Crianças e mudanças climáticas: entre engajamento e ação
Fundadas no entendimento de que a crise climática é também uma crise aos seus direitos infanto-juvenis, crianças e adolescentes cada vez mais reclamam atenção para o fato de que a degradação ambiental produz problemas de contornos específicos sobre seus direitos
Em 2020, 4 crianças recorreram à Corte Europeia de Direitos Humanos (CEDH) contra o que consideravam violação da parte de 33 Estados europeus signatários da Convenção Europeia de Direitos Humanos ao seu direito à vida saudável em meio ambiente sadio e equilibrado. O caso, denominado Duarte Agostinho v. Portugal [1], ainda não possui estimativa de julgamento, razão pela qual o seu retorno à pauta do debate público mais se justifica pela envergadura do tribunal competente para julgá-lo e pela quantidade de países europeus ocupantes do banco dos réus do que pela matéria jurídica em si por ela tratada. Até porque, o debate acerca da associação entre meio ambiente e direitos humanos sob a perspectiva intergeracional não é propriamente novidade nas instâncias supranacionais de resolução de conflitos.
Tome-se, por exemplo, a posição firmada pelo Comitê das Nações Unidas para os Direitos da Criança (CNUDC) sobre o tema no caso Sacchi v. Argentina e outros [2], levada ao seu conhecimento em 2019. Proposta por 16 crianças contra 5 Estados signatários da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, que os acusam de contribuir para a degradação do meio ambiente natural, o Comitê também foi chamado a se pronunciar sobre a existência de violação ao direito à vida, à saúde e ao desenvolvimento, mais precisamente em seus aspectos positivos inscritos na Convenção e que tocam ao direito de (i) acessar serviços sanitários para tratamento de doenças e recuperação da saúde e (ii) fruir do meio ambiente equilibrado do qual depende sua subsistência física, espiritual e cultural.
De igual maneira, os peticionários do caso Duarte Agostinho afirmam que os Estados europeus, ao falharem em regular seus processos econômicos, mitigando suas consequências sobre as mudanças climáticas, contribuíram ativamente para impactar negativamente as condições de vida humana. Assim, a responsabilidade pelas ações e omissões ligadas à poluição atmosférica e umbilicalmente associadas a diversos prejuízos à sua qualidade de vida (tal como insegurança alimentar e falta de acesso à água potável e ar limpo) deve ser imputada aos Estados, a quem compete atuar com urgência na proteção daqueles que, em sendo mais vulneráveis, mais sentem os efeitos negativos das mudanças climáticas sobre seus direitos.
Tendo por pano de fundo os pontos de contato de ambos casos, muito pode ser dito a respeito do descomunal esforço empreendido por crianças e adolescentes para fazerem valer sua participação nas diferentes arenas de concertação política a respeito de seu direito fundamental à vida saudável. A começar pela tendência adotada pelos setores de proteção aos direitos infanto-juvenis de aforarem suas demandas diretamente nos fóruns regionais e internacionais de jurisdição contenciosa.
Em interessante resenha [3], a Harvard Law Review sugere que a intensificação da “creative litigation” (ou litigância estratégica, em bom português) em direitos infanto-juvenis seria, em verdade, produto da falha dos Estados em encontrar uma solução negociada, pela via dos acordos, para a crise climática que gradativamente inviabiliza o acesso a padrões adequados de vida. Sendo o Acordo de Paris o mais retumbante fracasso dentre todos os esforços recentes de resolução consensual aos processos econômicos que aceleram a degradação ambiental, as atenções se afastaram dos fóruns de debate para se voltarem aos sistemas (regionais e global) de proteção dos direitos humanos, em cuja jurisdição passou-se a depositar maior confiança para a resolução dos problemas climáticos que ameaçam as perspectivas futuras de vida saudável no planeta.
É neste contexto que surgem os casos Sacchi e Duarte Agostinho, nos quais se argumenta que os efeitos das mudanças climáticas (por exemplo, incêndios, desertificação, aumento do nível oceânico e alastramento de doenças como malária e dengue) são resultados diretos da postura negligente dos Estados. Eles se furtaram a levar adiante, pelos foros adequados de resolução política, todas as medidas científicas existentes ao seu alcance para garantir resultados mais robustos em matéria climática e, assim, impedir a concretização de efeitos irreversíveis ao meio ambiente natural.
A tal descompromisso com a pauta climática se seguiu a falha estatal na execução eficiente de seus poderes-deveres de monitoramento e coibição de condutas particulares e modelos econômicos perniciosos ao meio ambiente. Assim, concluem os peticionários de ambos os casos que os danos ambientais que hoje contribuem para a aceleração das alterações climáticas eram previsíveis e, portanto, evitáveis. Todavia, diante da incapacidade dos Estados em reduzir seus impactos ambientais no limite das ambições por si próprios estabelecidas em acordo, as causas para a degradação ambiental que ora ameaçam o exercício dos direitos fundamentais das atuais e futuras gerações devem ser a eles atribuídas.
