Dez razões para que o apoio aos reguladores do saneamento básico seja atribuído ao Ministério das Cidades
A boa prática participativa e de busca de entendimento entre perspectivas diferentes recomenda dar luz e voz para a argumentação contrária a essa visão do setor privado no saneamento básico
Nos primeiros dias do novo governo Lula surgiu um incessante ataque à proposta estudada pelo governo de transição, de que as funções de apoio à regulação do saneamento básico sejam devolvidas para a Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental (SNSA) do Ministério das Cidades e, portanto, saiam da Agência Nacional de Águas (ANA).
Entidades e pessoas representativas dos interesses de empresas e investidores privados alegam que essa medida promoveria retrocesso ao ambiente de negócios promovido pela lei sancionada no governo Bolsonaro. Afirmam que a indução à privatização do saneamento básico é o único caminho para a universalização dos serviços e que uma “regulação independente” por meio da ANA é a melhor maneira para operacionalizar esse processo.
Entretanto, a boa prática participativa e de busca de entendimento entre perspectivas diferentes recomenda dar luz e voz para a argumentação contrária a essa visão do setor privado no saneamento básico.
A proposta de alteração nas atribuições da ANA e da SNSA não surgiu de um impensado ato de ofício ou da vontade individual de um burocrata. É fruto de uma reflexão racional e absolutamente dirigida para o interesse maior da população brasileira quanto ao saneamento básico: o direito de acesso à água boa e aos outros componentes do saneamento básico de qualidade para todos, independentemente de suas condições sociais, financeiras e do local de sua moradia. Essa condição, defendida pelo presidente Lula, foi a diretriz central para a atuação do governo de transição.
A título de contribuição para esse debate, elaboramos uma singela lista das dez principais razões para que a função de apoio aos reguladores da prestação de serviços públicos de saneamento básico seja retirada da legislação que define as atribuições da ANA e, portanto, devolvida à SNSA.
1 – A ANA está em conflito de interesses. A ANA tem por função gerir os recursos hídricos, que é um bem público que possui diversos usuários. Um desses usuários é o saneamento básico. Logo colocar na mesma agência a regulação dos recursos hídricos e do saneamento básico é tecnicamente errado porque é “colocar o cachorro para cuidar da linguiça”.
2 – A ANA não é responsável pela regulação, ao contrário do que tem afirmado a mídia de forma distorcida, após a Lei n. 14.026/2020, a regulação do saneamento pertence ao regulador local, até porque a titularidade dos serviços públicos de saneamento básico é municipal. Não pode o governo federal regular o que não é de sua competência. O que a ANA faz é o que o Ministério das Cidades fazia antes: apoiar estados e municípios para que tenham bons reguladores. Só que a ANA faz isso de forma distorcida, sem apoio financeiro ou técnico, apenas editando normas que praticamente conduzem à privatização.
3 – A ANA é discriminatória, e tem agido assim com os prestadores públicos. Quando edita suas normas, prevê regras mais benéficas para os concessionários privados e não reconhece direitos aos prestadores públicos. Sirva de exemplo a proposta de norma de indenizações no término dos contratos, que a ANA colocou em consulta pública: se o prestador é privado ele terá direito à indenização maior e mais abrangente do que a prevista para o prestador público. Essa discriminação tem que acabar.
4 – A ANA é bolsonarista. As agências reguladoras deviam ter a sua diretoria formada por técnicos, com mandatos fixos e não coincidentes. Com isso, a cada ano deveria ingressar um novo diretor, que se relacionaria com os demais, evitando mudanças bruscas de orientação regulatória e, ainda, para impedir que a agência seja instrumentalizada politicamente. Só que essa regra não foi respeitada na ANA, porque em janeiro de 2022 o então presidente Bolsonaro nomeou quatro diretores de uma vez só, com mandatos até 2026. Ou seja, manter a ANA do jeito que está é defender que bolsonaristas cuidem do saneamento básico até praticamente o fim do governo Lula – dito de outra forma: para o saneamento básico, é como se Bolsonaro continuasse a ser presidente.
5 – A ANA não é técnica. Os diretores nomeados pelo Bolsonaro não eram da área de saneamento nem de recursos hídricos – o que gerou várias críticas das entidades da área. Uma das indicadas, por exemplo, é esposa do ex-Secretário Executivo da Casa Civil de Bolsonaro. Divulgar que manter o apoio à regulação na ANA porque é uma “agência técnica” é uma falácia. Na realidade, o que eles querem é que esse tema esteja sob o controle de bolsonaristas e atenda aos interesses do setor privado.
