Decolonizar o Museu – Programa de desordem absoluta, de Françoise Vergès
Françoise Vergès descortina o paradoxo da representação do museu ocidental para seus leitores. Confira resenha do novo livro da autora, publicado este ano pela Ubu Editora
Cientista política, ativista, organizadora de exposições e oficinas em diversos museus e especialista em estudos pós-coloniais, Françoise Vergès esteve no Brasil recentemente, em eventos patrocinados pela Embaixada Francesa no Brasil, para lançamento do livro Decolonizar o Museu – Programa de desordem absoluta. Ela já é conhecida do público brasileiro por dois outros livros lançados também pela Ubu Editora, Uma teoria feminista da violência: por uma política antirracista da proteção (2021) e Um feminismo decolonial (2020).
Decolonizar o Museu – Programa de desordem absoluta é publicado no Brasil em uma edição que traz na capa uma arte poderosa de Emory Douglas (artista e ativista do Black Panther Party), chamada Afro-American Solidarity with the Oppressed People of the World [Solidariedade afro-americana com os povos oprimidos do mundo], de 1969. A escolha se mostra especialmente condizente na medida em que a obra de Françoise Vergès trata dos problemas do museu universal. Feito para mostrar o poderio do homem branco, sua construção enquanto instituição colonial baseou-se no furto de objetos de todos os lugares do mundo onde houve vencidos de guerra. A autora propõe a decolonização desse espaço, ou seja, que esses objetos sejam reapropriados por aqueles que deles foram despossuídos.
O texto de orelha é de Camilla Rocha Campos, artista, curadora e professora, que aproveita o espaço não apenas para apresentar o livro, mas para trazer a reflexão contida nele para o cenário nacional. A obra é desenvolvida em cinco capítulos e conta com prefácio e epílogo da própria autora.
Vergès, logo na introdução, descortina o paradoxo da representação do museu ocidental para seus leitores. Estabelecido como um lugar neutro, quase sagrado, um depósito do universal, esse museu é, na verdade, composto por objetos, quadros, móveis e estátuas que são fruto de saques e pilhagens de guerra. Mas ele ainda consegue se apresentar como esse espaço sem conflito: as pessoas falam baixo e não há demonstrações de excessos ou intemperança.
Essa farsa, no entanto, vem sendo desmontada. Há décadas, o museu tem sido contestado e questionado, pois já se compreendeu que as desigualdades estruturais que existem nele refletem as desigualdades globais criadas pela escravidão, pela colonização, pelo capitalismo e pelo imperialismo. O museu ocidental só alcançou essa glória porque foi construído sobre muita miséria e expropriação.
A questão que atravessa o livro e sobre a qual ele se estrutura é a de se pensar se a decolonização do museu ocidental seria possível. Para isso, Vergès parte do pensamento decolonial de Fanon, presente no subtítulo – “programa de desordem absoluta” – e com o qual ela inicia e sustenta sua argumentação no primeiro capítulo. Ela explica que a desordem absoluta não significa o caos, mas o estabelecimento de uma ordem que seja diferente daquela que os poderosos chamam de ordem mundial. Esse mundo “em ordem” foi criado e estabelecido por esse poder que se originou no dinheiro gerado pelo tráfico, pela escravidão, no capitalismo patriarcal e racial e que se perpetua no sistema bancário que decorre dele.
O museu universal existe em decorrência dessa lógica, e, nesse sentido, é impossível decolonizá-lo. O programa de desordem absoluta instiga a luta pela dignidade e pela vida, já que nos mesmos lugares onde estão a pobreza e a exploração também são os que mais têm sentido as mudanças climáticas, as guerras e os efeitos da pandemia. Trata-se de um processo histórico, segundo Fanon, que não se faz percebido senão pelo movimento historicizante que lhe dá forma e conteúdo.
Para Fanon, o mundo colonizado é dividido em dois e essas duas partes são inconciliáveis. Nas fronteiras estão as delegacias e os quartéis, impondo a ordem pela violência, e, no lado dos colonizados, as escolas ensinando a submissão, que é reforçada e recompensada por homenagens e condecorações. Ou seja, o rompimento dessa ordem não tem como se dar se não for de maneira absoluta. O museu pode ser apontado como um dos pilares dessa narrativa, uma “vitrine de civilização”, que está integrado a outros dispositivos do Estado e do Capital.
O segundo capítulo apresenta o museu como um campo de batalhas, acrescentando a crítica aos processos de filantropia que encobrem essas lutas e que fazem do incentivo à arte um modo de enfraquecer a luta dos colonizados, tudo isso envolvido por uma aura de benevolência difícil de ser atacada – “a filantropia se alimenta da precarização sobre a qual repousa o sistema que a inventou” (p. 111).
