Destruir o mito da crise fiscal para defender o SUS
É inaceitável que se cogite reduzir recursos para a saúde para custear o pagamento do auxílio, especialmente enquanto ainda sequer foi superada a fase mais aguda da pandemia
O Brasil inicia o segundo ano da pandemia da Covid-19 debatendo a proposta de emenda constitucional de número 186. Nela constam medidas drásticas de arrocho fiscal sob a desculpa de que é preciso reverter o supostamente insustentável endividamento do governo brasileiro. A grande mentira contada à população é que o governo não tem mais dinheiro ou fontes de financiamento e que precisaria retirar recursos da educação e da saúde para “bancar” o auxílio emergencial de que tanto dependem milhões de brasileiros para sobreviverem.
Sim, é urgente restabelecer o auxílio emergencial para que os brasileiros mais vulneráveis sobrevivam enquanto durar a devastação econômica que resultou da pandemia. Graças ao auxílio (e aos demais gastos e “perdas” fiscais que elevaram o déficit primário do governo a quase R$ 800 bilhões), o encolhimento econômico não foi ainda pior do que a terrível contração de 4,5% do PIB verificada em 2020. Sem o auxílio, milhões de brasileiros teriam ficado sem qualquer renda para sobreviverem, reduzindo também as rendas dos que venderam bens e serviços aos recebedores do auxílio, como as rendas dos que venderam a esses vendedores, e assim sucessivamente. O próprio combate à pandemia depende da preservação do auxílio emergencial, uma vez que não é razoável esperar que protocolos de isolamento e distanciamento social sejam adequadamente seguidos por quem precisa sair de casa todos os dias em busca desesperada de algum sustento.
Porém, é inaceitável que se cogite reduzir recursos para a saúde (como para a educação, segurança, e assistência social) para custear o pagamento do auxílio, especialmente enquanto ainda sequer foi superada a fase mais aguda da pandemia. Brasileiros morreram asfixiados por falta de tanques de oxigênio em Manaus, os sistemas hospitalares de vários municípios brasileiros estão colapsados, o número de infectados voltou a subir, os óbitos idem etc. Estas são evidências dolorosas de que nosso sistema de saúde ainda está inaceitavelmente subfinanciado. De 2018 a 2020, os cortes orçamentários impostos à saúde pelo draconiano e injustificável “Teto de Gastos” foram de quase R$ 20 bilhões, a despeito da demanda crescente por serviços de saúde de uma população cada vez maior e mais velha – que exigiria uma elevação dos gastos em atenção à saúde da ordem de 38% nos próximos vinte anos apenas para que a qualidade dos serviços de saúde se mantivesse comparável aos padrões atuais.
Foi somente com a suspensão das regras fiscais que engessavam o gasto federal, pelo decreto de calamidade e pela emenda constitucional do “orçamento de Guerra”, que a Saúde pôde gastar cerca de R$ 49 bilhões a mais do que o previsto na lei orçamentária. Mesmo a manutenção dos valores anabolizados praticados em 2020 provavelmente seria insuficiente para combater a crise sanitária que ainda assola o país, especialmente se versões novas do coronavírus continuarem infectando e matando em 2021 num ritmo ainda mais agressivo que em 2020. Pois não somente as dotações orçamentárias à saúde não serão incrementadas em 2021, como serão rebaixadas a níveis inferiores aos de 2019, caso de fato volte a valer integralmente o mesmo regime fiscal restritivo que havia sido suspenso pelo “orçamento de guerra”.
Nossas prioridades máximas hoje deveriam ser evitar a propagação do vírus, tratar as pessoas doentes, e viabilizar um plano nacional de importações, produção doméstica e distribuição de vacinas. É revoltante, portanto, que o presidente e o Congresso tenham escolhido como suas prioridades combater uma crise fiscal que não existe. O aumento da dívida pública denominada em reais não é, em si, um problema. Quem diz o contrário normalmente se apoia, desonesta ou desinformadamente, na analogia falaciosa que equipara o orçamento público ao de uma família.
A verdade é que o orçamento de um governo federal é fundamentalmente diferente dos orçamentos de empresas, famílias e governos subnacionais. Estes últimos sempre podem “quebrar”. Salvo se estiver endividado em moeda estrangeira (como no Brasil dos anos 1980), ou quando autoridades econômicas são acometidas de um surto de insanidade econômica (como na Rússia de 1998), um governo central endividado na sua moeda nacional não tem como “quebrar”.
Essa não é a primeira vez que um governo inventa uma crise fiscal para pressionar legisladores a aprovarem reformas redutoras do Estado. Margareth Thatcher convenceu a sociedade inglesa de que o governo britânico estava “falido” para promover uma série de medidas desnecessárias de austeridade, imediatamente responsáveis pelo colapso da economia do país, que experimentou dois anos seguidos de retração econômica (1980-81) e a duplicação do número de desempregados no mesmo período. Nos Estados Unidos, legisladores republicanos alardeiam que o governo federal chegou ao seu limite financeiro sempre que precisam brecar alguma iniciativa de governos democratas que desagrade seus apoiadores (financiadores), como quando a resposta da maioria republicana na Câmara de Deputados à reforma do sistema de saúde por Barack Obama foi o “fechamento” do governo por falta de acordo sobre a lei orçamentária anual e sobre um novo limite para a dívida pública.
