Brasília: imagens de Três Poderes
As três são imagens que expressam não só como a história dos espaços é, ao mesmo tempo, a história dos poderes constituídos, mas também como uma estrutura arquitetônica ou urbanística pode assumir funções políticas diversas, muitas vezes opostas às ideias evidenciadas pela iconografia política da cidade
Numa época em que o número de retrocessos é sempre o dobro do de progressos, Brasília foi palco de imagens que, certamente, marcarão o século XXI. Em certa medida, essas imagens também evidenciam o poder do povo na ocupação do espaço, mas também uma suposta fragilidade do complexo arquitetônico-urbanístico da capital federal: a Praça dos Três Poderes de autoria do arquiteto, urbanista e professor brasileiro nascido na França, Lúcio Marçal Ferreira Ribeiro de Lima Costa [Lúcio Costa (1902-1998)] e o projeto dos palácios, que complementam a composição urbanística, de autoria do arquiteto brasileiro Oscar Niemeyer (1907-2012): o Palácio do Planalto, o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal, respectivamente símbolos do executivo, do legislativo e do judiciário, os três poderes da república que constituem a praça de mesmo nome.
Três imagens repetidas dezenas de vezes: a subida do novo Chefe do Executivo pela rampa do Palácio do Planalto, no dia 01 de janeiro de 2023, e a ocupação festiva da praça pela população; a invasão dos três edifícios acima citados por terroristas fantasiados de patriotas, no dia 08 de janeiro; e a travessia da Praça dos Três Poderes a pé pelas maiores autoridades do país para verificar os resultados da barbárie. As três são imagens que expressam não só como a história dos espaços é, ao mesmo tempo, a história dos poderes constituídos, mas também como uma estrutura arquitetônica ou urbanística pode assumir funções políticas diversas, muitas vezes opostas às ideias evidenciadas pela iconografia política da cidade.
Apoiando-se em Foucault, a arquitetura e o urbanismo podem ser ferramentas políticas usadas para gerenciar conflitos, como “técnicas de poder”.
Como ele ressalta, o panóptico, entendido como «espacialidade imanente nas relações de poder»[i], e o urbanismo, que entre 1830 e 1880 assumiu papel fundamental na gestão de problemas referentes ao espaço urbano, entre eles «a doença», em particular as epidemias de cólera, mas sobretudo “a revolução”, sob a forma das revoltas urbanas que agitaram a Europa nesse mesmo período.
Porém, a arquitetura e o urbanismo também podem ser fundamentos da política e do político, como reforça Ludger Schwarte em Philosophie der Architektur[ii]. Para Schwarte, a arquitetura do espaço público influencia os eventos revolucionários e possibilita a realização de tais ocorrências ao permitir ações específicas, manifestações, posturas e, até mesmo, a expressão da população como tema político. Na acepção desse autor, é a ágora que possibilita a democracia ateniense e não o contrário, pois são os espaços onde as pessoas se encontram que estabelecem os modos desse encontro e suas interações.
A sequência das três imagens de janeiro, como se emprestada do escopo cinematográfico, traz consigo temas relevantes para discussão. Quando decide questionar temas como os do poder e do conflito, a teoria política não pode deixar de se encarregar de uma reflexão arquitetônico-urbanística vinculada a uma filosofia do espaço, que tem na cidade (embora talvez fosse mais correto falar de espaço urbano) um de seus principais lugares de aceleração dos processos político-sociais. Portanto, se é verdade que a arquitetura e o urbanismo nem sempre ocuparam um papel e um lugar adequados na reflexão político-filosófica – salvo raros e excelentes casos, alguns dos quais já citados, – chegou a hora de reiterar que estes merecem ser investigados com essas bases.
O espaço nunca é matéria inerte. A relação entre espaço e sociedade é dialética e, com suas funções e formas, os elementos físicos desempenham um papel nada secundário na definição dos modos de convivência civil. As relações sociais são condicionadas pelas maneiras pelas quais os elementos no espaço se relacionam materialmente. Por isso, toda intervenção tem um valor político e as configurações que esses elementos assumem no espaço, sempre constituindo um campo semântico, podem alimentar e educar o espírito ou deseducá-lo, se forem corrompidas por adulterações incivilizadas, muitas vezes minando irremediavelmente sua beleza.
