Do trabalho precário ao desemprego
Uma cadeia internacional de relações comerciais com Hong Kong, Taiwan e Coréia do Sul, num primeiro momento levou Dongguan a multiplicar suas fábricas e empregos, na fase atual a queda nas compras provoca demissões em massa e rupturas de contratos de locação de fabricas locais pelos estrangeirosTristan de Bourbon
Os mais diversos zumbidos tomam conta das ruas de Chenghai desde a primeira hora do dia. Nesse distrito administrativo da cidade de Shantou, situada no extremo leste da província do Guangdong, na China, a vida fervilha.
Os riquixás avançam na contramão, ziguezagueando entre as fileiras de carros. As motos desafiam a gravidade transportando dezenas de pacotes ao mesmo tempo. Caminhões cruzam as avenidas lotados de caixas de papelão destinadas ao porto mais próximo ou repletos de cargas pesadas que devem viajar pelas estradas do país.
Salvo durante a pausa para o almoço, com frequência seguida por um cochilo, a intensidade da atividade local nunca arrefece, seguindo até o pôr do sol.
Nos intervalos entre os turnos das fábricas, milhares de operários aparecem na cidade. Formam grupos de dois ou três, circulam pelas lojas de departamentos nos centros comerciais, almoçam sentados sobre papelões ou em banquinhos e descansam à sombra das árvores, onde também costumam jogar cartas ou dados.
Chenghai é especializada na fabricação e na comercialização de brinquedos.
Oficialmente, 3 mil fábricas produzem brinquedos na cidade. Na verdade, elas são de três a quatro vezes mais numerosas. Conforme divulgado pelo governo chinês, essa indústria foi prejudicada com a crise econômica internacional.
Encontro uma jovem mulher dobrando a esquina de uma rua. Ela segura uma criança recém-nascida no colo. Sua roupa – uma calça jeans desbotada, um blusão de má qualidade, uma camiseta de algodão e calçados esportivos – não deixa dúvida em relação a sua profissão: operária.
“Não estou trabalhando no momento para cuidar da minha filha de 6 meses”, explica Mei Lan, migrante originária de uma aldeia da província do Guangxi. “O meu marido está na fábrica, é óbvio. Acredito que não terei problema algum para conseguir um novo emprego. As empresas da região precisam tanto de operários que passaram a aceitar que as jovens mães compareçam ao trabalho com seu filho. Por enquanto, eu prefiro criá-la sozinha. Decidirei o que fazer quando ela tiver idade suficiente para ser inscrita na creche”, diz.
De fato, cartazes de papelão e grandes faixas vermelhas estão dependurados nas fachadas da maior parte das fábricas de Chenghai. “Admitimos operários, homens ou mulheres, qualquer que seja sua profissão”, anuncia um letreiro no muro de uma fábrica recém-implantada.
“Procuramos homens e mulheres para começar a partir de hoje”, especifica outro estabelecimento de dimensão mais modesta.
Na sede do governo municipal de Chenghai, um prédio de aspecto tão gigantesco quanto deprimente, os funcionários não se mostram surpresos: “Esses anúncios não são nenhuma novidade, alguns deles estão colocados ali há vários anos”, garante um dos oficiais, que pede para não ter seu nome citado.
“De fato, com exceção de Dongguan [ver box], as fábricas de brinquedos da província do Guangdong não chegaram a ser gravemente prejudicadas pela crise, ao contrário do que foi alardeado pela imprensa oficial e estrangeira. Algumas delas vêm funcionando com sua capacidade máxima há vários meses, a tal ponto que seus operários não puderam retornar para casa durante as festas do Ano Novo. Os serviços da alfândega da cidade informam que as exportações no decorrer dos meses de janeiro e fevereiro aumentaram 18% em 2009, em comparação com o mesmo período em 2008.
Os proprietários das fábricas preferem ser mais ponderados. “Chenghai foi severamente atingida pela crise internacional. Quem disser o contrário estará mentindo”, garante o sr. Wang, dono de uma pequena fábrica.
“Até este ano, 80% dos brinquedos fabricados nesta cidade estavam destinados à exportação. A grande maioria das fábricas perdeu boa parte das suas encomendas no plano internacional e, com isso, sofreu um desaquecimento da sua atividade.
Reduz-se um ritmo frenético de produção
Já o fundador da fábrica e companhia de importação-exportação You Yi Toys conta que “em 2008, nós registramos vendas de 20 milhões de exemplares de alguns dos meus brinquedos. Para poder atender essa enorme quantidade de encomendas, tive que contratar um número considerável de operários. Desde o final do ano passado, a situação está muito difícil. Atualmente, eu não emprego mais do que 300 deles”.
Apesar desse retrocesso, o salário dos operários das fábricas de brinquedos não diminuiu. “Ele varia entre 14 iuans e 15 iuans (R$ 4,31 e R$ 4,61) para um turno de quatro horas de trabalho.
