O grau zero da destruição
Bolsonaro expressa o âmago de seu projeto: a destruição da política nos moldes como existiam, para o estabelecimento da política nos moldes bolsonaristas
Para analistas políticos e jornalistas, o marco dos cem primeiros dias de um governo, que no caso de Bolsonaro aconteceu agora, no dia 9 de abril, costuma ser um momento importante de balanço. Convencionou-se utilizar a data para entender como determinado governo converte o discurso eleitoral em práticas políticas concretas, e avaliar o desempenho das decisões tomadas, assim como a imagem do presidente e de seus ministros.
Não pretendo aqui fazer um apanhado detalhado e minucioso de cada polêmica na qual o governo se envolveu – mesmo porque, seriam tantas, que esgotaria o propósito deste breve texto. A proposta é, na verdade, retomar o argumento de um outro texto que escrevi neste mesmo veículo, ainda no calor das eleições, em que apontava a afinidade entre as propostas de governo de Bolsonaro com o conceito de capitalismo autoritário, forma de governo surgida em Cingapura sob o mando de Lee Kuan Yew, primeiro primeiro-ministro do país, e que no final dos anos 1970 se expandiu para a China, alinhando governo autoritário com ausência de liberdade política e regime de produção capitalista. Assim, a proposta aqui é de refletir sobre os primeiros cem dias do governo Bolsonaro à luz da ideia de capitalismo autoritário.
Antes, porém, permitam-me um pequeno desvio; uma breve reflexão sobre a repercussão geral do governo na mídia e no meio político estabelecido que, acredito, parece pouco atenta ao que considero o aspecto mais relevante até agora do governo Bolsonaro: seu poder de destruição, e tentativa de instauração de uma nova ordem.
“É um governo vazio, que não tem ideia, proposta e articulação”, afirmou Rodrigo Maia (DEM), presidente da Câmara dos Deputados, no final de março, em um momento de acirramento das tensões entre Planalto e Câmara, com as dificuldades na tramitação da reforma da Previdência no Congresso e a prisão do ex-presidente Michel Temer (MDB) e seu ex-ministro Moreira Franco (também do MDB e sogro de Maia). A percepção de que existe um “vazio de ideias” no governo, uma ausência total de projetos tornou-se um certo lugar comum entre críticos ao governo ou mesmo entre certos membros do establishment político, que os bolsonaristas passaram a chamar de representantes da “velha política”.
Tal julgamento não poderia estar mais equivocado. Analisam o presidente Jair Bolsonaro a partir da lógica de um estadista, mas Bolsonaro é um ser de outra espécie, como já foi dito. Julgam o governo a partir da lógica da engenharia política que estrutura as relações entre planalto e congressistas, mas o bolsonarismo é marcado por outra lógica. Para entender o governo Bolsonaro, é necessário colocar em suspensão a tese do presidencialismo de coalizão – não porque esta análise sobre como o Planalto deve se articular com o Congresso para formar maioria e implementar projetos tenha deixado de vigorar, mas porque, para o bolsonarismo, como fenômeno social amplo, o governo é instrumentalizado para suas próprias finalidades.
A esquerda possui uma certa arrogância ao menosprezar seus adversários políticos considerando-os limitados, o que no caso de Jair Bolsonaro se converte numa percepção de que o presidente seria “chucro”, “desarticulado”, “incapaz de governar o país”. O desafio desta análise é quase antropológico: entender o bolsonarismo dentro dos seus próprios termos. Bolsonaro é inepto, se o parâmetro de comparação for o modelo institucional no qual o país foi governado desde 1988. Mas ao falar em “nova política” contra a “velha política”, Bolsonaro expressa o âmago de seu projeto: a destruição da política nos moldes como existiam, para o estabelecimento da política nos moldes bolsonaristas. Esse projeto de destruição é consistente, robusto, e está em pleno funcionamento. Ousaria dizer que, até agora, ele é extremamente bem sucedido.
