúde e cooperação humanitária.
Na cooperação internacional temos acúmulo suficiente e força institucional para liderar iniciativas solidárias de intercâmbio no campo do conhecimento, tecnologia e inovação, respeitando a diversidade e soberania dos países do sul global, além do potencial de liderar a adoção de práticas ambientalmente sustentáveis na revolução científica tecnológica necessária para modificar a matriz produtiva, avançar rumo ao Ceis e diminuir a dependência nacional e regional principalmente em imunobiológicos e Insumos Farmacêuticos Ativos (Ifas).
Na perspectiva humanitária, a situação de países e populações com suas necessidades básicas em saúde negligenciadas é crescente, vítimas de catástrofes naturais ou de origem humana, e necessitam de ajuda externa para enfrentar estes desafios. Uma realidade presente não somente nos países periféricos, mas também nos países centrais do capitalismo, comprovando que ninguém está livre de necessitar apoio. Com sua tradição pacífica e a saúde como um direito, o Brasil tem potencial de fortalecer os princípios da cooperação humanitária e com espírito solidário tornar-se um modelo de internacionalismo.
A Aisa possui um quadro técnico experiente e pode desempenhar um importante papel neste processo de resgate do protagonismo brasileiro. Suas conexões com o Centro de Relações Internacionais em Saúde (Cris) da potente Fiocruz, a Agência Brasileira de Cooperação (ABC) do Ministério de Relações Exteriores, a própria Opas, além de outros atores estratégicos como centros, núcleos, think tanks vinculados às Fundações e Universidades, permitem, juntos, repensar a cooperação em desenvolvimento brasileira, em aras de elevá-la -não somente no aspecto financeiro, mas também no suporte político e no campo das ideias- a patamares de contribuição que impactem vidas e fortaleça os avanços rumo aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentáveis (ODS).
Em suma, o Brasil tem o potencial de operar como construtor conjunto da emergência definitiva do sul global e a saúde jogará um papel central neste processo. O resgate de nossa tradição pacificadora como nação e da capacidade de diálogo e interlocução que historicamente caracterizou nossas relações internacionais devem ser alçadas a uma diplomacia da saúde ativa e altiva buscando a retomada dos processos de cooperação em saúde e dos mecanismos de coordenação regional, fundamentais em busca da soberania e da capacidade de resposta aos desafios do futuro onde o enfrentamento às iniquidades sociais, às mudanças climáticas e às futuras pandemias estão intrinsecamente conectadas.
Adriano Carneiro é médico de família e comunidade no Distrito Federal e mestre em Saúde Global pela Universidade de Barcelona.