Com maioria, mas sem reformas
O governo deve evitar alterações polêmicas na Constituição, o que supõe que temas como reforma previdenciária, trabalhista e sindical dificilmente serão prioridade. Mas as forças progressistas, terão a tarefa de impedir o avanço das forças conservadoras no interior da coalizão governista.Antônio Augusto de Queiroz
O Congresso que tomou posse em 1º de fevereiro, renovado em aproximadamente 45% (Câmara, 43,86%, e Senado, 45,68%), trouxe mudanças importantes em seu perfil político, ideológico, no tamanho das bancadas e, principalmente, no nível de adesão ao governo. As expectativas em termos de agenda e de imagem são grandes.
A presidente Dilma conta com a maior base parlamentar na Câmara no período posterior à Constituinte. Já a oposição, que não tem número suficiente nem para criar uma CPI, tende a ser mais cooperativa.
Poucas composições do Legislativo federal brasileiro contaram com bancadas tão expressivas dos partidos de esquerda e centro-esquerda quanto a atual. A soma das bancadas do PT, PSB, PDT, PCdoB, PV, PPS e PSOL se aproxima de duzentos deputados, alcançando 193 apenas na Câmara dos Deputados.
Esses partidos, com exceção do PPS e do PSOL, entretanto, estão diluídos numa grande coalizão de governo, da qual participam outros partidos de centro, como o PMDB, de centro-direita, como PTB e PR, e até de direita, como o PP, que os superam em termos numéricos. Isso significa que essas forças progressistas, além da defesa de seus postulados, terão a tarefa de impedir o avanço das forças conservadoras no interior da coalizão governista.
Na Câmara – cuja presidência ficou com o PT, a maior bancada da Casa – os partidos governistas contam com 402 deputados, sendo 351 de partidos que fizeram parte da aliança eleitoral de Dilma e 51 de legendas que, tendo ficado independentes ou participado de outra coligação, passaram a integrar a coalizão de apoio. A oposição elegeu apenas 111 deputados, incluindo as bancadas do PSDB, DEM, PPS e PSOL, e decresceu em relação a pleitos anteriores, conforme tabela 1.
Nesse cenário, o desempenho dos partidos de centro-esquerda e de esquerda dependerá, em grande medida, de para onde irá pender o governo da presidente Dilma, se mais à esquerda ou mais ao centro do espectro político. De qualquer forma, terão de brigar por suas ideias no parlamento e no interior do governo.
Comparando com outros governos, desde Collor, passando por Itamar e FHC até Lula, percebe-se que Dilma conta com a maior base parlamentar na Câmara dos Deputados no período posterior à Constituinte, conforme tabela 2.
No Senado – onde o PMDB manteve a maior bancada e reelegeu o presidente da Casa – a base de apoio do governo, considerando os suplentes que tomaram posse em 2011, possui 62 senadores, sendo 55 dos partidos que fizeram parte da aliança eleitoral e 7 de outras legendas que se incorporaram à coalizão de apoio, enquanto a oposição, formalmente, está limitada a 19 cadeiras. As eventuais dissidências não comprometem o apoio sólido, inclusive para a aprovação de Proposta de Emenda à Constituição (PEC).
A oposição, que não tem número suficiente de parlamentares sequer para criar uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), tende a ser mais cooperativa, tanto pelo desastre que foi a postura intransigente em relação ao governo Lula, quanto pelo perfil dos eleitos e empossados, bem menos virulentos que os derrotados em 2010, especialmente os senadores.
Houve, ainda, o crescimento das bancadas informais, como a empresarial, a evangélica e a ruralista, mas elas, em razão da fidelidade partidária, perderam peso político nessa legislatura. Os parlamentares devem votar segundo a orientação partidária, sob pena de perda do mandato, especialmente se houver entendimento para que a bancada vote unida.
Congresso favorável
A correlação de forças no novo Congresso, portanto, é bem mais favorável à gestão de Dilma do que foi em relação ao governo Lula. A presidente, além dos dez partidos que fizeram parte da aliança eleitoral (PT, PMDB, PSB, PCdoB, PDT, PSC, PRB, PTN, PR e PTC), conta com outras legendas, como o PP, PTB e PV, que faziam parte do governo anterior. A situação atual sugere que não haverá problema de governabilidade.
Quanto à agenda de reformas, a tendência é que o Congresso, assim como tem acontecido desde o primeiro governo FHC, se paute pelas iniciativas do Poder Executivo.
