A demografia médica brasileira e o storytelling dos cursos de medicina
O Ministério da Educação tem agido como numa “operação tartaruga”, sem concluir os processos de autorização que estão sob sua análise e sem decidir muitos que chegaram ao seu fim e aguardam apenas a emissão da portaria de autorização
O que as cidades de Serra do Navio (AP), Parintins (AM), Ipiranga (CE), Piaçabuçu (AL), Conde (BA), Varjão (GO), Estrela do Sul (MG), Eldorado (SP), Bandeirante (SC) e Braga (RS) têm em comum? Nos diversos estados e regiões do país, todas foram consideradas como de “alta necessidade” para recebimento de novos cursos de medicina pelo MEC (Edital n.º 1/2023). No ano passado, notícias sobre a falta de médicos em capitais ou regiões metropolitanas ganharam manchetes dos veículos de imprensa, a exemplo do Hospital Regional da Ceilândia, cidade satélite de Brasília.
Com uma clara preocupação com a abertura de novos cursos de medicina e a consequente possibilidade do número de profissionais da área saltar de 545 mil para 1,3 milhão, em março deste ano, a apresentação “Nova Demografia Médica” repercutiu por pontuar que a densidade e a proporção de médicos a cada 1.000 habitantes já é equiparável aos Estados Unidos. Alguém incauto poderia considerar, então, que faz pouco ou nenhum sentido essa expansão brasileira do ensino da medicina. No entanto, alguns dados relevantes não foram expostos, como o fato da “Associação Americana de Hospitais” apontar que os Estados Unidos enfrentam escassez de 124 mil desses doutores.
O “US Bureau of Labor Statistics” já indicou que aquele país precisa imediatamente de 16 mil profissionais, entre médicos e enfermeiros. Segundo a “AMN Health Care” retratou, 62% dos residentes, durante a residência, chegam a receber mais de 26 ofertas de trabalho. A questão nem é o inflacionamento salarial, que ocorre, mas principalmente a baixa cobertura de atendimento à população norte-americana.
Então é mesmo preocupante o aumento de médicos no Brasil? Haveria campo de internato suficiente para treinamento e formação deles, já que a formação não depende apenas de sala de aula? Essa é uma pergunta pertinente porque o curso médico exige níveis de práticas e vivência hospitalar muito elevados. Segundo PROVMED (USP, Ministério da Saúde e Organização Panamericana de Saúde), em 2020 o país contava com 357 escolas médicas que ofertavam 37.823 vagas de curso. O DIEESE-RS, naquele mesmo ano, indicou que havia o total de 326.276 leitos SUS e 159.807 leitos não SUS no Brasil.
Com essas informações, é possível verificar que em 2020 a ocupação ideal do total de leitos SUS para fins de internato era de 189.155 leitos, o que equivale a pouco mais da metade da rede pública já instalada (57,96%) naquele momento. Então ainda existe a possibilidade de ocupação do restante da rede como campo de prática e, na realidade, essa rede ociosa seria de 137.161 leitos disponíveis, ou seja, 42,04%. A questão é que o sistema público de saúde brasileiro, conhecido como SUS, é o maior do mundo. Isso não pode ser desprezado nas análises feitas.
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Nesse storytelling é difícil engolir que as instituições de educação superior sejam vilões ou mesmo que haja vilões. Por um lado, é óbvio que foram feitas críticas contundentes à concentração mercadológica exercida pelos Grandes Conglomerados Empresariais Educacionais, mas as IES sem fins econômicos, associações e fundações acordaram e exigiram participar desse mercado, não só porque geram formação de alta qualidade, mas, também, porque é comum a elas utilizar os recursos financeiros para sustentar outros cursos deficitários.
O Ministério da Educação tem agido como numa “operação tartaruga”, sem concluir os processos de autorização que estão sob sua análise e sem decidir muitos que chegaram ao seu fim e aguardam apenas a emissão da portaria de autorização. Com isso, ele aparenta estar numa queda de braço com o STF, que já determinou o processamento dos procedimentos de autorização que ultrapassaram a fase de análise documental. O próprio TRF1 passou a impor, pontualmente, a liberação de cursos, na hipótese específica em que foi concluído o processo administrativo, todos os avaliadores apontaram o cumprimento dos requisitos estruturais e acadêmicos e nos quais o MEC, intimado reiteradamente, não decidiu tais procedimentos. Esse tipo de desentendimento institucional (MEC X STF e TRF1) nunca é bom.
A questão não é tecer críticas ao estudo de demografia médica tão noticiado na imprensa, mas compartilhar reflexões sobre algumas de suas conclusões que, aparentemente, encobrem questões corporativas que são cabíveis e que, contudo, devem ser colocadas explicitamente. Na essência, a política de autorização de cursos de medicina e de aumento de vagas dos cursos já existentes é confusa, gera muitas desconfianças e tem muitos interesses corporativos envolvidos e contrapostos entre si. Ao MEC foi dado um voto de desconfiança quando o tema foi levado ao STF; basicamente se buscou num terceiro imparcial a solução dessa celeuma.
Todavia e independentemente disso, qual o problema do país ter mais médicos? Qual o problema de haver mais concorrência entre eles? Ou da utilização plena da capacidade do SUS para realização de internato? Ou mesmo do Brasil ter mais médicos do que os Estados Unidos, se nosso sistema público é o maior do mundo e aquele sequer conta com um sistema do tipo? Na essência, a criação do SUS é um marco tão considerável que a comparação com a maior parte dos outros países simplesmente não faz sentido quando o estudo do tema é mais profundo.
Por tudo isso, se o Ministério da Educação fizer seu papel de regular e supervisionar; se os Conselhos Profissionais de Medicina fiscalizarem os profissionais que serão seus integrantes; se houver mais concorrência no mercado médico, dado que mais IES oferecem tais cursos, o que possibilita supor que haverá um movimento de redução do valor das mensalidades; qual o prejuízo da população, principalmente a mais interiorizada e menos assistida? Se o leitor, após essa análise, não conseguir apontar concretamente quais seriam esses problemas, não há motivo para frear tal expansão.
Dyogo Patriota é assessor jurídico da ABRUC.
“ qual o problema do país ter mais médicos? Qual o problema de haver mais concorrência entre eles”…há um grande problema a ser equalizado sim: precisamos de docentes qualificados, com mestrado, doutorado…ou ao menos que sejam Especialistas na Área afim a ser ministrada… há escolas médicas em que o “professor” de Cardiologia é uma Otorrinolaringologista…há falhas na formação que precisam ser corrigidas. Vc poderia dizer: “é melhor do que nada”…depende…e se fosse alguém da sua família, e se fosse a sua mãe sendo atendida por um profissional não qualificado ? Há aberturas de cursos de medicina sem sequer ter um hospital escola…e aí ? Capito ???