6 – A ANA é ineficiente. Desde julho de 2020, quando essa competência lhe foi confiada, a ANA editou apenas duas normas de referência para o saneamento básico – e estão previstas 72. Importante ressaltar que a instituição das duas normas ocorreu em junho e em novembro de 2021 – em suma: durante todo o ano de 2022 nenhuma norma foi editada. Conclusão: a diretoria bolsonarista da ANA, nomeada em janeiro de 2022, não produziu qualquer norma no ano – isso se explica porque estavam reservando a “maldade privatista” contra os prestadores públicos para após a reeleição de Bolsonaro, que não se confirmou.
7 – A ANA não é neutra. Os seus dirigentes, inclusive superintendentes, foram capturados e agem com dois pesos e duas medidas. Circulou nas redes sociais inclusive fotos de dirigentes da ANA comemorando a privatização da Corsan na Bolsa de Valores, em pregão que teve apenas um lance. Isso não é papel da Agência, porque compromete a sua neutralidade. Tais fatos levaram José Machado (ex-presidente da ANA) a questionar esse comportamento em artigo que publicou na revista Carta Capital, inclusive requerendo que a Comissão de Ética Pública adote providências.
8 – A ANA é intolerante. Recentemente diversos técnicos de carreira foram afastados de suas funções, para serem substituídos por bolsonaristas ideológicos. Os técnicos afastados não possuem nenhuma atividade política. Isso ocorreu justamente para poder instrumentalizar a ANA para o projeto bolsonarista de privatizar os serviços públicos de saneamento básico e de negar o acesso a esse direito às periferias urbanas e áreas pobres e, ainda, para “aliviar” a fiscalização do cumprimento de metas das concessões privadas.
9 – A ANA exorbita de seu papel. Como o saneamento é de titularidade municipal, as agências reguladoras que cuidam do tema são municipais, estaduais ou consórcio de municípios – muitas delas de excelente qualidade. Ao contrário de apoiar as agências locais, a ANA tem tentado de todas as formas controlar essas agências, inclusive tentando cooptar seus dirigentes e técnicos, aproveitando-se da capilaridade do bolsonarismo. Inclusive chegou ao ponto de, em junho de 2022, representar à Procuradoria Geral da República contra os governadores da Bahia, Paraíba, Maranhão, Pernambuco, Sergipe, Amazonas, Espírito Santo e Paraná porque eles estariam defendendo suas companhias estaduais de água e esgoto e, por isso, no entendimento da ANA, fraudando a diretriz de privatização do saneamento básico prevista na Lei n. 14.026/2020. Óbvio que essa representação nada tem a ver com as competências da ANA, que são limitadas a editar normas de referência sobre determinadas matérias, listadas em lei.
10 – Manter a ANA com saneamento básico é irracional. A política pública de saneamento básico se utiliza de diversos instrumentos (planos de saneamento básico, financiamentos com base em recursos do FGTS e FAT, incentivos aos consórcios públicos e a outros arranjos interfederativos, integração com processos de urbanização e regularização fundiária e a regulação) que precisam estar integrados. Ter retirado a competência de apoiar os reguladores da Secretaria Nacional de Saneamento foi um dos principais equívocos da Lei n. 14.026/2020, porque tornou irracional e esvaziou a política pública de saneamento básico e gerou incertezas que prejudicaram os investimentos, especialmente os públicos. Sempre bom lembrar que, apesar do percentual de investimentos privados em abastecimento de água e esgotamento sanitário ter subido, no global os investimentos caíram – e essa queda afetou em especial as periferias urbanas, as áreas rurais, indígenas, ribeirinhas e quilombolas. É necessário combater o discurso bolsonarista que defende manter parte da política pública de saneamento básico fora da Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental – até porque, se ficar assim, evidente que haverá contínuos conflitos entre a secretaria e a ANA, o que deve paralisar e dificultar que programas, projetos e ações de saneamento básico avancem.
Abelardo de Oliveira Filho é engenheiro e professor; ex-secretário Nacional de Saneamento Ambiental do Ministério das Cidades e ex-presidente da Embasa.
Amauri Pollachi é mestre em Planejamento e Gestão do Território, presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do Alto Tietê e conselheiro do Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento (Ondas).
Luiz Roberto Santos Moraes é PhD em Saúde Ambiental, professor titular em Saneamento aposentado e professor emérito da Universidade Federal da Bahia.
Marcos Helano Fernandes Montenegro é mestre em Engenharia Urbana e de Construções Civis, diretor nacional da Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental, coordenador de Comunicação do Ondas, ex-diretor da Secretaria Nacional de Saneamento e regulador aposentado de serviços públicos de saneamento.
Renata de Faria Rocha Furigo é doutora em Urbanismo e coordenadora-geral do Ondas.