A razão principal disso é que o governo dispõe de recursos de poder, simbólicos ou não, para assegurar adesão a suas iniciativas, entre os quais: 1) a prerrogativa de compartilhar a gestão, com distribuição de cargos aos aliados, 2) o poder de negociar o conteúdo da política pública, dando voz e poder de decisão aos partidos que lhe dão sustentação no Congresso, e 3) a faculdade de distribuir recursos do orçamento, tanto por emendas parlamentares quanto por convênio e liberalidade.
Os presidentes, incluindo FHC no segundo mandato, embora com meios, simbólicos ou não, para formar maioria no Congresso, têm evitado grandes reformas em nível constitucional pelos custos envolvidos para reunir três quintos de votos, em dois turnos, em cada casa do Congresso.
É por isso que, desde a reforma da Previdência do governo Lula, em 2003, o Congresso não aprovou nenhuma alteração constitucional significativa, incluindo aquelas sobre as quais há consenso na sociedade quanto à necessidade e até urgência, como a tributária e a política.
A presidente Dilma Rousseff, que tem mantido esse padrão de relacionamento com sua base congressual, também prefere evitar reformas polêmicas em nível constitucional, o que supõe que temas como reforma previdenciária, trabalhista e sindical dificilmente estarão entre as prioridades.
A explicação é que se trata de um governo de continuidade e, como tal, a prioridade, em termos de reformas, deve ser aprovar as matérias já encaminhadas pelo governo Lula, como os projetos de reforma política e, com mudanças, a proposta de reforma tributária, que tende a ser fatiada para facilitar sua aprovação, bem como outras proposições que serão encaminhadas, como o projeto que tratará da desoneração da folha de salário.
Dentro da lógica do governo de continuidade, certamente farão parte da agenda matérias pendentes da gestão Lula, como a regulamentação da previdência complementar e da aposentadoria especial do servidor, o marco regulatório das agências reguladoras, os crimes de internet, o código florestal, a defesa da concorrência, a limitação do gasto com pessoal e a criação do cadastro positivo.
Além disso, a presidente Dilma poderá encaminhar ao Congresso um novo sistema de negociação, avaliação e mérito para o servidor público, entre outros temas em nível infraconstitucional que julgue indispensável ao cumprimento de seu programa de governo.
Neste primeiro ano de mandato, a tendência é que haja um freio nas concessões de reajustes e benefícios a servidores e aposentados, além do enfrentamento, inclusive com indicação de rejeição, de uma série de matérias que ampliem despesas, entre as quais as PECs da polícia (que estabelece um piso salarial nacional para a categoria) e dos agentes penitenciários (que lhes confere statusde policiais), e, eventualmente, a que trata do fim da contribuição dos aposentados do regime próprio de previdência do servidor e também as que estendem o subsídio de desembargador para as carreiras jurídicas.
A presidente Dilma terá muito mais condições de ser austera do ponto de vista dos gastos do que o governo Lula, inclusive porque os custos dessa decisão serão bem menores que no governo anterior. Talvez até em função disso, não tenha sido pautada nenhuma PEC, já que muitos parlamentares, inclusive da base, não aceitam a votação de qualquer emenda constitucional enquanto não for concluída a votação, em segundo turno, da PEC dos policiais.
Entretanto, se a presidente decidir por realizar uma reforma constitucional para os direitos previdenciários, por exemplo, as medidas serão direcionadas a quem ingressar no mercado de trabalho após a vigência da mudança, não atingindo os atuais segurados, nem do INSS nem do regime próprio dos servidores. Qualquer iniciativa com efeito retroativo seria quebra de direito adquirido, já que conflita com a Constituição e não foi discutida na campanha eleitoral nem incluída no programa de governo.
Para vigência imediata, eventuais mudanças serão apenas pontuais e, em relação à pensão e ao cálculo do auxílio-doença, ficarão a cargo do INSS. Existe, ainda, a possibilidade de que haja flexibilização do fator previdenciário, nos termos da proposta do deputado Pepe Vargas (PT-RS), que institui as fórmulas 85/95 como alternativa para os trabalhadores que ingressaram mais cedo no mercado de trabalho.
Pela importância das matérias que, dependendo do escopo e abrangência, exigiriam mudanças constitucionais, vale a pena algumas reflexões sobre as reformas tributária e previdenciária.
A reforma tributária
Há consenso na sociedade e no Parlamento sobre a necessidade e urgência de reforma tributária que: 1) simplifique os tributos, 2) reduza a informalidade da economia, 3) amplie a base de arrecadação, 4) desonere as exportações, os medicamentos de uso continuado e a cesta básica, e 5) promova a justiça fiscal.
O sistema tributário é visto como injusto, irracional, que penaliza os mais pobres, estimula a evasão e a sonegação, e, operacionalmente, é muito caro para pagar e receber, tanto para os contribuintes quanto para os entes estatais.
