“Comer para mim não é só prazer, comida também é remédio”
Quarentena serviu de inspiração para o premiado chef dinamarquês Rasmus Kofoed, considerado um dos melhores do mundo, pensar em menus rápidos e saudáveis à base de vegetais e sentir saudades do trabalho em equipe
Do lado de fora, vê-se apenas o Parken, estádio de futebol de Copenhague. Dentro, no oitavo andar, encontra-se o segundo melhor restaurante do mundo, chamado Geranium. O prêmio foi anunciado em outubro no “50 melhores restaurantes do mundo”, conhecido como o Oscar da Gastronomia. O primeiro lugar foi para o Noma, outro restaurante também na cidade nórdica das bicicletas e praticamente livre das máscaras anti-Covid-19 desde setembro.
Na capital dinamarquesa, levei dois dias para conseguir entrevistar seu proprietário, o chef Rasmus Kofoed, cujo restaurante também exibe três estrelas Michelin. A razão: depois de me fazer comer o premiado menu “Universo de Outono” por três horas, Rasmus se desculpou e pediu para adiar a entrevista para o dia seguinte. Tinha dado a hora de buscar os filhos na escola. Em vinte anos de jornalismo, foi a primeira vez que fiquei contente de ter uma entrevista adiada. Não só pela comida, mas por testemunhar que a igualdade entre homens e mulheres na Dinamarca é evidente no dia a dia. O cuidado dos filhos também inspirou o premiado chef a criar, em pleno lockdown, um restaurante “pop-up”, temporário, baseado no cardápio da família e pensando em fazer as pessoas comerem de forma mais saudável.
Apesar de acumular medalhas de ouro, prata e bronze no Bocuse d’Or, que reconhece os melhores chefs do planeta, Rasmus é um cara zen e pé no chão. Aliás, nesta entrevista ele revela o que faz com a comida que cai no chão, o que pensa sobre os prêmios internacionais, e suas ideias sobre saúde mental, física e até sobre o sentido da vida.
Gostei muito do prato “Memória da infância”, que desenha um lingueirão (ou peixe navalha). Aliás, gostaria de lhe contar um segredo: não como frutos do mar. Mas disse a mim mesma: “vai com a mente aberta e prove o que vier” (risos)…
Legal! É isso que digo aos meus filhos: “vocês precisam pelo menos provar”. Não posso dizer para gostarem, mas pelo menos provem.

Na verdade, os pratos de que mais gostei no seu menu de outono foram feitos com os ingredientes que normalmente não como. Camarões, lulas, ostras…
É muito bom ouvir isso. Na Dinamarca, mesmo sendo um país pequeno, temos uma das maiores linhas costeiras do mundo. Estamos rodeados pelo oceano. Então, é claro, temos frutos do mar saborosos e precisamos incluir no menu, é claro.
E podia ser minha última chance, né? Se eu não conseguisse comer frutos do mar aqui, feitos por um dos melhores chefs do mundo…
Ganhei muitos prêmios, alguns deles estão aqui [no restaurante], e ultimamente tenho treinado várias pessoas. A Dinamarca ganhou o ouro há três anos no campeonato mundial francês Bocuse d’Or e duas semanas atrás nós ganhamos a prata. Eu ando muito ocupado. A primeira estrela Michelin anunciada na Noruega, depois o Bocuse d’Or, treinando a equipe dinamarquesa e agora “os 50 melhores restaurantes”. Então, foi muito intenso, mas também é ótimo sentir que se está vivendo uma vida normal novamente. E poder se cercar de pessoas. E não precisa se distanciar e usar muitas máscaras.
A propósito, como surgiu o Angelika, seu restaurante pop-up criado durante a quarentena de 2020?
A ideia surgiu porque eu tenho feito dieta à base de plantas nos últimos dois anos, intermitentemente. Minha esposa é advogada e trabalha muito. Quando tivemos o lockdown, eu ficava sozinho com as crianças, preparando deliciosas refeições saudáveis para mim e para elas, e decidi: vamos fazer algo diferente. Vamos fazer algo que inspire as pessoas a incluir mais refeições à base de plantas em suas vidas, de forma descomplicada e que tenha um gosto muito bom… E que se sintam bem depois, com muitos nutrientes… Sabe, a gente precisa investir em si mesmo. Comer para mim não é só prazer, comida também é remédio. Então, você precisa se alimentar direito para ter uma vida longa e saudável, para se manter forte mentalmente, fisicamente… Enfim, para poder viver sua vida. É isso que tento seguir.