O museu universalizado alega encarnar toda a humanidade, o que significa dizer que o universal é ocidental e organizado segundo sua lógica. Também implica alegar que os objetos do colonizado estão no museu para serem preservados e que por isso eles adquiriram um novo status. Por fim, retirar e exibir os objetos de seus lugares originais também naturaliza a violência da colonização. Vergès nos lembra que esse processo de expropriação e roubo em situações de guerra continua em curso, e cita a Palestina e Bagdá.
Mas, se propõe-se, por um lado, o fim do museu universal, por outro, as práticas decoloniais e o engajamento antiracista dele não podem prescindir, pois exigem memória. O antirracismo neoliberal impele a seguir em frente, esquecendo o que ficou para trás e pelo que se passou. O museu, assim, colocado como um espaço da memória, tem importância fundamental nessa luta.
Quando Vergès mostra, no capítulo três, o Louvre – o museu universal original – como aquele que contém os saques de Napoleão e, mais especificamente, quando fala da exposição montada por ela, O escravo no Louvre, ela exemplifica essa questão por meio do apagamento da relação do tabaco, do café e do açúcar com a escravidão. Esses produtos aparecem nos quadros ligados ao cotidiano, aos hábitos sociais dos europeus, e, assim, são naturalizados, mascarando as relações de poder e de violência que envolvem sua produção e sua chegada à Europa. Naturaliza-se o consumo de tabaco como ligado à masculinidade ocidental, mas se apaga sua produção nas colônias pelas mãos escravas.
No quarto capítulo, Negro é o modelo, branca é a moldura, Vergès discute e exemplifica o apagamento do negro na arte. O modelo negro está presente nos quadros, mas invisibilizado, não nomeado, apagado. Como mais contundente exemplo, ela cita a criada negra do quadro Olympia (1863), de Manet: ela está lá, mas não tem nome, não se fala dela.
Os questionamentos de Vergès em relação ao negro no museu vão além de sua aparição nas obras ou como autores de arte e abrangem os trabalhadores e os visitantes. Percebeu-se que os negros no museu estavam quase sempre a trabalho, limpando e cuidando, mas raramente visitando e apreciando as obras de arte. Questiona-se se esses trabalhadores recebem condições dignas de trabalho e salários decentes. Tão pouco são bem vindos os estudantes periféricos, cujo comportamento é considerado ruidoso e inadequado – os museus parecem ser feitos para que esses jovens não apenas não se reconheçam nele, mas também que não se sintam bem vindos.
O livro traz a experiência da autora na montagem de exposições e oficinas que buscam quebrar essa ordem, nem todas bem sucedidas. O quinto e último capítulo é dedicado ao projeto de um pós-museu na Ilha da Reunião, onde ela cresceu. A história do fracasso do projeto é contada por Vergès como um aprendizado da impossibilidade de criar um museu decolonizado ainda dentro de um capitalismo racial.
A população da ilha tinha demandas que lhes pareciam mais urgentes e questões políticas que diziam respeito à família da autora também parecem ter pesado muito. Nesse projeto – no qual se concebeu um museu-casa que foi chamado de Maison des Civilisations et de l’Unité Réunionnaise (MCUR) [Casa das Civilizações e da Unidade Reunionense] – ela deixa entrever que a ideia de um pós-museu inclui a de um espaço de funcionamento e acolhida, um museu do tempo presente que acolha eventos, narrativas, sons, imagens e objetos.
A proposta de Françoise Vergès, bem desenvolvida ao longo das 272 páginas, é a de que é preciso pensar um “pós-museu” que leve em conta essas questões tão amplas quanto complexas apresentadas no livro. Não há proposta pronta, mas trabalho a ser construído conjuntamente, com atenção e cuidados constantes. Aprender a desobedecer, contornar e enfrentar.
Vergès insiste que pensar pequenos avanços [em termos de representatividade cultural] como sendo “melhor que nada” mata tudo pela raiz, porque não coloca a luta de frente e condiciona o sujeito a não pensar no “por que não?”. Essa oposição entre o “melhor que nada” e o “por que não” está no âmago do caminho percorrido pela autora, que traz para as reflexões sobre a decolonização do museu as questões patriarcais, capitalistas, neoliberais, do feminismo ativo, que constroem verdadeiramente uma aliança entre todos os povos oprimidos que lutam por essa proposta de uma nova ordem do mundo.
Ana Carolina Cortez Noronha é professora e pesquisadora, concluiu seu doutorado em Linguística e Semiótica pela USP em 2020.
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