‘É fake?’ A pergunta que a Inteligência Artificial herdou da Arte
A enganação não é novidade, seja na mídia ou na arte. Sempre que surge uma nova tecnologia, devemos adaptar nossos métodos de interpretação e consumo de conteúdo
O Tate Modern é aquele museu sobre o qual as pessoas falam quando discutem arte em Londres. Nunca ouvi o Courtauld ser mencionado neste contexto. Para ser justa, ele é mais um instituto ou uma galeria, e a coleção é menos vasta e diversificada do que a do Tate. Mas nele há muitas peças importantes em exibição, a mais notória delas talvez sendo o autorretrato de Van Gogh sem a orelha, e várias peças de Gauguin, que de alguma forma estava envolvido na situação do corte da orelha.
O espaço agrega de forma sucinta obras de grandes artistas como Manet, Degas, Cézanne, Renoir, além de vários mestres flamengos, medievais e renascentistas, num edifício deslumbrante com escadas de pedra circulares. Talvez ainda mais espetacular do que o pedigree da coleção no edifício clássico de pedra calcária é a exposição que abriu no dia 17 de junho: “Arte e Artifício: Fakes da Coleção” (“Art and Artifice: Fakes from the Collection”)
Sim, fake no sentido de falsificado.
A exposição explora não apenas vários tipos de peças falsificadas, mas também diferentes tipos de intenção por trás de suas produções. Claro, algumas foram produzidas para ganho financeiro, como aquelas feitas para parecerem antigas e caras, mas contendo pigmentos de tinta ou pregos que não existiam no período alegado. Falsificações sobre madeira do século XIX de pinturas medievais, por exemplo, foram descobertas por que os pregos da suposta data da obra não eram produzidos no tamanho e formato padrão revelados nas radiografias das peças. Outras tinham assinaturas falsas e diziam ser da época em que o artista era estudante.
As peças mais divertidas, porém, são aquelas com histórias inesperadas. Algumas foram criadas para enganar os nazistas, como foi o caso do falsificador Han Van Meegeren. Ele criou pinturas falsas de Vermeer durante a Segunda Guerra Mundial e as vendeu para membros da elite do partido nazista. A que está em exibição na exposição no Courtauld é uma falsificação de uma pintura do Van Baburen, uma peça apresentada no fundo de duas pinturas do Vermeer. Van Meegeren foi aplaudido por esse esquema, não apenas por interromper os notórios saques e maus tratos de belas artes que os nazistas promoviam, mas também porque suas falsificações se tornaram uma valiosa ferramenta de investigação técnica para estudantes de arte do instituto.
Outras peças eram apenas parte da prática de artistas que replicavam clássicos por ofício, e não feitas para enganar algum comprador. Há peças cuja verdadeira autoria permanece desconhecida, como é o caso de um desenho de Louis Philippe Boitard. A tecnologia de produção de papel de textura lisa não estava amplamente disponível até décadas após a morte do artista, mas é possível, embora improvável, que ele tenha encontrado esse material no último ano de sua vida; o ano da tal “invenção revolucionária”. Os visitantes são convidados a examinar de perto o papel com lupas para identificar as diferenças entre cada desenho.
É difícil não ver os paralelos entre essa exposição e as imagens potencialmente enganosas produzidas por inteligência artificial generativa hoje em dia. A enganação não é novidade, seja na mídia ou na arte, e sempre que surge uma nova tecnologia, devemos adaptar nossos métodos de interpretação e consumo de conteúdo. Seja um novo método de fabricação de papel, pigmento de tinta, tipo de prego ou recurso de criação de imagem digital, a inovação é imparável e a mudança é inevitável. A forma como lidamos com as mudanças tecnológicas de nossas eras, e nossa capacidade de acompanhá-las, define se a inovação representa uma vantagem ou um prejuízo para a sociedade.
No começo de junho, poucos dias antes da abertura da exposição no Courtauld, a National Public Radio dos EUA publicou um artigo com sugestões sobre como identificar se uma imagem digital era falsa; ou seja, gerada por IA. Como ferramenta, sabemos que hoje em dia a IA generativa é incapaz de retratar realisticamente mãos, dentes, acessórios como joias e planos de fundo complexos. Segurar uma lupa proverbial para esses detalhes pode revelar imagens falsas com relativa facilidade.
Algumas das imagens que foram amplamente compartilhadas online por acreditar-se que eram reais – como a do Papa vestindo um casacão branco – poderiam facilmente ter sido, e foram, expostas como falsas, embora não a tempo de impedir que se tornassem virais. Ao observar a história, vemos que o desafio de identificar falsificações não é inédito no reino de imagens enganosas na arte erudita ou na mídia de massa. Da mesma forma que é possível não ter certeza da veracidade de uma assinatura, podemos não ter certeza da origem de uma imagem digital de aparência realista. Tudo isso significa que devemos acompanhar os avanços tecnológicos e investir em um sistema educacional modernizado.
Qualquer um pode tropeçar ocasionalmente e se iludir por uma farsa. Alguns detalhes podem passar despercebidos, alguns dias o processo de verificação pode ser mais desleixado do que outros, isso é natural. Sem mencionar que é apenas uma questão de tempo até que a tecnologia digital seja atualizada para aprimorar as mãos feitas por IA e seremos pegos de surpresa novamente.
A incapacidade atual da IA de produzir imagens realistas de mãos é bastante cômica, considerando que as mãos foram um dos primeiros assuntos da expressão artística humana. Desde os pictogramas antigos feitos 40 mil anos atrás até os clássicos do século 19, as mãos têm sido um dos principais focos da arte humana, especialmente para pintores. Mesmo quando estão escondidas, as mãos se destacam e se tornam fonte de especulação e significado conspícuo.
Da Vinci era conhecido por seu estudo das mãos, e Michelangelo criou um dos pares de mãos mais reproduzidos na história ocidental, em A Criação de Adão. Entre os séculos 18 e 19, quando diversos retratos de elites europeias retratavam homens com as mãos escondidas em suas jaquetas, especulou-se que talvez as pinturas fossem mais baratas quando a pessoa pintora não precisava se concentrar em desenhar os dedos – mas não há nenhuma evidência para isso. A pose provavelmente simbolizava poder e status, já que era popular entre pessoas como Napoleão, para quem o dinheiro não era obstáculo.
De qualquer forma, nunca foi esperado que aceitássemos a arte e a mídia pelo seu valor de face. Por centenas de anos, tivemos que manter os processos de verificação e análises atualizados, tivemos que aprender a fazer as perguntas certas na hora certa, e isso ainda é tão verdadeiro agora quanto antes.
A chamada alta tecnologia (high-tech), na vanguarda da inovação, não é sinônimo de alto padrão, e nada corrobora mais essa ideia do que a chamada ‘alta cultura’, que segue a mais conservadora tradição das belas artes. Um robô logo produzirá uma falsificação perfeita, ou talvez sua própria obra-prima? Se isso acontecer, essa ameaça é possivelmente uma estória tão antiga quanto a da própria arte.
Tentar interromper a inovação será inútil, e esperar que a mudança não encontre nenhuma resistência também é irreal. Sabemos que a arte feita sem coração, feita apenas como uma réplica, não tem valor. E reconhecer os indícios de valor requer estudo, prática, e análise crítica. Para acessar esses requisitos, é preciso uma educação modernizada e inspiradora, e isso exige recursos materiais como espaços, ferramentas, orientação de qualidade etc. Um melhor uso do nosso tempo é lutar por essa educação de qualidade, em outras palavras, pelo direito de aprender a segurar uma lupa e analisar o que se vê, em vez de fazer campanha contra novas tecnologias que podem ou não ser usadas para criar fakes.
Mirna Wabi-Sabi é escritora, editora e fundadora da Plataforma9.