Também penso assim, mas não sou uma boa cozinheira. Procuro seguir uma dieta saudável, pensando nos nutrientes que o corpo precisa, mas não sei como “despertar” os sabores. Meu ex-companheiro disse que minha comida tinha gosto de comida de hospital (risos)…
Não, não… Tem que ter vida! A parte difícil [com o restaurante Angelika] foi para os chefs. O menu era baseado na comida que eu fazia em casa. E não tenho muito tempo. Porque se eu passar muito tempo cozinhando, as crianças começam a reclamar que estão com fome. Então, precisa ser meio rápido, mas não fast-food. Eu tenho 45 minutos, do início da preparação até a refeição servida na mesa. O menu não deve ser muito complicado, deve ser fresco, vivo, feito na hora. Então, no Angelika, eu cozinhava os mesmos pratos que fazia em casa. Mas era difícil para os chefs. Eles estão acostumados a decorar, ter o tempo deles… Mas tudo tinha que sair das panelas temperado com sal, pimenta e ir para a mesa. Fresco, cheio de vida, de aromas, de sabor, bem temperado…
Como foi essa experiência?
Foi muito interessante de fazer e inspirou a todos nós… Também queremos fazer um livrinho, vender para os clientes e doar o dinheiro para uma instituição. E não é uma ideia que acabou, só estamos descansando, vamos fazer de novo. Agora acabei de voltar do Bocuse d’Or e preciso me concentrar no Geranium. E estou feliz por estar de volta com minha incrível equipe. Estou trabalhando num monte de ideias novas, porque queremos mudar alguma coisa no Natal. E queremos criar um novo menu, despedirmo-nos dos antigos… Queremos mudar a sala de jantar, adicionar mais cores. Vai ser interessante.

E ainda há algum prêmio que você queira conquistar? Nesse sentido, o que é todo esse reconhecimento para você?
É uma boa motivação. Somos seres humanos, precisamos de reconhecimentos. Precisamos de abraços, às vezes. Este é um abraço do topo da gastronomia. Então, sim, é ótimo, mas não é algo em que eu penso no dia a dia. Estamos focados no Geranium, como podemos desenvolver o restaurante ainda mais. Quando eu e [meu sócio] Søren Ledet começamos há onze anos, este era um local completamente vazio. Viemos com nossas determinações, nossas visões, nossa amizade, nossas ideias e agora temos esse espaço com muitos convidados que estão aqui para ter uma grande experiência e esperamos poder dar-lhes isso. É por isso que estamos aqui. Mas também precisamos aproveitar o momento para nós mesmos. Não é apenas trabalho puro. É também sobre como viver sua vida. O tempo está passando. Podemos curtir a paisagem… às vezes é lindo o céu e o pôr do sol, ver as árvores e as diferentes cores… E também criando algo juntos. Às vezes, podemos criar uma energia mágica entre a equipe e o convidado… E isso não é algo que você simplesmente pode comprar; é algo que você precisa investir e criar. E é uma sensação incrível ver acontecer.
Tive essa sensação… Se eu pudesse descrever o que senti no seu restaurante, diria que é elegante, mas ao mesmo tempo descontraído e divertido… Porque também me diverti muito com sua equipe (apresentam os pratos de forma inteligente e bem-humorada)…
Eles são pessoas incríveis e diferentes. Como seres humanos, não somos os mesmos. Estamos todos aqui para criar uma ótima experiência e passar um bom momento juntos; porque quando você se diverte, é mais fácil divertir as outras pessoas. Mas você precisa começar com você, para que possa transmitir isso aos outros. Isso não é fácil de fazer, mas uma vez que já estabelecemos boas rotinas e temos experiência, podemos relaxar mais e servir comida em alto nível, e ao mesmo tempo se divertir.

Muitos jornalistas devem estar lhe perguntando isso, mas também vou fazer a pergunta. É uma coincidência que a Dinamarca tenha agora os dois melhores restaurantes do mundo? Por que você acha que isso está acontecendo?
Estamos muito felizes e honrados pelo reconhecimento internacional, por termos dois restaurantes no topo, em uma pequena cidade como Copenhague e lembrando que a Dinamarca é apenas um pontinho no mapa mundial. Isso é incrível. Também conta uma história de muita paixão e energia criativa. Talvez soe clichê, mas também existem tantos bons restaurantes ao redor do mundo e muitos deles estão proporcionando experiências muito diferentes e únicas. Você pode ir para a Itália, para o Brasil, Espanha, Suécia… e você encontrará ótimos restaurantes. Mas sim, há uma grande energia acontecendo agora em Copenhague. Não consigo nem acompanhar as pessoas que estão abrindo novos lugares, fazendo comida simples, fácil, sem ser cara… Também tem a cena do pão, que está bombando, padarias ótimas e cafés incríveis… É muito bom fazer parte disso.