É preciso repetir quantas vezes for necessário: governos centrais não são como famílias ou empresas. Famílias e empresas podem falir porque são usuárias da moeda. Já o Tesouro Nacional brasileiro (TN) cria os reais com que faz seus pagamentos. Ademais, não existe risco de que o Estado brasileiro perca o controle dos juros incidentes sobre suas dívidas remuneradas enquanto o Banco Central (Bacen), emissor soberano do real, garantir que sempre haja demanda pelas dívidas de curto prazo do governo central. Estes são fatos inquestionáveis que precisam ser repetidos ad nauseum para que governantes e legisladores parem de cometer atrocidades econômicas em nome de um desnecessário e inatingível equilíbrio fiscal.
Dizer que o governo brasileiro sempre cria a moeda com que faz seus pagamentos pode causar estranheza a um leigo que tenha sido bombardeado (há pelo menos duas décadas) por uma visão equivocada das finanças públicas. Mas este é um fato semanticamente inquestionável. O que chamamos de “moeda” (ou M1 nos livros de economia) equivale à soma do papel-moeda em poder do público (notas e moedas de real) com os depósitos (à vista) bancários. Cada pagamento pelo TN aumenta as reservas bancárias – moeda estatal dos bancos – de pelo menos um banco comercial. Nos livros, chamamos isso de criação de base monetária. Em contrapartida, o recebedor desse pagamento terá um correspondente e idêntico acréscimo em seus depósitos, que chamamos de criação de moeda. Por simetria, o recebimento de impostos pelo TN é uma operação destruidora de moeda (e de base monetária).

Cada pagamento estatal adiciona nas carteiras dos bancos uma quantidade excedente de reservas que não rendem juros, e que eles gostariam de aplicar em alternativas rentáveis. É assim que a base monetária criada pelo gasto público se transforma em dívida do Tesouro. O pagamento estatal aumenta as reservas dos bancos que somente em seguida podem ser convertidas em títulos públicos rentáveis. A procura dos bancos por aplicações para suas reservas excedentes só não resulta na redução da taxa básica de juros (a Selic) porque o Bacen oferece títulos públicos em quantidade suficiente pare enxugar a liquidez adicionada pelos pagamentos estatais, em nome da manutenção do juro referencial na meta escolhida pelo Comitê de Política Monetária (Copom). Por simetria, a oferta de títulos públicos pelo TN no mercado primário pressiona para cima os juros básicos, obrigando o Bacen a comprar no mercado secundário quantos títulos forem necessários para que a Selic seja preservada na sua meta.
A diferença entre o valor dos títulos do TN que o Bacen vende para enxugar a liquidez criada pelos gastos públicos deficitários e que ele compra para evitar que os leilões de títulos pelo TN pressionem a Selic é justamente o financiamento indireto que o Bacen dá ao TN, igual à variação da base monetária da economia (emissão monetária). Assim, a emissão monetária não é uma das maneiras através das quais o TN pode financiar seus gastos deficitários. A variação da base monetária é simplesmente a porção da riqueza financeira criada pelo gasto público deficitário que os agentes privados escolhem não aplicar em títulos públicos rentáveis. Todo gasto feito pelo TN representa, na sua origem, um aumento da base monetária (e do estoque de moeda) que apenas subsequentemente é convertida em dívidas do Tesouro ou destruída pela cobrança de impostos. É isso mesmo: o gasto público criador de moeda é que “financia” o pagamento de impostos e a compra de títulos do Tesouro!
Não existe, portanto, risco verdadeiro de esgotamento de fontes de financiamento para o Estado brasileiro, independentemente do tamanho do seu resultado fiscal deficitário, uma vez que o TN já conta com a ajuda do Bacen para vender títulos de sua dívida sem que a taxa básica de juros se eleve (e sem que os juros incidentes sobre as dívidas públicas de mais longo prazo aumentem descontroladamente, já que a Selic eventualmente “puxa” todas as demais taxas). É apenas o emaranhado de normas fiscais desnecessariamente impostas ao governo brasileiro que impede que o TN ajuste funcionalmente o tamanho dos seus gastos e impostos às necessidades e potencialidades da economia brasileira. Esse fato tornou-se cristalinamente óbvio quando bastou ao governo brasileiro que suspendesse as restrições legais sobre o seu gasto deficitário para que as suas fontes de financiamento – que o governo “jurava” que estavam esgotadas – fossem revitalizadas e permitissem que fosse praticado o maior déficit público primário da nossa história, de quase R$ 800 bilhões, em 2020.
