Enfrentar a herança maldita
Ao colocar no mesmo patamar vítimas e torturadores, o governo criou uma aberração jurídica, inadmissível num Estado democrático de direito. Ora, não há como deixar de considerar que a ditadura proibiu a existência de partidos políticos e extinguiu as eleições diretas em função da “segurança nacional”
No Brasil, a radiografia dos atingidos pela repressão política durante a Ditadura Militar (1964-1985) não está concluída. Há uma imensa lacuna entre passado e presente, marcada pela ocultação dos acontecimentos, a negação ao direito à verdade e à justiça, limitando a ação reparadora e impedindo a articulação e transmissão da herança e da memória desses anos de violência”1.
O Estado ditatorial brasileiro, instalado a partir do golpe militar de 1964, cometeu atrocidades como sequestros, torturas, assassinatos e desaparecimentos forçados de integrantes da oposição. Exportou para os países vizinhos métodos de repressão política e, principalmente, de tortura. Chilenos, uruguaios e argentinos aprenderam a expressão pau de arara – conhecida técnica de tortura que coloca a pessoa pendurada em um cavalete, onde lhe são dados choques elétricos. Tais procedimentos foram ensinados a partir da atuação de militares brasileiros enviados a esses países para recrudescer a repressão política. Lembrar disso neste momento é necessário, pois em todos esses locais mencionados já foram constituídas comissões de verdade. No Brasil, no entanto, estamos convivendo com o rechaço dos militares, que não aceitam falar em verdade e justiça, acobertando os crimes de lesa humanidade praticados no período da ditadura militar, entre 1964 e 1985.
A proposta de criar a Comissão da Verdade e da Justiça foi aprovada durante a 11ª Conferência Nacional de Direitos Humanos, realizada em dezembro de 2008, com a participação dos familiares de mortos e desaparecidos políticos e de diversas entidades representativas da sociedade civil. No entanto, no decorrer de 2009, antes da publicação final do III Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH), o texto aprovado sofreu alterações. Ao se retirar a expressão “justiça”, o papel da Comissão foi claramente reduzido. Tal supressão foi feita com o intuito de evitar a responsabilização e a punição dos agentes do Estado que cometeram os crimes de lesa humanidade, diluindo assim as atrocidades praticadas pelos torturadores.
Contudo, não bastasse a exclusão do termo “justiça”, a proposta sofreu novo ataque. Depois de ter assinado e concordado com o III PNDH, no dia 21 de dezembro de 2009, o presidente Lula recuou de forma vergonhosa diante da pressão dos militares, e o decreto criando a Comissão foi alvo de mais uma mudança. Lula editou o decreto, em 13 de janeiro de 2010, descaracterizando a Comissão da Verdade e tornando-a um instrumento ineficaz e descomprometido com a apuração da violência da repressão política do Estado brasileiro. Ao colocar no mesmo patamar vítimas e torturadores, o governo criou uma aberração jurídica, inadmissível num Estado democrático de direito. Ora, não há como deixar de considerar que a ditadura proibiu a existência de partidos políticos, extinguiu as eleições diretas para presidente, governadores e municípios considerados de “segurança nacional”. A sociedade deixou de ter canais de participação.
Impediu, por meio da repressão política, o funcionamento das organizações populares, sequestrando, torturando e assassinando seus militantes. Muitos foram obrigados a ir para o exílio. Manifestações de rua eram reprimidas de forma bárbara, o que levou à morte de vários ativistas de esquerda ou mesmo populares que transitavam nas proximidades desses eventos.
A ditadura passou a governar por meio de atos institucionais. Tais atos eram feitos, autoritariamente, pelos militares e com anuência de alguns civis que gravitavam em torno do poder militar. O famoso AI-5 significou um verdadeiro golpe dentro do golpe, suspendendo o habeas corpus, o que contribuiu de maneira decisiva para a matança de opositores e ocultação de cadáveres. A censura instalada no país, nos meios de comunicação e nos meios culturais, trouxe o silêncio da morte, do desespero, da desinformação e do obscurantismo. O medo e o terror do Estado se espalharam por todo o território nacional. A tortura passou a ser institucionalizada.