A primeira, uma imagem-manifesto, ratifica o ato de subir pela rampa como símbolo da ascensão ao poder. Ler tal evento através do filtro da rampa, como elemento arquitetônico, é explorar a noção de promenade architecturale, fundamental para o Movimento Moderno, como sequência cinemática e peripatética. Nessa sequência, tempo e movimento se impõem como dois fatores determinantes para definir o espaço da arquitetura e do ambiente que a acolhe e que introduz, através do movimento, um caráter narrativo, que desloca o escopo de uso da dimensão de espaço para a de tempo.
Como valor intrínseco do espaço arquitetônico, o percurso torna-se assim um processo nos limites da percepção física e um emblema do processo de percepção mental. O movimento de subir a rampa, portanto, é um dispositivo espacial que liga a arquitetura à paisagem a partir de sua diluição dada pela transparência literal (vidro) e fenomenal (do percurso)[iii], fazendo com que o observador seja, aos poucos, estimulado a contínuas descobertas e “enquadramentos” da paisagem circundante.
No caso específico da política brasileira, a “subida da rampa” tornou-se o símbolo de uma viagem ascendente ao poder, que faz com que o eleito assuma sua dimensão pública. Porém, no dia 01 de janeiro de 2023, o acesso pela rampa ao Palácio do Planalto deixou de ser uma conexão puramente funcional, entre a superfície pública da Praça e o interior do Palácio (que determina novas relações ampliadas e completadas entre arquitetura e paisagem), para se tornar um ato político deliberado de inclusão e de poder compartilhado na perspectiva refundadora de uma nação, um ato que pensa a sustentabilidade e novos modelos de inovação cultural inclusiva baseados na dialética do encontro.
A referência e a inspiração mais profunda são os princípios da própria Constituição Brasileira, que visam desatar os nós que levaram o país a ser econômica e socialmente injusto e, muitas vezes, a desrespeitar os direitos individuais comuns de todos os cidadãos e cidadãs, sem exceção. Esses nós, acirrados nos últimos quatro anos, levaram a nação a ser uma ‘formação social’ em um amplo espaço de medo e sem alma: o medo do ‘diferente’ e intimamente ligado à recusa que se lhe opõe, ao fechamento, à exclusão, e até ao ódio contra esse diferente. A consciência da existência de pessoas com deficiência ressignificaria o conceito inicial da rampa em edifícios públicos, já que hoje sua inclinação não atende às regras previstas na lei Nº 10.098, de 19 de dezembro de 2000 – que estabelece normas gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade de indivíduos com deficiência ou mobilidade reduzida, e dá outras providências.
A segunda imagem, tão forte quanto a primeira, expõe a violência dos atos estilhaçando os panos de vidro dos três palácios e, ao mesmo tempo, a fragilidade de uma arquitetura que tem na transparência o elemento característico de sua modernidade. O tema da transparência arquitetônica traz à tona um detalhe nada desprezível para os séculos XIX e XX, pois a “modernidade”, como nota Anthony Vidler, “sempre foi obcecada pelo mito da transparência” e pesquisou, “através […] dos materiais de construção, a permeabilidade do espaço e o fluxo onipresente de ar, luz e movimento”[iv].
Nessa nova era da utilização do vidro, também usado nas catedrais góticas, esse material surge em associação com o aço e novas técnicas, possibilitando a construção de grandes vãos, tornando possível a substituição da parede tradicional por efeitos estéticos extraordinários. No caso dos Palácios de Brasília, associado ao concreto armado, o vidro ilustra a estética da transparência preconizada pelo Movimento Moderno e permite a diluição do objeto arquitetônico na paisagem, que se torna também metáfora da transparência entre os três poderes e da conquista da própria identidade.
Brasília, portanto, cai no vórtice da origem da Nação Brasileira, pois a Nova Capital foi uma deliberada experiência de devir. Seus palácios foram concebidos seguindo postulados dessa orientação teórica, cujas primeiras realizações arquitetônicas datam do século XIX (pense nas passagens parisienses ou no Palácio de Cristal, em Londres, construído em 1851 para a Exposição Universal), exibindo uma real distância formal de tudo o que a precedeu com a clara ideia de uma nova civilização.
