Chegar ao fundo do poço… e continuar cavando?
Paris voltou a se pôr a reboque da Casa Branca e deu seu aval ao que, aparentemente, não passa de um golpe de Estado
“O pior ainda não aconteceu a ponto de podermos dizer: isto é o pior.” Nos dias que correm, a diplomacia francesa lembra esse verso de Rei Lear. No fim do quinquênio de François Hollande, acreditávamos ter chegado ao fundo do poço;1 alguns previam mesmo um arroubo de orgulho. Afinal, como os Estados Unidos exibiam seu soberano desprezo pelas capitais europeias e seu desejo de fugir às obrigações do Tratado da Aliança Atlântica, por que não se aproveitar disso e deixar a Otan, renunciar à política de sanções contra Moscou e imaginar a cooperação europeia “do Atlântico aos Urais”, com que sonhava o general De Gaulle há sessenta anos? Enfim, livres da tutela norte-americana – e adultos!
Ratificando a autoproclamação de Juan Guaidó como presidente interino da Venezuela, a pretexto de uma vacância da presidência que só existe em sua fantasia, Paris, ao contrário, voltou a se pôr a reboque da Casa Branca e deu seu aval ao que, aparentemente, não passa de um golpe de Estado. A situação na Venezuela é dramática: inflação galopante, fome, prevaricação, sanções, violências.2 E mais dramática ainda porque uma solução política se choca doravante com o sentimento de que tanto os que se insurgem contra o poder como os que o perdem podem acabar atrás das grades. Acaso os dirigentes venezuelanos não estariam considerando o caso do ex-presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva, impedido de candidatar-se numa eleição presidencial que provavelmente venceria e condenado a 24 anos de prisão?
A decisão da França infringe a regra segundo a qual Paris reconhece Estados, não regimes. Ela insufla também Emmanuel Macron a encorajar a política incendiária dos Estados Unidos. É que a proclamação de Guaidó foi inspirada pelos homens mais perigosos da administração Trump, como John Bolton e Elliott Abrams (ver o artigo de Eric Alterman, na p.14). Ninguém mais ignora que o vice-presidente norte-americano, Mike Pence, informou Guaidó de que os Estados Unidos o reconheceriam… na véspera do dia em que ele se proclamou chefe de Estado.3
Em 24 de janeiro, Macron exigiu “a restauração da democracia na Venezuela”. Quatro dias depois, chegou de ânimo leve ao Cairo, bem decidido a vender armas suplementares ao presidente egípcio, Abdel Fattah al-Sissi, autor de um golpe de Estado rapidamente seguido pelo encarceramento de 60 mil adversários políticos e pela condenação à morte de seu predecessor livremente eleito. Em matéria de política exterior que se pretende virtuosa, ainda poderemos fazer pior?
*Serge Halimi é diretor do Le Monde Diplomatique.
1 Ver Dominique de Villepin, “La France gesticule… mais ne dit rien” [A França gesticula… mas não diz nada], Le Monde Diplomatique, dez. 2014.
2 Ver Renaud Lambert, “Venezuela, les raisons du chaos” [Venezuela, os motivos do caos], e Temir Porras Ponceleón, “Pour sortir de l’impasse au Venezuela” [Para sair do impasse na Venezuela], respectivamente, dez. 2016 e nov. 2018.
3 Cf. Jessica Donati, Vivian Salama e Ian Talley, “Trump sees Maduro move as first shot in wider battle” [Trump encara a atitude de Maduro como o primeiro tiro numa batalha mais ampla], The Wall Street Journal, Nova York, 30 jan. 2019.