Capitães da areia: até quando?
O quadro apresentado por Jorge Amado mantém-se perversamente inalterado desde 1937, e, quando uma voz se levanta para tentar aprofundar a questão, associando-a à falta de um regime mínimo de bem-estar social, um sem-número de vozes aciona suas metralhadoras em protesto contra aquilo que considera tentativa de justificaLeandro Gavião
Com publicação datada de 1937, a obra Capitães da areia, de Jorge Amado, repercutiu de forma polêmica, a ponto de ser censurada pelo Estado Novo varguista, sob acusação de propaganda comunista. Embora o comunismo fosse citado de forma lateral ao longo do texto, o enredo consiste numa crítica social relacionada a um problema latente de sua época: transgressões perpetradas por crianças de rua.
Ambientado em Salvador, o livro retrata a vida de um grupo de menores abandonados que, diante da repulsa da sociedade e da indiferença do Estado, acabam por recorrer a diversos tipos de crime para sobreviver.
Foi a primeira vez que o público brasileiro deparou com um garoto de rua assumindo o papel de protagonista de uma obra literária. Explorando questões como a desigualdade social e o abandono, bem como as violências dali decorrentes, Jorge Amado subverteu o senso comum, elevando os marginais à condição de heróis da trama.
Considerando sua inclinação política, podemos aventar com certa segurança que sua intenção era justamente incitar o leitor a se colocar no lugar daqueles jovens. Obviamente, não para defender a violação da lei, mas para realizar um esforço empático ao qual as pessoas estão pouco habituadas a se dedicar, deslocando-as da zona de conforto da sua realidade, impelindo-as a enxergar as práticas ilegais daqueles delinquentes como desdobramentos de uma estrutura social perversa.
A peculiaridade da obra está nessa capacidade ímpar de conduzir o leitor a se desfazer de julgamentos maniqueístas. Ao longo do texto, você pode se surpreender ao se dar conta de que está realmente “torcendo” para o sucesso daqueles anti-heróis.
Os personagens são órfãos miseráveis, menores oriundos de favelas e de famílias desestruturadas. São pessoas literalmente carentes e desprovidas de acesso aos insumos materiais básicos para sobreviver com um mínimo de dignidade. Ademais, são violentados pelas instituições coercitivas do Estado e desprezados pela sociedade. Assim, restam-lhe os meios ilícitos para assegurar a única coisa que sobrou: a vida.
Passados quase oitenta anos, as causas profundas elencadas pelo autor para descrever tal realidade não nos soam remotas. Pelo contrário, dispomos de uma tenebrosa familiaridade com elas. Embora essa não seja a mensagem principal do livro, é inegável que a exclusão social se converte em violência, e esta se torna potencialmente capaz de atingir não só o excluído, mas os outros indivíduos que cruzam seu caminho, visto que a reação do oprimido pode vir na forma de opressão.
Preconceito e simplismo
No Brasil hodierno, toda vez que chega o verão a história se repete. Como uma espécie de quadro paradigmático das consequências da exclusão endêmica, o distúrbio e o medo causados pelos arrastões nas praias da zona sul carioca e pelos assaltos nas ruas das regiões mais nobres ganham protagonismo nas manchetes dos jornais e nas redes sociais.
Excetuando uma minoria que consegue ter uma visão holística do problema, as propostas de soluções apresentadas para acabarmos com os “capitães da areia contemporâneos” são sempre simplistas e nunca tocam na estrutura do problema. Enquanto alguns colunistas sugerem a restrição da circulação de determinadas linhas de ônibus e a instalação de “catracas” nas praias, outros comentaristas optam por uma via ainda mais autoritária (para não dizermos protofascista): a eliminação física do indesejado via encarceramento, justiçamento ou qualquer outro método de alçada imediatista.