Capitalismo autoritário: um campo de tensões
Para vencer o pleito eleitoral, o bolsonarismo precisou de aliados. O núcleo duro do bolsonarismo, o bolsonarismo raiz, que acredito ser o núcleo anti-establishment (o eleitorado que girava ao redor de um deputado representante do baixo clero, elogiando militares, torturadores e vociferando contra minorias), se valeu de alianças entre atores políticos diversos, como grandes produtores agropecuários, membros de igrejas neopentecostais, setores militares diversos e integrantes do mercado financeiro. O bolsonarismo como fenômeno amplificado coordenou setores da centro-direita, que abriram mão do discurso político democrático até então considerado “razoável”, para migrar à extrema-direita que o núcleo duro bolsonarista sempre representou.
Críticos gostam de apontar que o governo de Jair Bolsonaro não consegue se desvencilhar do discurso eleitoral. Essa estratégia talvez seja a mais acertada para a manutenção do clima de tensão que sustenta o bolsonarismo: é uma forma de tentar coordenar forças políticas com interesses antagônicos, identificando um inimigo em comum. O bolsonarismo identifica com clareza esse inimigo, qual seja, a esquerda que aparelhou o Estado brasileiro, com interesses ideológicos.
Para entender a dimensão dos conflitos internos existentes no âmago do governo, basta levarmos em consideração um exemplo concreto, que é a proposta eleitoral de mudar a Embaixada do Brasil de Tel Aviv para Jerusalém. Embora essa medida agrade ao setor evangélico que apoia Bolsonaro, ela é vista com temor pelo setor ruralista, já que o Brasil poderá sofrer sanções da Liga Árabe, compradora de frango e carne brasileiros, e uma parceira comercial muito mais relevante do que Israel. Mas é preciso, como tento fazer aqui, diferenciar o governo Bolsonaro do fenômeno social que é o bolsonarismo. Se é possível dizer que o governo está numa cilada com relação à proposta da mudança da Embaixada, tentando acordar interesses contrários, o bolsonarismo se vale da tensão mantendo um discurso ideológico, e criando soluções sem efeitos de governo, como a abertura de um escritório comercial em Jerusalém, enquanto o centro financeiro do país é Tel Aviv.
Coordenar capitalismo e autoritarismo é, na minha opinião, o verdadeiro desafio que conecta o governo Bolsonaro com o bolsonarismo. Ou seja, colocar em prática reformas neoliberais que garantam a menor presença do Estado na economia com o acúmulo de poder em um sistema autoritário e ideológico que desmantela liberdades garantidas e direitos.
Nesse sentido, a reforma da Previdência é um paradigma, a verdadeira prova de fogo para Bolsonaro, em que ele definirá se consegue fortalecer o bolsonarismo, dominando e enfraquecendo o sistema político oficial, como fizeram figuras autoritárias ao redor do mundo, tal como Viktor Orbán, presidente da Hungria que veio ao Brasil especialmente para a posse de Bolsonaro. Para a reforma da Previdência, medida mais que esperada pelo mercado, e que esteve na origem do apoio de financistas à Bolsonaro, o presidente tem mostrado dificuldades de negociar com o Congresso. Acredito que essa dificuldade seja menos por falta de capacidade em realizar articulações políticas (o que também é um elemento que não pode ser descartado, é claro), e mais para manter coesa a narrativa de que se está instaurando uma nova política, sem o dito “toma-lá-dá-cá”, entendido pela base do bolsonarismo como a origem da corrupção.
A reforma da Previdência é como um cabo de guerra entre os dois termos que Bolsonaro tenta articular: a tendência autoritária e de acúmulo de poderes em um projeto ideológico e a reforma neoliberal que permitiria um ambiente mais favorável aos negócios e competitividade, à custa de um regime previdenciário punitivo com a população mais pobre. Em suma, o desafio para o bolsonarismo consiste em aprovar uma reforma impopular sem se contaminar com distribuição de cargos para membros de outros partidos. Bolsonaro é um anti-establishment, em uma posição de establishment, destruindo a velha ordem em nome da sua ordem.
O elogio aos militares, à tortura e à ditadura, o desrespeito às minorias, constituem o verdadeiro Bolsonaro, que a pleno vapor aplica seu poder destrutivo contra direitos, liberdades e políticas redistributivas. Críticos chamam de diversionistas ministros como Damares Alves e Ernesto Araújo, mas são eles que estão mais próximos do bolsonarismo raiz, força motora do fenômeno Bolsonaro. Por isso, Olavo de Carvalho é tão ou mais importante que Paulo Guedes – que poderia ser descartado como Ricardo Vélez e Gustavo Bebbiano.