Hoje a transparência é ainda mais vigorosa graças às novas tecnologias que criam paredes que se transformam em “janelas” digitais ou membranas interativas: através de um aparato de sensores as superfícies captam os estímulos circundantes e reagem criativamente a sons, luzes e cheiros.
Do ponto de vista da composição urbanística, a Praça dos Três Poderes é o vazio urbano forjado pelos edifícios, das relações etéreas entre as massas puristas que conversam entre si e se relacionam com a paisagem do Planalto Central. A visão simultânea integral, decorrente da transparência dos palácios, permite que a transparência substancial e real assuma uma dimensão aparente e de organização. Na análise de Gideon, permite “a visão global dos objetos no espaço”[v]
Arquitetura é uma questão de diálogo, e a relação entre a superfície pública da Praça e os edifícios públicos – como os três palácios – elevam a arquitetura à sua mais alta essência. O vazio torna-se assim portador de significados da política, não só pelo valor memorial e de identificação que assume em termos sociológicos, mas também porque material e fisicamente esse vazio se manifesta como lugar de equidade entre os poderes. Em sua dimensão mais profunda, o projeto do espaço público representa o projeto político.
A terceira imagem, da travessia da Praça, no limiar da poética explicita uma versatilidade semântica que se confirma nas palavras de Italo Calvino (1972)[vi] quando afirma que «[…] cada vez que entra na praça encontras-te no meio de um diálogo», um diálogo social e cultural, que surge da possibilidade representada pelo espaço público de acolher o desenrolar da vida social, evocando a identidade coletiva de um povo.
Marco da Arquitetura e Urbanismo Modernos, Brasília foi inscrita pela UNESCO na lista de bens do Patrimônio Mundial em 7 de dezembro de 1987, sendo o único bem contemporâneo a merecer tal distinção.
Assim, se as duas primeiras imagens supracitadas explicitam a polêmica intrínseca da política e respondem às tensões decorrentes da complexa relação entre o exercício do poder e do espaço urbano, que funciona como um lugar central da ação política e das manifestações, a terceira imagem tem outra conotação. A imagem da travessia a pé da Praça dos Três Poderes coloca-se como esperança de que instituições fortes e representativas são capazes de sustentar simbolicamente a vida que ali se realiza.
Que esse ato de travessia da Praça – espaço público por excelência- seja símbolo de uma nova era, na qual o espaço público, ou seja, o espaço comum a todos, seja matriz de igualdade, democracia, construção civil e antropológica. Que esse ato possa constituir-se em elemento capaz de forjar novos processos políticos dentro de um espaço que nunca é neutro, mas sempre socialmente produzido.
Adalberto da Silva Retto Júnior é professor na Universidade Estadual Paulista – Unesp e coordenador do curso internacional de especialização lato sensu “Planejamento urbano e políticas públicas: urbanismo, paisagem, território”. Foi professor-pesquisador visitante no Master Erasmus Mundus da Universitè Panthéon Sorbonne Paris I (2011-2013).
[i] FOUCAULT., M., L’occhio del potere. Conversazione con Michel Foucault (1977), in J. BENTHAM, Panopticon ovvero la casa d’ispezione (1791), Venezia, Marsilio Editori, 2002, pág.10.
[ii] SCHWARTE Ludger., Philosophie der Architektur. Verf.angabe: Ludger Schwarte. Verlagsort: München [u.a.]. Verlag: Fink. Jahr: 2009.
[iii] ROWE, C. e R. Slutzky, Tranparency: Literal and Phenomenal, Part II, in C. Rowe, As I Was Saying. Recollections and Miscellaneus Essays. Texas, Pre- Texas, Cambridge, The MIT Press, Cambridge Massachussets-London England, vol. I, pág. 73-106.
[iv] VIDLER, A., Il perturbante dell’architettura. Saggi sul disagio nell’età contemporanea, tr. it. di B. Del Mercato, Einaudi, Torino, 2006, pág. 239.
[v] GEDION. S. (1941), Space, Time & Architecture: The Growth of a New Tradition, Harvard University Press, 1941; 5th ed., 2003, Pág. 484.
[vi] CALVINO, I. (1972), Le città invisibili, Einaudi Editore, Torino