Não se vê o mesmo ímpeto para cobrar projetos de inclusão que devolvam, a longo prazo, a cidadania às gerações vindouras. Apesar do fracasso patente dos meios coercitivos atuantes – a saber: a repressão policial e a prisão –, a falsa solução amadurecida no discurso favorável à redução da maioridade penal permeia o imaginário coletivo brasileiro, não obstante as observações de intelectuais e de organizações de renome vinculadas à defesa dos direitos humanos, que alertam para a complexidade do problema da violência e para a incapacidade de resolvê-lo abrindo mão de políticas que visem atingir sua dimensão estrutural.
Em resumo, o quadro apresentado por Jorge Amado mantém-se perversamente inalterado desde 1937, e, quando uma voz se levanta para tentar aprofundar a questão, associando-a à falta de um regime mínimo de bem-estar social, um sem-número de vozes aciona suas metralhadoras em protesto contra aquilo que considera tentativa de justificar o delito.
Ora, não se trata de relativizar a violação da lei ou tampouco de culpar a vítima, mas de traçar um diagnóstico capaz de tocar no âmago de uma situação incômoda de viés eminentemente social, pois não é preciso ser acadêmico para constatar a existência de uma estrutura cruel que há décadas condena gerações inteiras ao fornecer-lhes opções de vida bastante limitadas, enquanto o modelo de sociedade no qual vivemos subjuga a cidadania ao poder de consumo. Nesse cenário, a revolta dos desfavorecidos que nada têm a perder é certa, haja vista que a violência é a única linguagem com a qual estão habituados desde a infância.
Em A utopia (1516), Thomas Morus já repreendia, com uma inteligência à frente de sua época, a visão estreita do senso comum sobre a essência do criminoso: “vocês deixam desviar-se e deteriorar-se aos poucos o caráter das pessoas desde a primeira infância, e punem adultos por crimes cuja promessa garantida eles carregam desde os primeiros anos”.1 Foi exatamente para combater essa lógica sórdida que Darcy Ribeiro e Leonel Brizola conceberam os Centros Integrados de Educação Pública (Cieps). Sucateados pelos governos subsequentes, os Cieps acabaram boicotados pelos segmentos conservadores da política e da imprensa, prejudicando o destino de milhares de jovens e crianças. Sem dúvida, estamos vivenciando os reflexos dessa medida.
Quem almeja com sinceridade a paz deve conscientizar-se de que a perspectiva focalizada apenas no fato isolado mostra-se incapaz de revelar fenômenos cuja inserção se dá em totalidades mais amplas, o que leva a perigosas conclusões, como a da suposta essência degenerada do agente criminoso, omitindo nossa qualidade peculiar de seres históricos, condicionados cultural e socialmente. A individualização da conduta tem como consequência a formulação de argumentos débeis e demasiadamente levianos, como aquele popularizado na voz de Rachel Sheherazade: “Está com pena do bandido? Então adota”. Na verdade, as propostas apresentadas pelos setores progressistas visam elaborar respostas em nível estrutural, tencionando a construção de um futuro sem crianças de rua.
A despeito da nobreza do ato de adotar uma criança, o problema jamais será resolvido mediante ações inseridas naquilo que Paulo Freire classificou como falsa solidariedade, a saber: caridade de ordem individual e isolada, incapaz de superar por si só o status quo.2 Não foi por meio de adoções e de esmolas que alguns países europeus que ostentam índices satisfatórios de bem-estar social alcançaram essa condição. A solução encontra-se sempre na esfera política, na redução das desigualdades e na mobilização diuturna dos movimentos sociais por serviços públicos universais, gratuitos e de qualidade.
Ao observarmos um fenômeno social de alta complexidade, urge convertermos a análise meramente superficial em um diálogo entre o parcial e o total. Somente por meio da compreensão da existência de uma rede de elementos interconectados é que podemos secionar a realidade, constatar um problema específico e partir para a investigação de suas causas, sem desconsiderar as interconexões existentes entre o todo e o fragmento estudado, retotalizando-o.
Importa buscarmos visões de futuro que sejam capazes de evitar a perpetuação dessa mazela, pois estamos falando de jovens que poderiam estar contribuindo para o engrandecimento do país, mas que desde o nascimento encontram-se imersos num ambiente de exclusão, desigualdade e valores deturpados, e por isso acabam fadados a ter alternativas limitadas sobre a condução de sua própria vida. São seres invisíveis, cuja existência só é percebida quando há transgressão à lei.