Mas você diria que é parte da educação (gastronômica) ou é coincidência?
Talvez estejamos brilhando um pouco mais agora, no cenário da gastronomia internacional, mas antes tinha gente fazendo o trabalho duro e criando o caminho para a gente assumir, e temos que assumir. Quer dizer, eu faço o que sinto que devo fazer, gosto do que faço, e ainda vamos buscar mais. Ainda não terminamos, enquanto estivermos aqui, juntos, continuaremos a experimentar com base no alicerce que construímos e na forma que gosto de administrar uma cozinha bem aberta.
Em que sentido?
Quando eu era trainee de chef e depois chef… a cozinha ficava muito isolada do salão. Isso não traz energia para o salão. Então, abrimos a cozinha há cinco anos e essa é uma das mudanças mais corajosas que já fiz. No começo eu estava com um pouco de medo. E se falharmos? E se deixarmos cair alguma coisa no chão? Na verdade, eu acho que está tudo bem se às vezes alguém quebra um prato…
A propósito, tenho uma pergunta engraçada para você: se a comida cair no chão, ainda pode comê-la? Você tem alguma regra de segundos?
Não aqui, não. Não, não, não… aqui não. Quando estou fora, sim, podemos seguir a regra dos 5 segundos. Quando as crianças deixam cair alguma coisa, eu conto 1,2,3,4,5. Também depende de onde estamos, porque as bactérias naturais são realmente boas para o nosso corpo, porque fortalece o sistema imunológico. Mas é claro que não fazemos isso no restaurante. Sobre deixar cair um prato, está tudo bem, não vou ficar bravo… A menos que isso se repita muitas vezes, então vou achar que somos desajeitados e devemos trabalhar mais para avançar juntos. Não há problema em criar um pouco de ruído. Somos apenas seres humanos.
Uma pergunta sobre o nome do restaurante: por que Geranium?
Porque gostamos do nome e pensamos que se encaixa no que queremos criar aqui. Como a planta, queremos que o restaurante esteja vivo, cheio de energia, cheio de gente, seja verde, e não é que aqui servimos comida diet, mas também pensamos nos vegetais e na acidez da comida. E eu adoraria ver as pessoas comendo mais vegetais, a cor verde. O gerânio é uma planta muito aromática. E queremos que as pessoas aqui entrem em contato com seus sentidos. Os aromas na comida, no café, no vinho, nas cores, no que se vê, os padrões, a luz, os ruídos da cozinha, a textura tátil, crocante. Acredito em nossos sentidos humanos, nesse mundo muito estressante.
O que você acha dessa ideia de que durante o lockdown muita gente tenha redescoberto a cozinha?
Você tem mais tempo e questiona mais sobre a vida que está vivendo. Você está vivendo a vida que deseja e da maneira que deseja viver sua vida? Aí, claro, você tem tempo, consegue cozinhar mais e dedicar mais tempo nas refeições do dia. Isso é bom, porque você aprende a cozinhar; mas muita gente também engordou muito, porque começou a comer muito doce e assistir à muita TV. Mas aqui, no Fælledparken [parque público em frente ao estádio nacional] havia muitas atividades e os exercícios praticados no interior passaram a acontecer ao ar livre. Foi ótimo de se ver. E se você sabe cozinhar, pode dedicar mais tempo às refeições, também é ótimo, traz muitas coisas boas. As mudanças acontecem quando temos mais tempo para refletir sobre a vida que vivemos. Eu também refleti.
O lockdown mudou sua vida?
É por isso que abrimos o Angelika, o restaurante à base de plantas… E também aqui (no Geranium) sempre mudamos alguma coisa… Mas poder estar juntos, agora, é ótimo para nós. Você percebe o quanto significa estar juntos como um grupo e criar juntos. Eu estava com saudade disso, porque estava isolado.
Você intitulou seu último prato de “O fim” e o desenha como uma pequena caveira. Por quê? Que mensagem você quer passar?
Porque é uma reflexão divertida sobre a vida que estamos vivendo e também precisamos lembrar que precisamos aproveitar o momento, porque um dia não estaremos mais aqui. Vamos acabar como uma caveira dourada. Então, eu acho que é uma boa maneira de encerrar a refeição. Essa é a ideia.
