Vencedor do Prêmio Nobel da Paz alerta: a desigualdade impede a paz
O aumento da desigualdade social, segundo Muhammad Yunus, leva a convulsões sociais, polarização política e tensões entre grupos
No momento em que o mundo assiste atônito à guerra entre Israel e o grupo terrorista Hamas, acompanhando a escalada da violência sem precedentes na região, o vencedor do Prêmio Nobel da Paz Muhammad Yunus alerta para a necessidade de refletirmos sobre uma nova civilização baseada em valores humanos. “Nos dias de hoje, deveríamos reconhecer coletivamente que a guerra e o derramamento de sangue são inconsistentes com os valores e o progresso da nossa civilização moderna”, afirma Yunus.

A atuação coletiva está na pauta do Nobel da Paz para enfrentar as deficiências da atual ordem econômica e social. Yunus passou uma semana no Brasil para lançar a edição em português do livro Um mundo de três zeros: a nova economia de zero pobreza, zero desemprego e zero emissões líquidas de carbono, publicado pela Editora Voo.
O atual sistema econômico, segundo o Nobel da Paz, gera desigualdade de forma ininterrupta. O Brasil, por exemplo, está no topo da lista dos países mais desiguais do mundo, à frente apenas de países da África. De acordo com o Unicef, as desigualdades sociais ainda afetam grande parte das crianças e adolescentes do país, violando seus direitos e fazendo com que muitos não cheguem à vida adulta. Entre 2016 e 2020, 35 mil crianças e adolescentes de até 19 anos foram mortos de forma violenta no Brasil, uma média de 7 mil por ano.
Yunus destaca que “a mão invisível” do sistema capitalista deve ter sido desajustada em favor dos mais ricos. Ou como continuariam os donos da riqueza? O desemprego aumenta. O meio ambiente é destruído. Essa estrutura é insustentável. “Ela é uma bomba-relógio social e política, pronta para destruir tudo o que criamos ao longo dos anos. A desigualdade é perigosa porque interfere no ambiente social e político, em nível nacional e global, no progresso econômico, na qualidade de vida de todos, inclusive dos mais ricos, que se fecham atrás dos vidros blindados dos carros e das grades de seus condomínios.”, afirma Yunus.
Nas últimas décadas, o mundo passou de uma crise a outra. Sofreu desastres financeiros, fome, catástrofes ambientais, conflitos militares e fluxos de refugiados. De acordo com a Agência da ONU para Refugiados (Acnur), foram registrados 35,3 milhões de pessoas refugiadas em 2022. Além disso, líderes populistas levantaram muros separando países que, por sua vez, estão cada vez mais conectados pela tecnologia.
O aumento da desigualdade social, segundo o bengalês, leva a convulsões sociais, polarização política e tensões entre grupos. Yunus explica que ela está na raiz de fenômenos diversos recentes como a aprovação do Brexit, no Reino Unido; a eleição de Donald Trump; e a ascensão da direita nacionalista, do racismo e de grupos de ódio, na Europa e nos Estados Unidos. “Nosso mundo foi abruptamente dividido entre os que têm e os que não têm – dois grupos com pouco em comum, exceto sentimentos mútuos de desconfiança, medo e hostilidade”.
Eventos no Brasil
Aos 83 anos e muita disposição para fazer várias palestras para diferentes públicos, Yunus desembarcou no Brasil depois de encarar um voo de 30 horas proveniente de Bangladesh. Ele participou do evento de 10 anos da Yunus Negócios Sociais no Brasil, em São Paulo, que capta e administra recursos para negócios com impacto nas áreas social e ambiental. No dia seguinte, viajou para Brasília, onde se encontrou com autoridades do governo brasileiro.
Depois seguiu para Fortaleza, onde foi a figura principal do Conexão ODS, um evento que discutiu os objetivos de desenvolvimento sustentável da Agenda de 2030 da ONU. A redução das desigualdades no interior dos países e entre os países é o objetivo número 10 da agenda. Ao discursar na abertura da Assembleia Geral da ONU em setembro, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva cobrou dos países a redução da desigualdade social. “Hoje, a crise climática bate às nossas portas, destrói nossas casas, nossas cidades, nossos países, mata e impõe perdas e sofrimentos aos nossos irmãos, sobretudo os mais pobres”, afirmou o presidente. E lembrou que a fome, tema central de sua fala na ONU há 20 anos, atinge hoje 735 milhões de pessoas. “O mundo está cada vez mais desigual”, disse Lula.
