
Os retrocessos que a democracia brasileira sofreu ao longo de 2016 atingiram frontalmente vários direitos das mulheres. Na consolidação do golpe e da ofensiva antidireitos dessa perspectiva conservadora, o tema da legalização do aborto voltou às mesas de negociação. O prenúncio para 2017 é de um cenário próximo ao da Idade Média. Os debates que tomaram o Congresso Nacional tentam reverter importantes avanços das últimas décadas. A bancada fundamentalista busca incluir na Constituição a proteção jurídica à vida desde a fecundação do óvulo pelo espermatozoide. Dessa forma, até os abortos em caso de estupro, de risco de vida para a mulher e de feto anencéfalo – legalizados desde 1940 e de 2012 (este último) – tornam-se crimes. Nos países onde isso ocorreu, o passo seguinte é a interpretação da prática de aborto como homicídio e penas de prisão de até 25 anos.
O horizonte é de mais mulheres mortas em decorrência de abortos clandestinos, mais mulheres encarceradas, mais mulheres em risco de vida, mais mulheres adoecidas. Trata-se de uma conjuntura catastrófica, mas não exatamente uma surpresa para as militantes feministas. Há pelo menos dez anos, os movimentos vêm denunciando os riscos do avanço do fundamentalismo na sociedade e sua expressão dentro do Estado, especialmente no Poder Legislativo.
Em 2000, a Articulación Feminista Marcosur lançou a campanha Tu boca fundamental contra los fundamentalismos, em que anunciava a organização da ofensiva conservadora e antidireitos na América Latina. No Brasil, a ação foi impulsionada pela Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB), que denunciou como os fundamentalismos tornam inviável o projeto de humanidade em que todas as pessoas tenham direitos a ter direitos.
Ao longo de 2013 e 2014, o Movimento Estratégico pelo Estado Laico (Meel) – que reuniu organizações articuladas pela Plataforma de Direitos Humanos (Dhesca) – fomentou debates junto às principais redes do campo progressista, incluindo religiosas. Foi uma estratégia de resistência à eleição, em 2013, do deputado pastor Marco Feliciano para a presidência da Comissão de Direitos Humanos (CDH) da Câmara dos Deputados, fato de carga simbólica imensa. Feliciano representou um gatilho autorizador do discurso de ódio às mulheres, à população negra e à população LGBT.
A partir desse momento também, reconfigurou-se a pauta dessa Comissão legislativa, dando espaço a temas conservadores centrados no direito à vida desde a concepção. Esse foi o principal contraponto à noção de direitos humanos, estabelecida no PNDH-3, considerado pelos fundamentalistas um “plano diabólico” para o fim da família e da religião. Essa autorização aos discursos de ódio sustentou a ofensiva antidireitos em outras comissões da Câmara.
O estudo Aborto em debate na Câmara dos Deputados – elaborado pela pesquisadora da Universidade de Brasília (UnB) Flávia Biroli – analisa proposições legislativas e compara o foco dos parlamentares sobre o tema em dois períodos diferentes. Nos anos 1990, foram apresentadas seis proposições na Casa para restringir a legalidade ou aumentar a punição para o aborto. Já entre 2000 e 2015, foram pelo menos 32 proposições. Por outro lado, entre os projetos que propunham descriminalizar a prática, temos seis nos anos 1990 e apenas dois entre 2000 e 2015.
Além da maior quantidade de propostas apresentadas, as estratégias de tramitação definidas pelas bancadas fundamentalistas mostram um viés ideológico de ataque aos direitos das mulheres. Nesse momento, é importante destacar a eleição do deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ) para a presidência da Câmara dos Deputados, em fevereiro de 2015.
Sua atuação não se limitou à autoria de proposições contrárias aos direitos sexuais e reprodutivos. Cunha foi o mais forte elo entre parlamentares que priorizam diferentes temas na agenda conservadora e retrógrada. “Ele simbolizava a convergência entre parlamentares ligados à Igreja Católica e diferentes denominações evangélicas que têm dado ênfase à ‘defesa da família’ entre suas estratégias políticas, a agenda empresarial de desregulamentação dos direitos trabalhistas e a agenda da ‘bala’ contra os direitos humanos, em defesa dos interesses da indústria armamentista e dos negócios relacionados à segurança privada”, diz o documento apresentado por Flávia Biroli.
Fora do Parlamento, a reação das mulheres diante da ofensiva fundamentalista desencadeou uma série de ações de rua em todo o Brasil que ficou conhecida como a Primavera Feminista. Com o mote “Fora, Cunha”, a reivindicação explícita era a saída do deputado (já acusado de corrupção) da presidência da Câmara e o arquivamento do Projeto de Lei n. 5.069/2013. A proposta revoga a Lei n. 12.843/2013 de atendimento às vítimas de violência sexual, dificultando o acesso à contracepção de emergência e criminalizando os médicos.
Nesse processo de resistência nas ruas, o feminismo brasileiro demonstrou sua força e poder de articulação entre a militância organizada, como a Frente Nacional contra a Criminalização das Mulheres e pela Legalização do Aborto, grupos de jovens feministas organizadas no interior dos partidos de esquerda e as ativistas autônomas, cujo papel foi fundamental na capilarização da defesa de direitos nas redes sociais. O feminismo experimentou uma renovação geracional no Brasil.
Nesse cenário de retrocessos e luta, chamamos à reflexão o campo da esquerda: para construir uma resistência democrática radical, é imprescindível que o conjunto dos movimentos sociais assuma que a luta das mulheres não é uma “questão específica”. Ela, ao lado e articulada com o racismo, é estruturante da desigualdade. É importante considerar que “a questão da mulher” está, atualmente, no centro da crise e da reestruturação do capitalismo no Brasil e no mundo. Nesse contexto, o fundamentalismo religioso funciona como um amálgama para conformar as subjetividades no imaginário social, produzindo o elã moral de naturalização da subalternidade das mulheres.
Denunciamos que os retrocessos sobre nossas liberdades, o controle sobre nosso corpo e sexualidade, incluindo o cerceamento do planejamento reprodutivo, são estratégias de sobrevivência para o capitalismo. Isso porque obriga as mulheres a se dedicarem quase exclusivamente ao trabalho de reprodução social da vida. Quando o Estado é mínimo, cenário agravado pela aprovação da PEC n. 55/2016, quem acumula as funções de cuidado das famílias são as mulheres.
Contudo, uma análise do tema aborto em 2016 precisa considerar a argumentação afirmativa dos direitos das mulheres pelo ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), no julgamento do habeas corpus de cinco médicos e funcionários de uma clínica localizada no estado do Rio de Janeiro. Ao compreender que a interrupção voluntária da gestação até a 12a semana não é crime, ele leva em conta a morte e criminalização das mulheres por abortos clandestinos no Brasil. Seu posicionamento expressa o arcabouço dos princípios e argumentos feministas pela legalização do aborto no país, reconhecendo os direitos sexuais e reprodutivos, a autonomia para o direito de fazer escolhas existenciais, a integridade física e psíquica da gestante e a igualdade de gênero.
A movimentação feminista no Brasil denuncia os ataques aos nossos direitos e organiza uma resistência perante os retrocessos, anunciando o projeto de uma sociedade plenamente democrática em que as mulheres sejam livres para decidir sobre sua vida, sem o peso da criminalização.
*Jolúzia Batista é socióloga e assessora técnica do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea); Masra Abreu é socióloga e assessora técnica do Cfemea; e Ismália Afonso é jornalista e consultora do Cfemea.
{Le Monde Diplomatique Brasil – edição 114 – janeiro de 2017}