Protagonismo das crianças na luta
A iniciativa de judicialização de pautas de direitos fundamentais por parte de crianças e adolescentes em substituição aos limitados fóruns políticos é acertada, mormente quando considerado que as instâncias judicantes supranacionais representam importante canal de controle das ações dos Estados. Da mesma maneira, é importante conferir o devido protagonismo às crianças e adolescentes na condução da pauta de justiça climática, sobretudo porque conformam a população desproporcionalmente mais exposta aos efeitos da degradação ambiental.
Tal fator de desproporcionalidade no tocante à absorção dos impactos ambientais é sentido pela população infanto-juvenil em dois níveis distintos. O primeiro deles diz respeito às necessidades particulares de crianças e adolescentes em comparação com aquelas existentes para a população adulta. Enquanto os adultos tendem a possuir maior resiliência no enfrentamento das mudanças climáticas, crianças, por efeito direto e imediato de sua imaturidade e desenvolvimento biopsíquico incompleto, por vezes não reúnem condições suficientes para resistir autonomamente a estes mesmos efeitos ambientais.
O segundo deles ocorre internamente à própria população infanto-juvenil. Tome-se por exemplo as populações indígenas. Em razão do seu especial modo de vida ligado ao meio ambiente natural em que inseridos, crianças pertencentes aos povos tradicionais dependem mais de um ambiente sadio e equilibrado para garantia de sua subsistência biopsíquica e cultural se comparadas com crianças de regiões urbanas, as quais tendem a possuir maiores oportunidades de acesso a serviços sanitários e de habitação para contornar os efeitos de catástrofes naturais que embaraçam o exercício dos direitos à saúde e moradia.
Ambas as hipóteses revelam a forma como as mudanças climáticas, embora atingindo a todos indiscriminadamente, afetam mais intensamente o modo de vida de uns em comparação a outros. Assim, seja em razão do seu desenvolvimento biopsíquico e imunológico incompleto, por suas condições socioeconômicos desfavorecidas ou, ainda, por sua maior exposição a locais propensos a escalada de catástrofes climáticas, crianças e adolescentes fazem jus à proteção redobrada dos Estados, a quem cabe implementar políticas públicas específicas em matéria ambiental que lhes garanta, sem discriminação em razão de origem, idade ou condição econômica, um meio ambiente equilibrado para viver de maneira digna.
Em resumo, fundadas no entendimento de que a crise climática é também uma crise aos direitos infanto-juvenis (“climate crisis is a children’s rights crisis”), crianças e adolescentes, a exemplo dos peticionários do caso Sacchi, cada vez mais reclamam atenção para o fato de que a degradação ambiental produz problemas de contornos específicos sobre seus direitos, além de expô-las a seus efeitos negativos por mais tempo em comparação com as gerações que as antecedem.
O notável aumento da participação de crianças e adolescentes nos fóruns contenciosos para discutir o efeito das mudanças climáticas sobre seus modos de vida é algo a se estimular. Tal engajamento cívico não apenas exprime a capacidade dessa população de acessar os sistemas de justiça e se fazer ouvir pelos demais atores políticos, como também confere maior respaldo e legitimidade ao processo de formulação de políticas públicas no domínio ambiental.
Atuação do Comitê das Nações Unidas para os Direitos da Criança
Por seu turno, o funcionamento do sistema de petições do Comitê das Nações Unidas para os Direitos da Criança também é notícia para celebrar, dada a importância do papel que desempenha na interpretação do direito das futuras gerações ao meio ambiente saudável. Sendo o organismo internacional responsável por monitorar a implementação dos direitos consagrados na Convenção sobre os Direitos das Crianças, o pronunciamento do Comitê a respeito de sua extensão e limites ajuda a robustecer as teses jurídicas que orbitam o núcleo do direito à vida em sua dimensão positiva. Nisso, auxilia outras instâncias decisionais a moldarem o seu posicionamento sobre o tema quando esta eventualmente surgir para sua apreciação.
Em Sacchi, por exemplo, parcela das conclusões do Comitê foram extraídas dos entendimentos firmados pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CADH) em sua Opinião Consultiva 23/2017 sobre as obrigações estatais em relação ao meio ambiente no marco da proteção dos direitos à vida e à integridade pessoal [4]. Com destaque para a importância conferida pela CADH ao direito à educação no desenvolvimento de crianças e adolescentes, o Comitê reafirmou que o aprendizado sobre respeito ao meio ambiente é condição imprescindível para a participação efetiva e informada de crianças e adolescentes nos círculos de discussão sobre justiça climática.
Além da questão da educação socioambiental, a CADH também consagrou a possibilidade de responsabilização extraterritorial de Estados por atos de degradação ambiental transfronteiriços. Segundo a CADH, ações e omissões praticadas por Estados soberanos que implicarem degradação ao meio ambiente natural deverão conduzir a sua responsabilização internacional perante os indivíduos afetados negativamente por seus efeitos, ainda que estes se encontrem fora de seu território ao tempo da ocorrência dos danos ambientais cometidos.