No Brasil, Yunus cumpriu toda a agenda. Com sua fala mansa, um sorriso no rosto, trouxe uma lufada de esperança para um público meio desesperançado. O criador do microcrédito e idealizador do negócio social recebeu o Prêmio Nobel da Paz em 2006 por seu trabalho tirando milhões de pessoas da pobreza. Para Yunus, nascido em um dos países mais pobres do mundo, a solução está no resgate dos valores humanos. País pequeno, entre a China e a Índia, com uma das maiores populações do mundo – cerca de 160 milhões de pessoas –, Bangladesh tem sérios problemas ambientais. A indústria cresce sem fiscalização, as inundações prejudicam agricultores, o uso disseminado de fogões a lenha ou carvão para cozinhar ou aquecer, em casas mal ventiladas, causa doenças pulmonares e outros males respiratórios.
Educação e microcrédito
O Nobel da Paz ressalta a importância de educar os jovens para empreender e capacitá-los para projetar um novo mundo, de forma criativa, poderosa e coletiva. Se as tecnologias trouxeram uma nova gama de possibilidades, devemos usá-las como ferramentas para os negócios sociais. A juventude é bem equipada, conectada, ao mesmo tempo em que não sabe como usar essa capacidade.
Portanto, os jovens precisam saber que podem criar o próprio mundo. A escolas precisam ensinar uma nova forma de pensar. Os jovens devem voltar às salas de aula para aprender, cada vez mais cedo, ferramentas sociais básicas, como empatia, altruísmo, atuação coletiva.
O que pode parecer utopia para muitos, Yunus prova ser possível implementar. E conta a história de como criou o Grameen Bank, desafiando o sistema financeiro global. Fazia tudo ao contrário. Se os bancos emprestavam para os ricos, Yunus emprestava para os pobres. “Se eles vão ao centro, vou à periferia. Se eles vão aos homens, vou às mulheres”, revela.
O banco de Yunus empresta sem garantias, porque crédito, segundo ele, significa confiança. Nos Estados Unidos, por exemplo, começou liberando empréstimos para imigrantes latino-americanos sem documentos que não tinham acesso aos grandes bancos. A sacada do bengalês foi emprestar dinheiro para muita gente a condições bem favoráveis, no lugar de apenas doar recursos e nunca mais ver o dinheiro de volta. Com isso, o dinheiro retorna, fazendo a roda girar e os recursos se multiplicam, chegando a mais e mais gente. Assim, ele já emprestou mais de 7 bilhões de dólares para mais de 10 milhões de pessoas, sendo 97% mulheres, com quase 100% de taxa de retorno.
E por que mulheres? Porque elas priorizam as crianças. Uma das prioridades das tomadoras de empréstimo era mandar os filhos para a escola. O banco de Yunus estimulou as mulheres e, em pouco tempo, todas as crianças estavam na escola. Começaram então a oferecer bolsas de estudo para estudantes com bom desempenho acadêmico e empréstimos educacionais para quem tinha concluído o ensino superior, avanços que só ocorreram porque os mutuários eram mulheres.
Segundo Yunus, a pobreza não é criada pelas pessoas pobres, mas pelo sistema, que tranca as portas para elas. “As pessoas pobres são como bonsai”. É como plantar uma semente boa em um vaso, não dar solo suficiente para elas se desenvolverem. A sociedade não deu espaço para as pessoas cresceram como podem. Yunus conta que não tinha nenhuma teoria quando iniciou seu negócio social. Queria entrar em ação. Começou ajudando uma pessoa. Depois ajudou uma segunda pessoa. E assim foi.
“A solução é simples. Os problemas não vêm num formato grande. Vêm num formato pequeno. Mas nosso ego, nossa educação, nosso sistema, fazem a gente pensar em uma perspectiva grande. Grandes instituições, grandes políticas… Aí ficamos perdidos. Vamos focar em um indivíduo. Então você repete isso. É o início do processo”, explica Yunus, que começou emprestando 500 dólares nos anos 1970 e hoje empresta um bilhão de dólares por ano. Portanto, o novo negócio deve ser sobre transformar vidas e não sobre ganhar dinheiro para si. “Se você tiver sucesso com uma pessoa, você conquista o mundo”.
Fernanda Paraguassu é jornalista, escritora, doutoranda de Comunicação e Cultura na UFRJ, fundadora e editora da plataforma MiRe Migração e Refúgio na infância e adolescência.