Democracias perecíveis
Segundo uma concepção amplamente difundida, a instauração do sufrágio universal é o desfecho do processo democrático: qualquer volta atrás é impossível. Do ponto de vista global, porém, o direito de voto está longe de ser linear. Enfrentando frequentes retrocessos, demanda mobilização popular e continua sendo frágilRazmig Keucheyan
A democracia está em crise. Isso se ilustra muito bem pela distância que separa o Programa de Salônica – com base no qual o Syriza venceu as eleições legislativas gregas de janeiro – da cascata de concessões impostas pela União Europeia ao governo saído das eleições. “É a lógica do 70-30”, explica doutamente o comissário europeu para Assuntos Econômicos, Pierre Moscovici: “70% de medidas [requeridas por Bruxelas] que não são negociáveis, e 30% que podem ser modificadas”. Na hierarquia dos valores políticos de nosso tempo, a soberania popular tem uma pálida presença.
Como todos os regimes políticos, as democracias são mortais. Elas podem desaparecer, e para entender isso é preciso interrogar-se como elas nasceram. As democracias representativas consistem em um conjunto de instituições políticas, jurídicas, econômicas e culturais. A instauração da seguridade social na França não é apenas uma conquista social, mas também uma conquista democrática, que permitiu a todos exercer sua cidadania ao abrigo dos caprichos da existência. Mas há um princípio que parece característico das democracias representativas contemporâneas: o sufrágio universal, ou seja, o direito de qualquer pessoa adulta escolher seus representantes ou pronunciar-se em um referendo. Esse direito é acompanhado por uma série de liberdades fundamentais: de consciência, de expressão, de reunião, de organização…
O sufrágio universal não surgiu do dia para a noite. Na verdade, nenhuma das revoluções ditas “burguesas” concedeu imediatamente o direito de voto a todos os cidadãos. Na Revolução Francesa, por exemplo, a Assembleia Legislativa foi eleita em 1791 com um sufrágio censitário de dois graus. Quando se estabeleceu a Primeira República Francesa, em 1792, o sufrágio foi ampliado para as eleições da Convenção, mas as mulheres e as pessoas sem renda continuaram excluídas. Em seguida, a Constituição do Ano I (1793) previu um sufrágio universal masculino, mas foi rejeitada em 1795, voltando ao sufrágio censitário. O surgimento de democracias plenamente representativas levou tempo. Ele precisou da intervenção de fatores adicionais, sobretudo da luta popular, de “baixo”, pela ampliação dos direitos democráticos. Como afirma o cientista político Adam Przeworski, “os direitos políticos foram conquistados pelas classes populares”1 e só foram concedidos pelas elites quando estas foram obrigadas a isso. O esgotamento dessas lutas e a dificuldade dos movimentos sociais em exigir novos direitos explicam, inversamente, a atual perda de vivacidade democrática.
A história global do sufrágio universal permite evidenciar as determinantes da democratização. A Libéria (1839) e a Grécia (1844) foram os primeiros países a instaurar o sufrágio universal masculino, enquanto Nova Zelândia (1893), Austrália (1901), Finlândia (1907) e Noruega (1913) foram os pioneiros do sufrágio universal integral. Trata-se de países relativamente “periféricos” nos planos geopolítico e econômico. Em 1900, dezessete Estados haviam instaurado o sufrágio universal masculino; apenas um havia adotado o sufrágio universal.
Direito de voto variável
Um grande avanço ocorreu após a Primeira Guerra Mundial. Em menos de quinze anos, o número de democracias representativas integrais passou de quatro para dez. Depois esse número caiu, na década de 1930, com a ascensão do fascismo. Na Alemanha, por exemplo, a República de Weimar havia instaurado o sufrágio universal para ambos os sexos em 1919; ele foi abolido por Adolf Hitler em 1933. Assim, a verdadeira revolução do sufrágio universal só aconteceu após a Segunda Guerra Mundial. Para citar apenas alguns exemplos, a França o adotou em 1944; a Itália, em 1946; a Bélgica, em 1948; o Japão, em 1952; os Estados Unidos, em 1965 (com o Voting Rights Act, que permitiu aos negros do sul do país votar livremente) etc. Proclamados no final do século XVIII, os princípios da democracia moderna levaram mais de 150 anos para se tornarem plenamente uma realidade. Isso porque, na mente de muitos de seus “pais fundadores”, reais ou imaginários, o direito de voto estava reservado aos homens brancos ricos.