O bolsonarismo entrincheirado
Diante do resultado da pesquisa de opinião pública do Instituto Datafolha, que concluiu que Bolsonaro é o presidente com maior rejeição da população em início de mandato desde a redemocratização, o mandatário respondeu em seu Twitter, elevado a veículo de comunicação oficial, com um longo e debochado “kkkkkkk”. A análise sobre a queda da aprovação do presidente foi minuciosamente analisada por comentaristas políticos: os escândalos de corrupção envolvendo a cúpula do PSL (partido do presidente), a grande exposição do presidente na mídia tradicional e nas redes sociais, o número excessivo de viagens ao estrangeiro, a percepção de que a corrupção não está tão longe assim do governo quanto o discurso bolsonarista gostaria.
Tanto a pesquisa divulgada pelo Datafolha como a reação oficial do presidente salientam outro aspecto: de que o governo pode estar cada vez mais entrincheirado em sua base tradicional de apoio, o bolsonarismo raiz. A percepção de que Bolsonaro não foi “amansado” por seus ministros e assessores próximos, como uma vez declarou Paulo Guedes à Malu Gaspar, da revista Piauí (set. 2018), pode ter tirado parte do apoio amplo que ele obteve para vencer o pleito eleitoral. Mas a tendência do apoio ao governo Bolsonaro se reduzir ao núcleo duro do bolsonarismo talvez não seja exatamente um problema para Bolsonaro e sua família. Governos autoritários em não raras ocasiões centram o seu apoio em pequenos grupos sem representatividade ampla na população. Perder apoio na população nunca é bom, claro, mas para regimes autoritários, importa mais manter uma base fanática e obscurantista. O caráter anti-establishment do bolsonarismo criou a sua própria realidade, que pode ser observada, de maneira assustadora, em dois aspectos:
– A perseguição à mídia tradicional: à qual se substituiu uma relação direta de comunicação entre Bolsonaro e seus seguidores, via redes sociais, e o apoio de grandes grupos midiáticos, como a Rede Record e SBT, que deixaram de fazer jornalismo crítico e investigativo, para se tornarem órgãos de propaganda o governo;
– Relação de proximidade com grupos paramilitares: a relação entre os Bolsonaro e a milícia fluminense (grupos paramilitares) se tornou perigosamente próxima. O agora senador Flávio Bolsonaro, durante os seus mandatos como deputado estadual elogiou milicianos acusados de pertencerem a grupos de extermínio como o “Escritório do Crime” e empregou familiares do miliciano Adriano Nóbrega em seu gabinete, sob recomendação de Fabrício Queiroz, acusado de manter atividades financeiras atípicas com a família Bolsonaro. Isso não indica, é claro, que os Bolsonaro sejam chefes de milicianos, mas ao menos que existe uma certa tolerância na família Bolsonaro junto a grupos de extermínio para-estatais. No contexto do pacote do ministro da justiça Sérgio Moro, que entre outras medidas prevê que policiais que assassinarem pessoas sob “medo, surpresa ou violenta emoção” tenham a pena suspeita, o resultado da combinação pode ser catastrófico, ainda mais em um país com cerca de 60 mil assassinatos anuais e violência policial galopante. O crescimento de grupos paramilitares de extermínio nesse plano de fundo não deve ser menosprezado.
Um futuro sombrio?
A tentativa deste texto foi de fazer uma leitura dos cem primeiros dias do governo Bolsonaro sob a lógica do capitalismo autoritário. Se o primeiro termo, para funcionar dentro da nova ordem bolsonarista, depende de maneira umbilical da reforma de Previdência, o segundo termo, autoritarismo, depende da capacidade de Bolsonaro, seus filhos e parte dos ministros converteram em práticas de Estado a lógica que sustenta o fenômeno bolsonarista. A espionagem por parte do serviço de inteligência do Estado brasileiro a bispos da Igreja Católica que se organizam para um evento internacional da Igreja sobre a defesa da Amazônia, sob a alegação de que estes ameaçam o governo Bolsonaro, talvez seja o passo mais claro nessa direção.
Até agora, a destruição da “velha ordem” tem sido exitosa. O futuro, porém, é sempre incerto.
*Fábio Zuker é jornalista e antropólogo.