Em muitos casos, os patrões das fábricas fornecem moradia gratuita. Oferecem também uma cantina, que pode ser utilizada pelos operários mediante o pagamento de 100 iuans a 120 iuans (R$ 30,75 a R$ 36,91) por mês. Esses valores praticamente não sofreram nenhuma alteração no último ano.
Contudo, isso não quer dizer que a crise não tem nenhum impacto na renda dos operários. As fábricas cujas encomendas diminuíram optaram por reduzir a atividade para dois turnos de trabalho por dia em vez de três. “Portanto, os salários diminuíram na mesma proporção”, declara.
Todas as fábricas funcionam sete dias por semana. Com isso, o soldo fixo dos operários alcança em média 900 iuans (R$ 276,79) por mês, contra os 1.350 iuans (R$ 415,19) de poucos meses atrás. Os prêmios concedidos aos mais produtivos permanecem limitados.
Xu Hong é um dos trabalhadores afetados pela situação. Vindo de uma aldeia da província do Henan, ele chegou a Chenghai há cinco meses. Até então, ganhava entre 1.300 iuans e 1.400 iuans por mês. “O meu patrão acaba de nos avisar que em razão das fortes reduções de encomendas, devemos tirar quatro ou cinco dias de folga, evidentemente não pagos. Portanto, vou descansar e passear um pouco pela cidade na próxima semana. Eu não pretendo procurar emprego em outro lugar porque estou certo de voltar ao batente muito em breve. Além disso, as condições de trabalho são bastante aceitáveis: elas me permitem enviar mensalmente entre 700 iuans e 800 iuans para a minha família, que permaneceu na aldeia”. O empregador lhe fornece a alimentação e um alojamento. São oito trabalhadores vivendo num quarto de 9 m². Mas a dimensão das moradias oferecidas nem sempre é tão reduzida. “Para atrair e manter os operários, nós temos de oferecer-lhes condições de vida melhores do que as de outros lugares”, assegura, falando um bom inglês, John X, um dos executivos da Haipengda Plastic Toys.
Assim como os outros, ele só aceitou falar com a condição de não ter seu nome revelado. “Para tanto, nós construímos um novo dormitório onde os operários são hospedados gratuitamente. Cada quarto é compartilhado por dois ou três funcionários”, diz.
Atrás dele, cerca de 50 trabalhadores estão distribuídos por 15 fileiras de máquinas. Os primeiros derramam os componentes de plástico dentro de gordos sacos de estopa, no interior de um funil localizado acima da máquina. O conteúdo é então derretido e, alguns segundos mais tarde, após um processo que emitiu múltiplos ruídos mecânicos, uma pistola de plástico amarela ou verde aparece na ponta de um tubo.
Uma atividade penosa demais
Esses operários não trajam nenhum capacete e nem mesmo uma roupa de proteção contra os produtos químicos. O mesmo ocorre com seus colegas que, sentados num minúsculo banquinho, são encarregados de controlar a qualidade da produção.
“Para encontrar novos operários”, prossegue John, “nós pedimos àqueles que trabalham aqui para se informarem junto a seus amigos migrantes ou colocamos um anúncio na entrada. Se isso não der certo, vamos até o centro de empregos na cidade”.
John refere-se ao escritório montado pelas autoridades municipais há alguns anos. Conforme explica um de seus sete funcionários, os desempregados preenchem fichas que são destinadas às empresas. Nelas, devem colocar seu nome, número de telefone, apontar sua experiência profissional, o tipo de emprego que procuram e o salário que desejam. “O número de demissões tem sido muito limitado: as fábricas preferem manter seus operários por perto, em caso de encomenda repentina.
Enquanto, de maneira geral, os salários não aumentaram e até mesmo diminuíram nos últimos meses para os empregos de escritórios, as remunerações oferecidas pelas fábricas de brinquedos se mantêm. Contudo, elas não são um nicho de interesse: trata-se de uma atividade penosa demais e com salários que não compensam, além de ser uma função que não requer nenhuma competência técnica ou capacidade física em particular.
No decorrer dos três primeiros meses do ano, 253 vagas de emprego foram oferecidas e nenhum interessado se apresentou!”, relata o trabalhador. As visitas às fábricas confirmam o que ele diz: as mesas de montagem ou de verificação da qualidade das peças são ocupadas por homens e mulheres jovens, e também por mulheres na faixa dos 40 anos. Os homens da mesma idade optam pelas profissões da construção civil ou por determinados empregos no setor têxtil, onde podem conseguir um salário próximo de 3 mil iuans (R$ 922,64). Ou seja, duas a três vezes superior àquele oferecido pelas fábricas de brinquedos.
Procuramos operários em grande número
Aos sábados, o centro se transforma numa feira de ofertas. As empresas pagam 100 iuans para manter um dos 22 estandes onde recebem os desempregados. Para estes últimos, os trâmites são gratuitos. Todas as empresas que estavam presentes naquele sábado, dia 4 de abril, trabalhavam na indústria de brinquedos.