Certamente não é mais possível alegar que este gigantesco resultado deficitário foi viabilizado pelos empréstimos dados por instituições financeiras brasileiras e/ou seus clientes, tão devastados no início da pandemia que precisaram de um pacote multibilionário de ajuda oferecido pelo Banco Central. A verdade é que o gasto público deficitário quase trilionário de 2020 foi feito sem qualquer dificuldade, através do mesmíssimo mecanismo descrito acima. O governo gastou criando mais moeda estatal (base monetária), parte da moeda criada pelo gasto deficitário e adicionada a carteiras privadas criou demanda por títulos do TN, e o restante do saldo da conta única do TN foi resposto com ajuda do próprio Banco Central, em nome da manutenção da Selic na sua meta.
Um erro muito comum cometido pelos defensores da austeridade fiscal é imaginar que proponentes do ativismo fiscal defendam gastos ilimitados pelo governo. A verdade é o exato oposto. Defensores das finanças funcionais, como os autores deste ensaio, afirmam que não é necessário buscar o equilíbrio orçamentário ou a redução da dívida pública porque não há risco de esgotamento de fontes de financiamento ao emissor da moeda. Principalmente, é bobagem combater o endividamento público com austeridade fiscal porque além de desnecessária, a busca por um orçamento equilibrado acaba concorrendo com o enfrentamento competente das verdadeiras restrições ao desenvolvimento em uma economia monetária.
O primeiro limite funcional à expansão econômica se impõe no ponto em que ocorre o esgotamento das possibilidades produtivas de uma economia, a partir do qual incrementos na demanda agregada não têm como ser acompanhados por aumentos no emprego e no produto real, e passam a ocasionar apenas o aumento do nível de preços. Porém, é completamente falacioso sugerir que déficits fiscais e o endividamento público crescente sejam necessariamente inflacionários. O que pode ser inflacionário ou não é a variação da demanda agregada decorrente de um dado resultado fiscal. O mesmo vale para o impacto dos gastos privados. Qualquer gasto pode ser inflacionário se o seu impacto sobre a demanda for maior do que a expansão da oferta que o acompanha. De qualquer forma, não é momento de nos preocuparmos com o limite inflacionário da economia brasileira. Nossas pressões inflacionárias mais preocupantes não vêm da demanda em excesso, mas de problemas estruturais em setores específicos da nossa economia (como a cadeia alimentícia), do desarranjo de nossas cadeias produtivas pela pandemia, e da desvalorização cambial ocorrida desde o início da pandemia.
Não existe, portanto, qualquer motivo inteligente para que tentemos diminuir os gastos do governo brasileiro ou que busquemos soluções para a crise fiscal inventada pelo governo e seus aliados estratégicos formadores de opinião. Vimos que não é verdade que o governo brasileiro esteja ameaçado de esgotar suas fontes de financiamento em reais. Também não faz sentido afirmar que o endividamento público que ocorre hoje represente um fardo econômico para gerações futuras. O gasto público deficitário deixa a população, como um todo, mais rica e incrementa as heranças das gerações futuras, pois aumenta os saldos bancários de pessoas e de empresas. E como um governo que gasta criando moeda não precisa cobrar impostos para financiar seus gastos hoje, amanhã, ou daqui a cem anos, o aumento da dívida pública que ocorre hoje não precisa representar sequer um centavo de impostos adicionais no futuro – embora impostos continuem sendo úteis para combater desigualdades de renda e riqueza.
Em suma, não há justificativa de natureza genuinamente econômica para se defender a redução dos valores destinados pelo Estado ao SUS. Condicionar a volta do auxílio emergencial a cortes em políticas sociais é um “jogo” em que as classes mais vulneráveis só têm a perder. De um lado, o auxílio é necessário para que consigam sobreviver enquanto não houver oportunidades de emprego e renda. De outro, são os brasileiros mais vulneráveis, financeiramente incapazes de contratar serviços de saúde privados, que mais sofrerão com o sucateamento da saúde pública. Além disso, é justamente o efeito contracionista da austeridade fiscal pretendida pelo governo que ameaça manter a economia brasileira presa à espiral depressiva que deixa desempregados os milhões de brasileiros que hoje dependem do auxílio emergencial.
Então a quem serve o mito da crise fiscal e a agenda de cortes de gastos públicos em saúde? Se o SUS fosse financiado adequadamente, para que serviria o sistema de saúde privado e os planos de saúde? Certamente o empresário que investe na saúde privada e, notadamente, as seguradoras de saúde (muitas controladas por grandes bancos) detestariam ver seus espaços de acumulação reduzidos pela concorrência de um SUS cada vez mais forte graças ao financiamento estatal generoso. Defensores do Estado mínimo normalmente defendem a livre concorrência como uma força geradora de bem-estar social. No entanto, o que empresários e seguradoras de saúde verdadeiramente querem é fragilizar ou mesmo extinguir o SUS como concorrente. Para tanto, apelam para o mito da crise fiscal e dizem que a redução de recursos ao SUS é lamentavelmente necessária para que a falência do Estado brasileiro seja evitada. Não é verdade!
Daniel Negreiros Conceição é professor do IPPUR na UFRJ; Andre de Melo Modenesi é professor associado ao Instituto de Economia da UFRJ e pesquisador do CNPq; Gustavo Souto de Noronha é economista do Incra e professor da Unesa; e José Carvalho de Noronha é pesquisador do ICICT/Fiocruz.