Raramente a ampliação desse direito seguiu um processo linear. Após a Revolução, que conheceu quatro tipos de voto, a França ainda passou pelo sufrágio censitário (reinstaurado em 1815) e pelo sufrágio universal masculino (aprovado por decreto em 5 de março de 1848), voltou brevemente ao sufrágio censitário (com uma lei de 3 de março de 1850 que privou do direito de voto 2,5 milhões de eleitores do sexo masculino) e adotou o sufrágio universal masculino (no Segundo Império e na Terceira República). O sufrágio universal integral foi finalmente instaurado em 1944.2 Essas idas e vindas são frequentes na história das democracias, e não há nenhuma razão para pensar que elas tenham ficado definitivamente para trás.
Especialmente, três critérios de exclusão do voto foram utilizados na história contemporânea: classe, gênero e “raça”. O critério social é o mais comum. Ele inclui, e muitas vezes combina, condições de propriedade privada, renda, imposto e até alfabetização. Embora menos recorrentes, os critérios sexual e racial têm se mostrado mais persistentes. Os Estados Unidos, que aboliram suas leis eleitorais racistas apenas em 1965, e a Suíça, que colocou fim ao sistema de voto sexista em nível federal em 1971 (alguns cantões já o haviam feito desde a década de 1950), foram por muito tempo democracias inacabadas. Aliás, a lei eleitoral norte-americana teve retrocessos recentes, com o retorno de critérios de exclusão: nas eleições de novembro de 2014, vários governadores republicanos tentaram afastar das urnas os “maus eleitores”, oriundos de bairros populares de maioria negra ou hispânica, muitas vezes próximos dos democratas.3
Existe uma lógica por trás das ampliações do direito de voto? Embora a democracia não possa ser reduzida a uma causa única, há “efeitos de imitação”: quanto maior o número de democracias no mundo, maior a pressão sobre Estados não democráticos para que eles tenham pelo menos a aparência de um funcionamento democrático. No século XX, os piores ditadores reivindicaram-se democráticos e organizaram eleições de fachada.
Mas há um fator que é condição necessária para a ampliação do sufrágio: a existência de lutas populares em seu favor. No plano estatístico, constata-se que o total de greves, manifestações, revoltas e outras formas de mobilização (mais ou menos violentas) aumenta sistematicamente nos anos que precedem as ampliações do direito de voto.4 A correlação estatística entre a extensão dos direitos democráticos e outras variáveis – crescimento econômico, alfabetização, urbanização – parece claramente mais fraca.
A explicação é simples. Por razões políticas ou econômicas, os grupos dominados – movimento operário, feministas, minorias – exigem a igualdade de direitos, em particular o direito de voto. As elites resistem tanto quanto podem. A ideia de que a ampliação do sufrágio é uma ameaça à propriedade privada é corrente no pensamento político (e não apenas o conservador) dos séculos XIX e XX, bem como o argumento de que só os ricos são capazes de governar pelo interesse geral.5 Argumentos desse tipo reaparecem frequentemente na história das democracias, como em 1975, quando a Comissão Trilateral liderada por Michel Crozier, Samuel Huntington e Joji Watanuki publicou seu relatório sobre a suposta “crise de governança” das sociedades modernas.6 Mas, quando a pressão popular é muito forte, as elites são forçadas a ceder.
No entanto, isso não significa que as classes populares tenham conquistado sozinhas esses direitos democráticos. Dois fatores adicionais tiveram um papel determinante nos processos de democratização: as guerras e as divisões no seio da elite.
Nas palavras do sociólogo Göran Therborn, algumas democracias são “democracias da derrota”, ou seja, surgiram durante ou após uma guerra.7 Na Áustria, Alemanha, Itália e Japão, por exemplo, a ampliação do sufrágio foi consequência mais ou menos direta de derrotas militares. O mesmo se aplica à França do final do século XIX, que retomou o sufrágio universal masculino após a queda de Napoleão III e a derrota na Guerra Franco-Prussiana de 1870. Portanto, não é um acaso que a revolução do sufrágio universal tenha se dado após a Segunda Guerra Mundial.