O décimo segundo estande era ocupado pela companhia Yuike Electronics Limited, que havia destacado o seguinte anúncio: “Procuramos operários em grande número, sem distinção de sexo, com boa saúde, responsáveis, com idade de 18 a 40 anos, por um salário que vai de 700 iuans a 2.500 iuans (R$ 215,68 a R$ 768,87). A comida e a moradia são oferecidas pela empresa. Um quarto para um casal está disponível. A nossa fábrica possui um café com internet, uma livraria e uma sala de esporte – nós queremos que os operários que trabalham conosco tenham tempo para o seu lazer”.
“Nós vemos por aqui, sobretudo, habitantes de Chenghai ou dos outros bairros de Shantou, diz um dos organizadores da feira. Os migrantes costumam ir diretamente às fábricas onde consultam diretamente as ofertas de emprego. Ou, ainda, preferem se informar por intermédio das suas redes de amigos”.
Feng Xu chegou a Chenghai dessa maneira. “Eu cheguei ontem a Chenghai. Eu era camponês até então, mas a minha família precisa de dinheiro. Pretendo ganhar 1.300 iuans (cerca de R$ 400) por mês. Tenho reservas suficientes para me manter entre três e cinco dias aqui sem trabalhar e, por isso, quero aproveitar para descansar e visitar a cidade”. Enquanto isso, ele está hospedado junto com seus amigos num pequeno cômodo.
Quando fala de sua aldeia, esse migrante de 22 anos ressalta que a maior parte dos homens e das jovens mulheres deixou a terra e sua família para trabalhar em fábricas ou na construção civil. Nenhum deles teria retornado à aldeia.
“Alguns migrantes retornaram mais cedo para o seu lar porque estavam afastados de sua família havia dois ou três anos”, conta Cui Jian, um operário de 24 anos oriundo do Henan. “Quando foram informados de que o volume das encomendas havia diminuído este ano, outros optaram por esticar sua folga, retornando alguns dias após o final oficial das férias do Ano Novo. O fenômeno limitou-se a isso.
Ninguém permaneceria em casa, onde não há absolutamente nada a fazer, enquanto pode encontrar trabalho em qualquer outro lugar do país”, conta.
Cui Jian tem certeza de suas afirmações: “Estou me referindo tanto à região de Chenghai quanto ao restante da província do Guangdong e ao leste ou norte da China. Tenho amigos migrantes em todo lugar do país. Trocamos regularmente informações entre nós para conhecer a situação de cada um e sentir um pouco o ambiente geral”.
Além dos comentários sobre a redução substancial de sua renda mensal, a maioria dos operários das fábricas de brinquedos também se dedica a discutir, em conversas por telefone, a respeito da não aplicação generalizada da lei sobre o contrato de trabalho. Esta, que entrou em vigor oficialmente em agosto de 2008, deveria fazer com que os trabalhadores se beneficiassem, por intermédio da sua empresa, de uma proteção social e de um seguro de saúde, além de terem direitos a um seguro-desemprego e uma aposentadoria.
“Em Chenghai, nenhuma empresa respeita a lei”, explica Cao Yuanfang, uma migrante de 25 anos. “O governo central de Pequim não tem condições para impor sua política aqui. Os patrões não estão nem aí com essa lei, se eu ficar doente, terei de pagar com meus próprios recursos”, diz.
A vantagem dos clientes ocidentais
O senhor Xie, que dirige uma pequena agência de empregos, confirma essas declarações, fornecendo mais detalhes: “É verdade que as empresas nada têm a temer por aqui. Todas elas contam com a proteção das autoridades locais e do governo da província, e, portanto, não respeitam a lei. Há uma única exceção: a Audley, que é a maior companhia de brinquedos da cidade. Por quê? Porque ela produz brinquedos para marcas estrangeiras famosas como a Disney ou a Bandai. Sua política social é vigiada de muito perto pelos seus clientes”.
O diretor de uma pequena fábrica confessa não respeitar a lei e não pagar as cotizações sociais dos seus empregados. “Eu não posso oferecer nem os salários nem as vantagens que fábricas como a Audley, com seus mais de 3 mil empregados, oferecem. Com meus 12 operários, eu sou um nanico ao lado delas. Minhas margens de lucro nunca passam de 10%, ao passo que aqueles com clientes ocidentais ganham no mínimo 25%”, declara. Ele faz um esforço para acalmar-se e recuperar o fôlego: “E não se esqueçam de que se as despesas de fábricas como a minha fossem mais elevadas, as tarifas de vendas para as importadoras ocidentais também o seriam, na mesma proporção. Com isso, vocês jamais poderiam comprar brinquedos tão baratos. Ora, será mesmo que todos os pais de família do seu país conseguem comprar brinquedos de grandes marcas?”. Com um discreto sorriso de satisfação no canto dos lábios, ele retorna ao seu escritório, onde coloca água para ferver, para preparar seu chá verde.
Tristan de Bourbon é jornalista.