A mercantilização do ensino superior privado no Brasil
Como a mudança de paradigma na oferta do ensino superior privado no Brasil, com o aumento considerável de matrículas no EAD, pode inferir na qualidade acadêmica e formativa dos alunos?
Nas últimas duas décadas, houve um aumento considerável de matrículas nos cursos de graduação em faculdades privadas. Em aproximadamente duas décadas, o ensino superior no Brasil cresceu mais de 250%, alcançando um patamar nunca antes visto. Com o aumento da oferta de cursos a distância no setor privado, a educação a distância (EAD) alcançou, em 2018, 29,6% do total de matrículas e 45,7% do total de novos ingressos, segundo dados obtidos pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. O aumento do número de graduandos expõe bons méritos do acesso ao ensino superior. Em contrapartida, revela um novo mercado, não tão interessado em formar bons profissionais e acadêmicos, mas preocupado com o lucro.
Entendemos a “mercantilização” como um processo de transformação de determinado objeto ou serviço em mercadoria. Algo que outrora não tinha um sentido comercial ganha esse caráter, tornando-se, portanto, negociável e alienável. Ao falar da “mercantilização do ensino superior privado” compreende-se que o elemento destacado passa a ser negociável por critérios ligados ao lucro, fora de seus reais objetivos, como a qualidade da educação.
Esse fenômeno ganha espaço não somente nas capitais e nas regiões metropolitanas do país, mas nas demais localidades onde, anteriormente, dificilmente havia possibilidade de se instalar um ensino superior. Com o avanço da EAD, há um acúmulo de matrículas em poucos grupos empresariais, que se apresentam, ao mesmo tempo, como um facilitador – possibilitando àqueles que têm uma vida compactada pelos compromissos do dia-a-dia se tornarem universitários – e um problema, dado que faltam com a qualidade necessária para formar tais discentes de modo qualificado.
Como a mudança de paradigma na oferta do ensino superior privado no Brasil, com o aumento considerável de matrículas no EAD, pode inferir na qualidade acadêmica e formativa dos alunos?
Segundo dados trazidos por Carlos Eduardo Bielschowsky, da UFRJ, ao analisar o levantamento de dados obtidos pelo INEP no exame do Enade 2016-2018, 49,1% dos alunos dos 10 grandes grupos estavam matriculados em 2018 em cursos cujo último conceito Enade (2016-2018) era insuficiente. Na mesma situação, estavam 36,9% dos alunos das demais 2.000 IES (Instituições de Ensino Superior) particulares e apenas 15,8% dos alunos das IES públicas. Esse dado não só traz um alarmante dado sobre a qualidade do ensino ofertado, como também uma desconexão da universidade com os próprios alunos.
A estratégia de captação desses grandes grupos é de modo contínuo, ou seja, é uma prática que se dá ao longo de todo o ano, e não esporadicamente em determinados momentos, com campanhas e anúncios constantes nas redes sociais e meios de comunicação na grande mídia, ofertando baixos valores de matrícula nos primeiros meses. O marketing atrai e possibilita o ingresso do universitário no ensino superior, mas não fornece uma estrutura adequada para que este mesmo universitário tenha uma formação adequada e competente.
Uma extensa lista de problemáticas envolve tais ofertas nos IES privados: a terceirização de atividades acadêmicas; a qualidade dos cursos de graduação que, na prática, nem poderiam ser ofertadas; o material didático pouco aprofundado para um curso de graduação, muitas vezes sem até mesmo um material complementar; avaliação sem conexão com as propostas em sala de aula pelos docentes, com correções automáticas, provas objetivas à exaustão com base em materiais rasos; a falta de professores em muitas disciplinas, reutilizando os poucos que se tem para economizar no custo final.
Somado a isso, ainda há o fenômeno da pouca exigência na contratação dos docentes, alguns sem mestrado ou doutorado para lecionar nas referidas universidades, com remuneração abaixo do que se espera para um professor de faculdade. Além disso, dificilmente encontramos suporte acadêmico adequado para suprir as deficiências, muitas vezes graves, que acompanham inúmeros discentes, que por precariedade na qualidade do ensino médio não acompanham com facilidade o andamento das disciplinas.
O conteúdo ministrado superficialmente preocupa a formação nas carreiras escolhidas, sem a oferta adequada de conhecimento compatível com o exigido no ensino superior. Um dos grandes empecilhos gira em torno dos processos regulatórios (como, por exemplo, os decretos nº 9.235/17 e 9.057/17 e Portaria MEC nº 11/2017), que permitem a criação de novos pólos de ensino sem vistoria prévia, possibilitando o credenciamento de novas IES sem profunda análise do MEC.
Toda essa discussão expõe a situação grave que acontece em nosso país. Os grupos empresariais donos das grandes redes de ensino superior privado no país conquistam o público de baixa renda, que sonha em obter o diploma do ensino superior, através de um marketing poderoso e ofertas sedutoras de mensalidades atrativas – até certo ponto. A qualidade desse ensino desnuda a atual crise na Educação Superior. O futuro não é dos mais animadores, pois os últimos resultados indicam um crescimento ainda maior nas ofertas e matrículas, aumento de novos cursos e redução do tempo nos pólos presenciais. O “fast food” acadêmico tem gerado bons lucros…
Railson Barboza é Bacharel em Filosofia (PUC-Rio), Doutorando e Mestre em Política Social (UFF).
INEP. (s/d). Microdados do Censo da Educação Superior e do Enade. Disponível em: http://portal.inep.gov.br/web/guest/microdados.
BIELSCHOWSKY, Carlos Eduardo. Tendências de precarização do ensino superior privado no Brasil. RBPAE – v. 36, n. 1, p. 241 – 271, jan./abr. 2020.
É evidente o aumento substancial de matrículas no ensino superior privado e o crescimento expressivo das modalidades de educação a distância (EAD) nas últimas duas décadas no Brasil. No entanto, discordo da ideia de que o grande problema esteja no ensino superior. Minha experiência em uma escola pública me leva a considerar que até mesmo o que é considerado o “pior” programa de ensino a distância no nível superior tende a superar muitas instituições de educação básica. Esta discordância é baseada no entendimento de que a raiz do problema está na educação primária e secundária.
Reitero minha oposição ao monopólio do ensino superior, enfatizando a urgência de focar na melhoria da educação básica, que é crucial para preparar de forma mais eficaz os estudantes para o ensino superior. Considero preocupantes as críticas exclusivas ao ensino superior e, ao mesmo tempo, a falta de reflexão e crítica em relação à educação básica, que é a base para a formação dos indivíduos.
Observo que muitas pessoas ligadas a instituições comunitárias e sem fins lucrativos expressam críticas direcionadas ao ensino a distância, principalmente em relação aos preços cobrados. No entanto, percebo que muitas dessas instituições também têm mensalidades significativas, como 2, 3, 4 mil reais ou mais. Fico me questionando se o ambiente educacional oferecido por essas instituições reflete verdadeiramente um padrão acolhedor, respeitoso e inclusivo para todos os alunos.
Reforço a importância de investir na reforma e fortalecimento da educação básica para melhor preparar os estudantes, em vez de direcionar críticas exclusivamente ao ensino superior. Afinal, uma base sólida e inclusiva é fundamental para todos os alunos desde o início de sua jornada educativa, promovendo igualdade de oportunidades para todos.