Derrotas militares embaralham as coalizões políticas existentes. Elas enfraquecem a hegemonia do bloco no poder, permitindo que outras forças se façam ouvir. A ampliação do sufrágio também se deu, diversas vezes, no contexto da preparação de uma guerra. Nesse caso, ela serve para unir a população. Em suas memórias, Otto von Bismarck escreve que “a aceitação do sufrágio geral [em 1866] foi uma arma na luta contra a Áustria e as outras potências estrangeiras, uma arma na luta pela unidade nacional”.8
As divisões no seio das classes dominantes contribuíram para a extensão do direito de voto. Para estabelecer seu domínio, as aristocracias do Antigo Regime apoiavam-se em hierarquias sociais, que também serviam como mecanismo de resolução de disputas. Classe dominante de um novo tipo, a burguesia dissolveu – pelo menos parcialmente – essas hierarquias. Em razão da divisão social e espacial do trabalho, formaram-se dentro dela “frações” (industriais, agrícolas, comerciais, financeiras etc.), cujos interesses não necessariamente coincidiam. Essas frações competiam umas com as outras pela apropriação do poder e do lucro, a maior parte do tempo de forma pacífica, e às vezes por meio de guerras. O aprofundamento das divisões no interior das classes dominantes nos Estados Unidos, por exemplo, foi uma das causas da Guerra de Secessão (1861-1865).
Dinâmica de alianças e conflitos
Com o objetivo de organizar sua dominação e assegurar que a disputa entre frações não degenerasse, a burguesia recorreu a um novo mecanismo de regulação: o sistema parlamentar. Assim, surgiram regimes “protodemocráticos” no limiar da era moderna, como as cidades-Estado italianas, alemãs e suíças, e depois a partir de meados do século XVIII, com a monarquia parlamentar britânica, a mais antiga do mundo, ao lado da do reino da Suécia. As raízes do parlamentarismo remontam à Antiguidade, mas sua combinação com o capitalismo conferiu-lhe funções históricas novas.
Assim, a existência de frações internas à elite econômica deu lugar a alianças dinâmicas e conflitos. Abriu-se então um espaço político no qual os grupos dominados fizeram valer suas reivindicações, entre elas o direito de voto. O sucesso nessa área às vezes dependia das alianças que esses grupos conseguiam estabelecer com alguns setores da elite. Além da pressão exercida pelos movimentos feministas, a extensão do direito de voto para as mulheres deveu-se, em alguns casos, à convicção desta ou daquela fração da classe dirigente de que o voto dessas mulheres lhes seria favorável – nos países católicos, por exemplo, acreditava-se que as mulheres seguiriam as recomendações do clero. A pressão vinda de “baixo” combinou-se, portanto, com as divisões existentes “em cima”.
Que lições a tumultuada história global do sufrágio universal nos ensina para o tempo presente? Se a democracia hoje parece em perigo, é porque a principal razão de sua emergência, a pressão popular exercida durante um século e meio, enfraqueceu-se significativamente no último quarto do século XX, pelo menos nos países desenvolvidos de longa data (nos “emergentes”, a história é diferente). A ausência de divisões dentro da classe dominante aparece como outro fermento do retrocesso democrático. Ao longo das últimas décadas, o neoliberalismo foi tão hegemônico que não tolerou nenhum projeto político alternativo,9 nem mesmo vindo de dentro da elite. Desse modo, a solidez do bloco no poder não deixou nenhum espaço para os movimentos populares. É impressionante observar, a esse respeito, que a crise econômica declarada em 2008 não abalou a unidade das classes dominantes, como atesta a solidão do governo grego diante da intransigência europeia. Mas a vitória do Syriza serviu para mostrar que existem brechas. Que várias delas se abram simultaneamente, nos anos vindouros, e a democratização possa retomar seu avanço.
Razmig Keucheyan é conferencista de Sociologia da Universidade Paris-Sorbonne.