Brasil: uma política educacional fundamentada em mitos?
Há vários mitos sobre a educação cuja aceitação é bastante ampla. Como consequência, tem-se um entendimento equivocado da realidade, que leva grande parte da população a julgar positivas propostas totalmente inadequadas. Desconstruir esses mitos é fundamentalOtaviano Helene, Marcelo T. Yamashita e Lighia B. Horodynski-Matsushigue
Mito 1 –A educação básica é majoritariamente privada nos países mais desenvolvidos. Mesmo nos Estados Unidos, comumente tomados como exemplo, nove em cada dez estudantes da educação básica estão em instituições públicas.1 Com raras exceções, a maioria dos estudantes de cada país frequenta instituições públicas.
Mito 2 – No ensino médio, predominam as escolas privadas, afinal os filhos de todos os meus conhecidos estudam em escolas que não são públicas. Cerca de 85% das matrículas no ensino médio estão em escolas públicas, a imensa maioria nas redes estaduais.
Mito 3 – O ensino superior é majoritariamente privado no mundo todo.Entre os países das três Américas, apenas o Chile tem uma proporção de alunos em instituições privadas maior do que a brasileira. A taxa de privatização média no mundo é metade da nossa. Nos Estados Unidos, a situação é exatamente a inversa da brasileira: enquanto aqui temos mais do que 70% das matrículas no ensino privado, lá o setor público detém mais de 70% das matrículas.
Mito 4 – O ensino fundamental está universalizado.O número de matrículas pode ser até mesmo superior à população na faixa etária correspondente a esse nível de ensino por causa das reprovações. Entretanto, de 15% a 20% das crianças deixam a escola antes da conclusão do ensino fundamental. Concluir o ensino fundamental é rara exceção entre a quinta parte mais pobre da população.
Mito 5 – O Brasil investe um percentual do PIB suficiente em educação pública.Os investimentos públicos diretos em educação no Brasil somam cerca de 5% do PIB. Embora esse valor seja significativamente maior do que o que se investia até uma década e meia atrás, ele é absolutamente insuficiente. Não raro, argumenta-se que há países desenvolvidos que investem percentuais do PIB parecidos com os nossos, sendo a Alemanha comumente citada, sugerindo que aqueles 5% seriam suficientes. Quem faz esse raciocínio esquece que o Brasil tem um percentual de pessoas na idade escolar muito maior do que a Alemanha: em cada ano de faixa etária correspondente ao ensino fundamental ou médio, a Alemanha tem menos do que 1% da população, enquanto o Brasil tem entre 1,5% e 1,8%. Mesmo que não tivéssemos atrasos escolares enormes, precisaríamos de um percentual do PIB destinado à educação pública bem maior do que o atual.
Mito 6 – Na educação pública, o problema é de gestão, não de recursos.Um exemplo pode servir para demolir esse mito. Os investimentos feitos pela Secretaria de Educação paulista, por aluno e por mês, em 2016, correspondem a algo entre R$ 400 e R$ 500 (incluindo pagamento de professores e demais trabalhadores, despesas com água, eletricidade, telefone, alimentação, material escolar, administração, manutenção predial, serviços de terceiros e tudo o mais de que um sistema educacional precisa). Não é possível conceber uma escola que funcione bem e trate adequadamente estudantes e professores com mensalidades dessa ordem.
Mito 7 – A MP n. 746 para o ensino médio melhorará o sistema.Essa medida provisória não apresenta soluções para nenhuma das dificuldades enfrentadas, como falta de incentivo aos professores (por exemplo, salários compatíveis com as responsabilidades), classes superlotadas, indisponibilidade para aulas de laboratórios e análise de textos seminais, entre tantas outras.
Mito 8 – Exames de proficiência e prêmios para professores cujos alunos obtêm bons resultados ajudam a melhorar o sistema escolar.Uma comparação entre o sistema educacional dos Estados Unidos, fortemente voltado à preparação de estudantes para testes e no qual os professores são punidos ou premiados em função do desempenho de seus alunos, e o da Finlândia, em que os professores são estáveis e as avaliações servem apenas para que eles possam acompanhar seus alunos, ilustra bem a falsidade desse mito.2 Apesar dessa diferença, nos testes internacionais os estudantes finlandeses se saem melhor do que seus colegas norte-americanos.
Mito 9 – O ensino superior tira recurso da educação básica.No Brasil, com pequenas variações de um ano para outro, cerca de 17% dos recursos públicos em educação são destinados ao ensino superior. Esse valor está abaixo da média mundial, que, segundo dados da Unesco, é de pouco mais de 20%. A maior parte dos países destina, dos recursos públicos educacionais, percentuais maiores ao ensino superior do que o Brasil e nenhum dos que destinam menos tem um bom sistema educacional.
Mito 10 – Instituições privadas de ensino superior custam menos, por aluno, do que instituições públicas com a mesma qualidade.Alguns levantamentos já mostraram que, entre as instituições públicas e privadas que oferecem o mesmo curso e qualidade equivalente, as primeiras custam menos.3 Além disso, as instituições públicas têm taxas de abandono menores e podem se instalar onde são mais necessárias, não apenas onde o poder aquisitivo da população é suficiente para viabilizar uma instituição privada.
Mito 11 – Estudantes do ensino superior nas instituições públicas são mais ricos do que nas instituições privadas.A segregação econômica ocorre ao longo de todo o processo educacional. No ensino superior, a elitização se manifesta pelo curso, não pela instituição. Por exemplo, as informações socioeconômicas obtidas nos Exames Nacionais de Desempenho de Estudantes mostram que estudantes de Engenharia e Medicina têm renda familiar cerca de três vezes superior à dos estudantes de Pedagogia. Entretanto, em qualquer um desses três cursos, a renda familiar média é maior entre os estudantes das instituições privadas do que das públicas.
Mito 12 – A PEC n. 241 não tirará recursos da educação.Evidentemente, enquanto não acontecer, será impossível provar que isso, de fato, é um mito. Portanto, ganharão a discussão aqueles cujos argumentos forem adotados pela grande mídia. Contudo, vários estudos mostram as enormes perdas de receita que a PEC poderá provocar na área de educação,4 corroborando outros estudos na mesma área, bem como na área da saúde.5 Se os próximos vinte anos forem parecidos com os passados vinte e se o que está preconizado na PEC for estendido aos estados e municípios, os atuais cerca de 5% do PIB para a educação pública poderão ser reduzidos a 3% no fim do período.
Otaviano Helene é Professor do Instituto de Física, presidiu a Adusp (Associação de Docentes da Universidade de São Paulo) por duas vezes. Foi presidente do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira) e é autor, entre outros, do livro “Um Diagnóstico da Educação Brasileira e de seu financiamento”, Editora Autores Associados.
Lighia B. Horodynski-Matsushigue é professora do Instituto de Física da USP, foi diretora do Andes – Sindicato Nacional e da Associação dos Docentes da USP.
Marcelo T. Yamashita é professor do Instituto de Física Teórica da Unesp.