Porém não existe nenhum acordo sobre o conteúdo da reforma ideal, a começar pelo substitutivo à PEC 233/2008. Esse texto, que aguarda votação no Plenário da Câmara dos Deputados, possui vários pontos polêmicos e de grandes resistências no aspecto federativo, como a questão da cobrança do ICMS, se no destino ou na origem, a federalização da arrecadação tributária, além de afetar fortemente o orçamento da Seguridade Social.
O texto coloca em risco o sistema brasileiro de proteção social, tanto por eliminar as fontes de receita da Seguridade Social, transferindo-as para o orçamento fiscal, quanto por não adotar o princípio da progressividade nem tributar adequadamente as grandes fortunas, o patrimônio e as remessas de lucros ao exterior.
O substitutivo à PEC 233/2008, de autoria do relator na Câmara, deputado Sandro Mabel (PR/GO), já aprovado na Comissão Especial da Câmara, ao criar o IVA-F (Imposto de Valor Agregado ou Adicionado Federal) e o novo Imposto de Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ), tributos vinculados ao Orçamento Fiscal do Governo, elimina três fontes de receita do Orçamento da Seguridade Social, além de reduzir de 20% para 14% a contribuição patronal sobre a folha de salários (de forma gradual, na proporção de 1% ao ano, do segundo ao sétimo ano da data de promulgação da emenda constitucional), colocando em risco a Previdência Pública brasileira.
De acordo com o substitutivo em exame na Câmara, a Cofins e a contribuição sobre o Salário Educação seriam incorporados ao IVA-F e a CSLL (Contribuição Sobre o Lucro Líquido) seria incorporada ao novo IRPJ (Imposto de Renda da Pessoa Jurídica). Além disso, o PIS, cujos recursos são destinados aos pagamentos do Seguro-Desemprego e do Abono anual de um salário mínimo para o trabalhador com renda de até dois mínimos mensais, também é absorvido ou incorporado ao IVA-F, desaparecendo mais uma fonte de receita da Seguridade Social.
Embora o texto preveja o repasse de 39,7% do montante do Orçamento Fiscal – formado pelas receitas do IPI – Imposto sobre Produtos Industrializados, que continuaria existindo, do IVA-F e do novo IRPJ para as despesas da Seguridade Social – os trabalhadores não têm certeza se esses recursos serão suficientes nem tampouco confiam nesse repasse, considerando experiências anteriores em que esse sistema não funcionou.
A lógica é que, perdendo as fontes exclusivas, a Seguridade Social (Saúde, Assistência e Previdência) passe a depender da disputa de recursos no Orçamento Fiscal com outros grupos de interesse, além de alimentar a campanha pela privatização da Previdência e do Seguro-Acidente, sob a velha acusação de déficit ou insuficiência de receitas.
A presidente Dilma, assim, terá de rever esse modelo em debate na Câmara, enviando uma nova proposta que não coloque em risco a Seguridade Social, além de tributar mais o patrimônio e a renda e menos o consumo.
A reforma da Previdência
Caso venha a ser incluída na agenda governamental em nível constitucional, a reforma da Previdência só terá viabilidade, e, ainda assim a elevado custo, se vigorar apenas para quem ingressar no mercado de trabalho após a vigência da emenda à Constituição que a instituir. Qualquer tentativa de adoção de idade mínima para o INSS ou mudança de regra constitucional que atinja os atuais segurados, do regime geral ou do regime próprio dos servidores, além de grandes resistências dos partidos da base e dos assalariados organizados, só vai provocar uma grande corrida às aposentadorias, produzindo o efeito inverso do pretendido.
A tendência do governo e do Congresso, portanto, é priorizar uma agenda infraconstitucional, com forte viés regulatório, e promover reformas constitucionais apenas de modo fatiado e sobre temas nos quais seja possível um consenso mínimo, especialmente na área política e tributária.
As forças de esquerda e centro-esquerda, embora com poder para pressionar o governo e com número suficiente para impedir avanços dos conservadores, não terão seu papel hegemônico por estarem diluídas numa ampla base de apoio ao governo, com forte presença do centro, da centro-direita e até da direita. Os avanços, assim, dependerão da postura e compromisso do governo com uma agenda progressista.
Antônio Augusto de Queiroz é Jornalista, analista político, diretor de documentação do Diap, colunista da revista Teoria e Debate e do portal eletrônico Congresso em Foco, e autor dos livros Por Dentro do processo decisório: Como se fazem as leis e Por Dentro do Governo: Como funciona a máquina pública.