Malgrado o entendimento da CADH, referido em Sacchi, o Comitê não apreciou o mérito da demanda, ao fundamento de que os peticionários não esgotaram as instâncias judiciais domésticas antes de se socorrer ao seu sistema internacional de petições. Em que pese o revés dos peticionários, o caso Sacchi ajudou a galvanizar o sentimento de urgência que deve ser conferido à pauta ambiental, sobretudo no tocante ao seu entrecruzamento com aspectos fundantes do direito à vida das futuras gerações.
Inspirado pela necessidade de agir, o Comitê utilizou o caso Sacchi como ponto de apoio para a elaboração do Comentário Geral n. 26/2023. Contando com a contribuição de 16.331 crianças de 121 países, o documento trata do meio ambiente e mudanças climáticas no marco da proteção aos direitos infanto-juvenis [5]. Em especial, o Comitê consagrou o acesso ao meio ambiente limpo, saudável e sustentável como pré-requisito ao gozo dos direitos à moradia, alimentação e saúde. Assim, em posição que auxilia a preencher a lacuna legal para a qual a teoria do esverdeamento ambiental era chamada a suprir criativamente [6], o Comitê reconhece o meio ambiente sadio como direito fundamental (i) implicitamente previsto na Convenção sobre os Direitos da Criança e (ii) dotado de elementos substantivos (a exemplo da segurança alimentar, água potável e ar limpo) sem os quais o direito à vida digna se torna virtualmente inacessível.
É evidente, portanto, o ciclo virtuoso que a mobilização de crianças e adolescentes nas arenas de debate e proteção a direitos fundamentais produz para a evolução do Direito Internacional dos Direitos Humanos. Ao aportar novas considerações ao debate público a respeito da justiça climática para as futuras gerações, o Comentário Geral aumenta a consciência pública, inicialmente despertada pela CADH e instigada em Sacchi, para a necessidade de se conferir maior destaque ao meio ambiente sadio como direito fundamental imprescindível ao exercício de demais direitos.
Ao mesmo tempo em que sua participação é imprescindível para torná-los agentes do próprio destino, o engajamento de crianças e adolescentes permite às instâncias supranacionais de proteção aos direitos humanos florescer como importantes fontes interpretativas da extensão e limites dos direitos infanto-juvenis na seara do Direito Internacional dos Direitos Humanos. Assim, uma vez sujeitas a contínuas reciclagens, as premissas que garantem a proteção ao direito à vida saudável das atuais e futuras gerações oferecem as bases para que Estados se forcem a atuar de maneira presente e integrada para alcançar resultados concretos e positivos à qualidade de vida global. Reconhecidas como válidas, porém não aplicadas em Sacchi, espera-se que os posicionamentos firmados pelo Comitê e pela CADH sejam acolhidos pela CEDH em Duarte Agostinho e culminem na condenação dos Estados europeus pelos malfeitos causados ao meio ambiente.
Com grande potencial de se tornar um relevante precedente para a pauta da justiça climática das futuras gerações, é preciso atentar para os posicionamentos que advirão do julgamento do caso. A depender do veredicto alcançado, será possível continuar movimentando as engrenagens de um ciclo virtuoso de ação no domínio ambiental que produza ferramentas efetivas de proteção à vida dos atuais titulares de direitos e das gerações que os sucederem.
Bruno Andreoli Vargas de Almeida Braga é Advogado e Mestre em Direitos Humanos pela Queen Mary University (Londres, Inglaterra).
[1] CEDH; Duarte Agostinho and Others v. Portugal and Others, Application n. 39371/20, 13/11/2020.
[2] CNUDC; Chiara Sacchi et al., v. Argentina and Others, CRC/C/88/D/105/2019, 23/09/2019.
[3] Sacchi v. Argentina – Committee on the Rights of the Child Extends Jurisdiction over Transboundary Harms: Enshrines new Test, Comment on No. CRC/C/88/D/104/2019, vol. 135, Issue 7, 2022.
[4] CADH; Opinião Consultiva 23/2017 sobre Meio Ambiente e Direitos Humanos, série A, No. 23, 15/11/2017.
[5] CNUDC; Comentário Geral n. 26/2023, CRC/C/GC/26, 22/08/2023.
[6] Sobre a teoria do esverdeamento ambiental, ver Martins e Ribeiro, para quem não há previsão expressa de direitos de cunho ambiental na Convenção Americana sobre Direitos Humanos e na Convenção Europeia de Direitos Humanos, o que impossibilitava a judicialização direta da tutela ambiental nas instâncias supranacionais de jurisdição. Assim, para garantir que as Cortes Regionais e Internacionais pudessem se pronunciar sobre a amplitude das obrigações dos Estados concernentes ao meio ambiente e sua interrelação com a proteção e garantia dos direitos à vida e à integridade da pessoa humana, recorreu-se ao fenômeno do “esverdeamento dos direitos humanos”, subterfúgio técnico por intermédio do qual as Cortes progressivamente lograram vincular a pauta da justiça climática com violações a outros direitos humanos. MARTINS, Joana D’arc Dias; e RIBEIRO, Maria de Fátima. “Corte Interamericana de Direitos Humanos e Opinião Consultiva 23/2017: do Greening ao Reconhecimento dos Direitos Autônomos da Natureza”. Revista de Direito Brasileira, vol. 31, n. 12, 2022, pp. 151-174.