Mas não só: o Brasil também se integrou às operações do Plano Condor, uma rede articulada da repressão política que se estendeu por diversos países da America Latina, levando ao extermínio de militantes. A censura proibia o uso de palavras como meningite (havia um surto de meningite, mas não se podia falar no assunto), greve, direitos humanos, entre outras. Parlamentares foram cassados. Líderes sindicais e estudantis viviam numa intensa clandestinidade ou já haviam sido mortos. A esquerda amordaçada, perseguida no cotidiano, era dizimada constantemente. Nessas condições, a sobrevivência política era quase impraticável. Enquanto isso, os militares dos chamados órgãos de segurança nacional, sem ter a mínima consideração com a dignidade humana, atuavam na calada da noite, torturando, assassinando e desaparecendo com os corpos de opositores. Atingiram assim os diversos setores da sociedade: imprensa, estudantes, trabalhadores do campo e da cidade, artistas, parlamentares, religiosos e mesmo empresários.
Decreto descomprometido
Diante desse quadro, como igualar torturadores e suas vítimas? A ditadura, ao empregar a tortura, o fez como política estratégica de Estado, em que a meta era eliminar qualquer vestígio de oposição política e instalar o obscurantismo. Não há o que confundir. Os torturadores, militares e policiais civis, recebendo salário e benefícios de funcionários públicos, instituíram o terrorismo de Estado.
Será que as autoridades brasileiras atuais não compreendem isso? Causou-nos estranheza e dor ver a reformulação do III PNDH, por meio de um decreto que trata de forma tão vaga e descomprometida a apuração dos crimes da ditadura militar. Agindo assim, o governo conseguiu retroceder em relação às suas próprias posições. Em agosto de 2007, esse mesmo governo, num gesto progressista, tomou a iniciativa de publicar o “Relatório do Direito à Memória e à Verdade”, que reconheceu os bárbaros crimes da ditadura militar, incluindo os assassinatos e os desaparecimentos cometidos contra ativistas políticos. Há uma incoerência que deixa pasmada a opinião pública.
A Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos tem pautado sua trajetória, ao longo de mais de três décadas, pela busca incansável da verdade e da justiça. Produzimos algumas edições do “Dossiê dos Mortos e Desaparecidos Políticos”, sendo que a última, publicada em 2009, traz uma lista de 426 mortos e desaparecidos políticos durante a ditadura. Há outras listas, como a que foi feita pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), com o registro de 1.188 assassinatos de trabalhadores rurais no mesmo período.
Em 1982, os familiares dos guerrilheiros do Araguaia iniciaram uma ação judicial para exigir do Estado esclarecimentos sobre as circunstâncias das mortes e dos desaparecimentos de seus parentes e a localização dos seus restos mortais. Em razão da morosidade da justiça brasileira, os familiares recorreram, em 1996, à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA).
Passados alguns anos, a ação foi ganha na esfera da justiça nacional. Na OEA, ela também foi aceita e aguarda-se ainda a decisão final. Em 2003, a juíza Solange Salgado proferiu sentença obrigando o Estado a garantir o direito à verdade aos familiares dos desaparecidos políticos. Na mesma sentença determinou que fossem feitas rigorosas investigações no âmbito das Forças Armadas, prevendo inclusive a intimação a “todos os agentes militares ainda vivos que tenham participado da operação, independentemente dos cargos que ocupavam à época”.
Naquela ocasião, o governo Lula interpôs recursos e embargos com o intuito de impedir a execução da sentença, sem obter sucesso. Mais uma vez, familiares e entidades de direitos humanos protestaram contra tal decisão arbitrária. Suzana Lisboa, que integrava a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos do Ministério da Justiça (CEMDP), como representante dos familiares, pediu demissão. O governo tentou, de forma autoritária, um esvaziamento político da CEMDP e criou, sem publicidade e sem consultar a sociedade civil, uma Comissão Interministerial. Essa Comissão até os dias atuais jamais prestou contas de suas atividades e não deu nenhuma informação à opinião pública, nem sequer aos familiares e entidades de direitos humanos.
Os familiares enfrentaram e, enfrentam, como mostram os debates diários na imprensa, situações em que têm sido impedidos de exercer seu direito à verdade e à justiça. Porém, permanecem na busca de esclarecimento. Por isso, defendemos todo o conteúdo do Plano Nacional de Direitos Humanos, mas continuaremos a lutar pela Comissão da Verdade e da Justiça com poderes reais de apuração dos fatos, das circunstâncias, do contexto e das responsabilidades das mortes e desaparecimentos dos ativistas políticos, a localização de seus restos mortais e a responsabilização dos agentes estatais envolvidos nos crimes contra a humanidade, conforme os tratados internacionais assinados e ratificados pelo Estado brasileiro.
*Maria Amélia de Almeida Teles é integrante da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos e do Instituto de Estudos da Violência do Estado (IEVE).