Direitos individuais no século da geolocalização
A globalização se retroalimenta do Big Data e das ferramentas geoespaciais. Pessoas se georreferenciam voluntariamente em redes sociais; o Estado georreferencia os cidadãos para efeitos tributários, criminais e até de espionagem; há políticas públicas que envolvem a prevenção de catástrofes naturais, a urbanização de favelas, o planejamento ambiental, a viabilização de infraestruturas e a gestão de detentos por tornozeleiras eletrônicas; empresas se utilizam do geomarketing para diversas finalidades econômicas; chega-se ao ponto de se criar a expressão geoslavery (geoescravo, em tradução livre) para alertar sobre invasões de privacidade devido à expansão desenfreada de serviços baseados em geolocalização.
Vivemos em uma era em que latitude e longitude têm importância econômica, cuja consequência imediata é a corrida internacional pelo domínio da infraestrutura geográfica global. A Agenda 21, fruto da Rio 92, foi pródiga ao realizar essa análise, ao afirmar que a infraestrutura geográfica terá no século 21 a mesma importância que a energia elétrica teve no século 20, uma vez que se constitui como infraestrutura tão essencial e invisível quanto o elétron. Se o sistema de posicionamento global norte-americano, mais conhecido pela sigla GPS (em inglês global positioning system), foi pioneiro nesse sentido, é preciso destacar que a União Europeia tem desenvolvido seu sistema próprio, o Galileo; a Rússia, o Glonass; e a China, o Compass (Beidou). Quem domina o “onde” tem a capacidade de antever os movimentos das diversas sociedades.
A globalização se retroalimenta do Big Data e das ferramentas geoespaciais. Pessoas se georreferenciam voluntariamente em redes sociais; o Estado georreferencia os cidadãos para efeitos tributários, criminais e até de espionagem; há políticas públicas que envolvem a prevenção de catástrofes naturais, a urbanização de favelas, o planejamento ambiental, a viabilização de infraestruturas e a gestão de detentos por tornozeleiras eletrônicas; empresas se utilizam do geomarketing para diversas finalidades econômicas; chega-se ao ponto de se criar a expressão geoslavery (geoescravo, em tradução livre) para alertar sobre invasões de privacidade devido à expansão desenfreada de serviços baseados em geolocalização. A massificação do acesso à tecnologia geográfica, impulsionada pela proliferação de smartphones, nos dá rápido acesso a diversas formas de mapas, e todos estes elementos em conjunto moldam o estilo de vida deste início de século.
É comum realizar download gratuitamente de softwares de informação geográfica que fariam inveja à espionagem de qualquer país há 15 anos. Se antes do advento da internet, o Estado já se encontrava em situação de hipossuficiência diante das forças globalizantes, quem dirá atualmente com o salto qualitativo da bilionária indústria de informações geográficas?
Em que pesem os riscos, existem também as oportunidades. As informações pessoais se encontram disponíveis na rede para serem rastreadas por estados que pretendem defender seus interesses e segurança. No entanto, há de se compatibilizar isso com o respeito aos direitos fundamentais, ao exercício das liberdades de expressão e de informação, sobretudo em relação à intimidade pessoal, familiar, à honra, à própria imagem e à proteção aos dados pessoais.
Estamos em um mundo de vigilância líquida, segundo Bauman. Cada um de nossos comentários, ações e interesses consta dos bancos de dados pessoais que estados e entidades privadas possuem e que constituem, na maioria dos casos, em seus grandes ativos. Essa “civilização cibernética” baseia-se em um paradigma informacional, no qual a geração, o processamento e a transformação da informação de uma determinada sociedade se convertem em fontes fundamentais de produtividade. Nesse cenário, a informação é matéria-prima do poder, e as geotecnologias o meio para se atuar sobre ela.
Essas premissas podem afetar os direitos fundamentais, uma vez que a vida que desenvolvemos online pode ter impacto direto em nossa liberdade e direitos. A quantidade de dados pessoais que circula pelo mundo começa a dificultar quanto esses direitos são afetados, dada a grande estrutura existente para coleta de metadados. Como exemplo, a Google processa mais de 24 petadados por dia e o Facebook sobe mais de 10 milhões de fotos por hora, impondo novos desafios no âmbito dos direitos fundamentais. São cada vez mais numerosas novas formas de mensuração de dados, como relógios, pulseiras ou óculos inteligentes, que mapeiam hábitos do cotidiano como a localização, o número de passos, as calorias queimadas, a temperatura do corpo, os batimentos cardíacos, dentre outros.
A geolocalização se comporta como se fosse uma “espacialização da Internet das Coisas”. Com base nos três principais tipos de infraestrutura de geolocalização – o Global System for Mobile communications (GSM), o GPS e o WiFi –, todo o modelo converge para os smartphones, que nos conecta a mapas de navegação, serviços geográficos personalizados (como pontos de interesse próximos), realidade aumentada, controle dos filhos por aplicativos de celular, geomarketing, entre outros. Empresas como Google, Apple e Microsoft têm se utilizado desses recursos sem que os usuários – que são também os fornecedores dos dados – estejam conscientes deles. Com isso, o Google, por exemplo, tem sido penalizado em países como Espanha, Itália, Alemanha, Coreia do Sul e Estados Unidos por interceptar informações e extrai-las sem consentimento.
A vida está – e estará cada vez mais – sob vigilância constante. Por isso é necessário fortalecer o direito à proteção dos dados pessoais e os demais direitos fundamentais relacionados à vida privada, tanto no direito nacional quanto internacional. Esta é uma resposta válida aos novos desafios que o desenvolvimento das tecnologias digitais traz à dignidade e à liberdade pessoal.
Em um clássico exemplo do elixir que se transforma em veneno, os dados massivos contribuem para a tomada de decisões racionais, mas, por outro lado, também podem se converter em um instrumento de poder e, inclusive, de repressão, prejudicando os cidadãos. O desenvolvimento tecnológico potencializa ofensas, pois aceleram, por meio de blogs, foros, webs ou redes sociais, a disseminação de injúrias e violações à intimidade ou à imagem. Afinal, nas palavras da jurista espanhola Ana Garriga Domínguez, a informática pode fazer nossas vidas tão visíveis para quem controla os grandes bancos de dados pessoais quanto peixes coloridos em um aquário.
Caberá aos estados, no século 21, buscar mecanismos de proteção de seus cidadãos em um meio no qual os dados pessoais passam a ser globais e dispostos como commodities em um mercado privado. Movimentos de proteção a dados pessoais se proliferam mundo afora na esteira do “my data, my rules”, ou mesmo do “direito a ser esquecido”. A ONU tem se esforçado para demonstrar aos governos a importância da geolocalização. Na Europa, a Carta de Direitos Fundamentais e o Convênio Europeu de Direitos Humanos têm apresentado algumas respostas, no sentido de exigir uma regulamentação sobre o tema que garanta a neutralidade da tecnologia e imponha às empresas que a programem em seus algoritmos, possibilitando que a sociedade se beneficie de forma plena de todas as possibilidades econômicas e benefícios sociais dessas tecnologias. No entanto, a frase de Castells, “não à globalização sem representação”, ainda ecoa. Os governos locais estão hipossuficientes sob a força dessa inovação tecnológica.
Luiz Ugeda é Advogado e geógrafo, Presidente do Instituto Geodireito e autor do livro Direito Administrativo Geográfico – Fundamentos na Geografia e na Cartografia oficial do Brasil, lançado em 2017.