Negar a dimensão global é cair na armadilha das análises liberais reducionistas que insistem em dar superpoderes ao indivíduo atomizado, como se as opções do filho de um favelado fossem as mesmas que as de um herdeiro de um grande empresário, acobertando as muitas variáveis que atuam para além do âmbito individual.
Quando ocorrem, as raras histórias de superação são normalmente apresentadas pelos meios de comunicação na forma de retratos comoventes, como se “vencer na vida” fosse quase uma opção, mera consequência do esforço de cada um. Essas histórias recebem um enfoque distorcido, e nesse ponto a grande mídia promove um desserviço sem precedentes, uma vez que colabora para silenciar o debate sobre soluções genuinamente definitivas.
Na realidade, tais casos são exceções que apenas confirmam a regra da exclusão. Normalmente, a maior parte dessa juventude oriunda de comunidades carece de suporte familiar adequado e de acesso à educação de qualidade, e, por razões de cunho histórico, descende majoritariamente de famílias negras que por séculos estiveram alijadas do processo de acumulação de capital, o que agrava especificamente a situação desse grupo étnico estigmatizado pela sua cor de pele, atributo fenotípico impossível de esconder. Em suma, são jovens que carregam o peso de uma herança maldita que os coloca em uma situação concreta de desvantagem em relação a seus congêneres oriundos de realidades sociais mais abastadas.
Ao tratar do sentimento generalizado de insegurança (Unsicherheit) na sociedade hodierna, o sociólogo polonês Zygmunt Bauman salienta nossa peculiar inépcia para enfrentar problemas de ordem estrutural: “O mundo contemporâneo é um recipiente cheio até a borda de medo e frustração à solta que procuram desesperadamente válvulas de escape”.3 No caso dos grandes centros brasileiros, as válvulas de escape podem se materializar nas despolitizadas “marchas pela paz” ou assumir um semblante violento, resultando em justiçamentos. Tanto a primeira estratégia como a segunda demonstram nossa impotência para lidar com causas profundas.
Carência de educação e conscientização política
O que torna a obra de Jorge Amado excentricamente atual é o fato de ainda nos prendermos a um receituário unidimensional (leia-se: vigiar, punir e reprimir) para tratar de uma situação de enorme complexidade. Para avançarmos, será preciso contar não somente com a vontade política de lideranças verdadeiramente comprometidas com uma real mudança da estrutura social, mas também com a participação ativa da sociedade civil. Para tanto, é urgente que esta última se conscientize da real profundidade desse debate, cobrando soluções do poder público e defenestrando as respostas simplistas, preconceituosas e, sobretudo, errôneas.
No entanto, é exatamente nesse ponto que se encontra o nó górdio da questão: percebemos que a carência de educação e conscientização política não se limita aos desprivilegiados, mas atinge igualmente uma fatia relevante das camadas mais favorecidas da sociedade brasileira, composta por elementos orgulhosos de seus diplomas, mas analfabetos políticos incapazes de ultrapassar o senso comum.
Nos últimos anos, o Brasil conseguiu dinamizar economicamente a região Nordeste, praticamente eliminando a miséria extrema, reduzindo as desigualdades e interrompendo o fluxo migratório para outras regiões mais prósperas, o que gerou um círculo virtuoso benéfico para todos, pois o compromisso do Estado para com o bem-estar dos nordestinos impede que estes se convertam em massas excluídas dos grandes centros urbanos do Sudeste. Em conjunto com outras medidas de natureza social, conseguimos o feito inédito de ver nossa nação riscada do vergonhoso “mapa da fome” das Nações Unidas.
Deveríamos nos orgulhar de ter deslocado para o âmbito da ficção o sórdido cenário de Vidas secas, retratado por Graciliano Ramos com impecável realismo. Superado esse desafio, cabe agora realizarmos a mesma façanha com os capitães da areia.
Leandro Gavião é doutorando em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro.