É fantástico o show da morte
“Refundar o Estado brasileiro”. Essa foi a base da cobertura feita pela Globo e, em menor escala, pelas demais emissoras, sobre as ações no RJ. As metáforas utilizadas pelos comentaristas, especialistas e repórteres para descrever a operação eram próprias da linguagem militar: “ocupar o território”, “expulsar o inimigoJosé Arbex Jr.
“No início da tarde, uma senhora baixa e negra que gritava na praça, com uma criança no colo, era o retrato do desespero. ‘Tem 24 horas que meu menino de 16 anos está sumido. Botaram o corpo dele para os porcos’, chorava a mulher, identificada apenas como Dineia. Todos os moradores sabem onde fica o local sobre o qual a senhora falava. ‘É na vacaria, tem corpo lá, sim’, confirmaram os cerca de dez transeuntes consultados pela reportagem na subida do morro da Vila Cruzeiro. O local é coberto por mata e pedras. Em vez de vacas, criadas no local tempos atrás, havia porcos se alimentando de cadáveres. Procurada pela reportagem, a assessoria de imprensa da Polícia Militar do Rio de Janeiro informou não ter conhecimento do fato. Os moradores defendem, enfaticamente, que os corpos são de ‘vagabundos’, mas também de ‘inocentes’ atingidos durante o confronto.”
O trecho da reportagem de Renata Mariz, publicada em 29 de novembro no jornal Correio Braziliense, revela a brutalidade com que foram conduzidas as operações policiais e militares de ocupação da Vila Cruzeiro, no Rio de Janeiro, iniciadas no dia 25 de novembro, estendendo-se, em seguida, para todo o Complexo do Alemão (13 favelas onde vivem cerca de 150 mil pessoas), com o objetivo de combater o narcotráfico. A multiplicação de depoimentos semelhantes, nos dias seguintes, corrobora a reportagem. Mas os relatos contrastam com as declarações dadas no domingo, dia 28, por Rodrigo Pimentel, ex-capitão do Bope (Batalhão de Operações Policiais Especiais) e atual “comentarista de segurança pública” da Rede Globo. Pimentel foi apresentado em tom triunfal por Faustão, âncora de um dos programas de maior audiência da Globo. Após afirmar que Pimentel é o “verdadeiro capitão Nascimento” (herói do filme Tropa de elite, inspirado num livro de sua autoria), Faustão elogiou, emocionado, a “decisão corajosa da polícia” de “extirpar o mal dos morros e favelas”. Declarou que a operação foi um “divisor de águas e exemplo para o resto do Brasil”. Pimentel responde:
“Está tudo muito bem coordenado. É uma demonstração de força com blindados. Sem nenhuma vítima das comunidades, nenhuma bala perdida, nada. Eu diria que é perfeita, porque nenhum policial morreu, nenhuma pessoa da comunidade foi atingida. Os bandidos estão sendo presos. Não são ‘pés-de-chinelo’ e, sim, staff da facção. Toda a cidade vai curtir uma sensação melhor, uma segurança maior depois disso. Essa região é muito violenta, eles promoviam guerra entre as facções. Desde que a operação começou, não temos mais ocorrências de assaltos e carros queimados.” Na mesma noite, a operação foi o principal tema do “Fantástico”; na terça-feira seguinte, coube à apresentadora Ana Maria Braga repetir o quadro com Pimentel, no seu programa matinal.
O fato de a Rede Globo ter mobilizado alguns de seus principais apresentadores para falar da operação, além de lhe ter dedicado horas e horas de cobertura jornalística incessante, não é um mero detalhe. Como nota o articulista Nelson de Sá no jornal Folha de S.Paulo do dia 29: “Ameaçada pela Record no Rio, a Globo derrubou parte da programação regular a partir de quinta, repetindo a cobertura da enchente que em 1966, em cinco dias, com Walter Clark, a estabeleceu como a TV da cidade. Assim foi até ontem, com a tomada do Complexo do Alemão (…) – e sua transmissão ao vivo bateu a Record por grande margem”. Mas a verdadeira chave para decifrar o engajamento da rede vem agora: “A cobertura global (…) se fundiu ao próprio Estado, em engajamento semelhante ao da Fox News no Iraque. Sua repórter chegou ao Alemão ao lado da polícia. (…) O discurso de refundação do Estado nas áreas retomadas foi único, tanto da cobertura como das autoridades na transmissão”.
Eis aí o fundamento da cobertura feita pela Globo e, em menor escala, pelas demais emissoras, que acabaram pautando o conjunto da grande imprensa, com exceções importantes, como no caso do Correio Braziliense (a Folha de S.Paulo adotou um tom um pouco menos triunfalista e mais crítico): tratava-se de “refundar o Estado” brasileiro. As metáforas utilizadas pelos comentaristas, especialistas e repórteres para descrever a operação eram próprias da linguagem militar: “ocupar o território”, “expulsar o inimigo”, “extirpar o mal”, “recuperar o controle”. O dado mais grave, pouco analisado e comentado mesmo pelos críticos, é o fato de que esse discurso naturalizou a participação das Forças Armadas, algo inédito e absolutamente grave. Os traficantes dos morros cariocas foram tratados como “estrangeiros”, como se fossem um “corpo estranho” no território nacional, e não um mero subproduto do crime organizado, que agrega empresários, banqueiros, especuladores e agentes do capital financeiro.
Historicamente, as Forças Armadas existem para defender a soberania nacional contra agressores externos, e não para agir contra seu próprio povo. Os coordenadores militares da ação no Complexo do Alemão foram treinados no Haiti. Como explica o coronel de reserva, Barroso Magno, ex-comandante do 6º contingente brasileiro na Missão da ONU para a Estabilização do Haiti (Minustah): “O Exército tem um plano de atuação para apoio ao governo do Estado do Rio e a todos os Estados. Chama-se Plano de Segurança Integrada e é realizado para a contingência da Constituição, nas situações de garantia da lei e da ordem”. Ao engajar as Forças Armadas, o Brasil aproxima-se da Colômbia, cujo governo, caninamente submisso à Casa Branca e ao Pentágono, abriu o seu território e o comando de suas tropas a “assessores especiais” (agentes da CIA, do FBI, da DEA – Drug Enforcement Administration) e a “comandos” israelenses (veteranos no combate aos palestinos). Além, é claro, de criar um promissor comércio de armas, artefatos e tecnologia bélicos, como os “caveirões”, dos quais Israel é um dos principais fornecedores. Nada disso transpareceu nas coberturas.
Mas o interesse da Globo comporta um outro dado, cruelmente empresarial e especulativo, lembra a socióloga Vera Malaguti, secretária-geral do Instituto Carioca de Criminologia (ICC), em entrevista ao Correio da Cidadania, em 9 de dezembro. Após observar que a operação foi anunciada pela Globo como “Tropa de Elite 3” um dia antes de seu início (isto é, a emissora conhecia os planos com antecedência), Malaguti afirma tratar-se de “abrir caminho também para os grandes negócios transnacionais. Crime organizado é isso aí. Esses negócios olímpicos e transnacionais fazem parte da estratégia de ocupação das áreas pobres. É mais um capítulo dos ‘muros ecológicos’, ‘paredes acústicas’, que vão murando e isolando as áreas pobres. Depois, as pessoas falam que é uma alternativa. Não, não é uma alternativa ao modelo, e sim seu aprofundamento, chegando agora na ocupação militarizada das favelas. Eu chamo de gestão policial da vida. (…) Creio estarmos diante de um projeto de ocupação militarizada das áreas de pobreza do Rio de Janeiro, com uma cobertura vergonhosa da grande mídia”.
Nesse sentido, a operação midiática foi bem além de mais um “show”, equiparável, por exemplo, à cobertura de outros escândalos da vida privada (como o do goleiro Bruno ou o do casal Nardoni). Foi um “espetáculo” no sentido mais radical e pleno dado por Guy Debord: o simulacro de um tecido informativo que, de fato, estrutura a ação do capital. Integra as Forças Armadas, a polícia, as instituições de Estado e as corporações (tanto a indústria bélica quanto a do entretenimento) num esforço conjugado de manipulação do consenso. Faustão está certo nesse sentido: foi mesmo um “divisor de águas”, uma reedição – agora com ares “democráticos” – da sagrada aliança entre os aparelhos privados de hegemonia e o Estado autoritário tupiniquim.
Qual será o próximo “território” a ser “reconquistado”?
José Arbex Jr. é jornalista e professor da PUC-SP.