Esquerda colombiana quer a paz, mas não abre mão da justiça social
Em 27 de agosto de 2012, o presidente Juan Manuel Santos anunciou a abertura de negociações de paz com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) na presença de representantes do patronato, mas não do movimento social. Ele conseguirá encerrar o conflito sem dar ouvidos às reivindicações que o fizeram nascer?Maurice Lemoine
(Oitenta mil pessoas lotam a Praça Bolívar, em Bogotá, durante La Marcha, em 23 de abril de 2012)
Apenas algumas canoas com motor conseguem chegar a Puerto Matilde e suas humildes moradias, às margens das águas esverdeadas do Rio Cimitarra. Quando cai a noite, a vila mergulha na escuridão, pela ausência de luz elétrica. Uma chuva torrencial bombardeia os telhados de chapa ondulada. Às 8 horas da manhã, o sol desponta entre as últimas nuvens que se dissipam. A água que evapora com o calor pesa no ar, a transpiração começa antes mesmo de se colocar o pé nas tábuas escorregadias que, jogadas sobre a lama, permitem o deslocamento. Caminhando lentamente em direção ao posto de saúde desprovido de médico, enfermeiros e até de medicamentos, o presidente do comitê de ação comunitária, Carlos Enrique Martínez, constata o óbvio: “Como tantas outras zonas da Colômbia, esta região do Magdalena vive marginalizada, no esquecimento total”.
“Os obstáculos se acumulam: violência, falta de educação, serviços públicos e meios de comunicação, corrupção dos administradores públicos locais. Tudo isso recai sobre as costas dos camponeses”, acrescenta Luis Carlos Arizanillo, encarregado dos projetos produtivos da Associação de Camponeses do Vale do Cimitarra (ACVC). Essas pessoas vieram de outras províncias e colonizaram essas terras antes desocupadas “em razão dos deslocamentos forçados provocados pelo terrorismo de Estado”, explica o coordenador geral da ACVC, Gilberto Guerra. Recordemos: mais de seis décadas de conflito armado interno assolam esse país considerado, do ponto de vista formal, uma democracia. A resposta aos grupos de oposição armada, nascidos como reação a uma violência estrutural, foi uma repressão que excedeu em intensidade todos os regimes militares do Cone Sul: “A cada ano, o número de pessoas assassinadas pelas forças militares e paramilitares é muito superior aos executados no Chile durante os dezessete anos de ditadura do general Augusto Pinochet”,1 observou em 2005 a Comissão Internacional de Juristas.
A extrema direita e a barbárie
A ACVC nasceu em 1996, no vale do Rio Cimitarra. Na origem da associação, eram 15 mil camponeses; hoje, são 28 mil. “Tínhamos perdido nossas terras, que eram muito boas, então decidimos nos organizar para que não nos deslocassem outra vez”, esclarece Guerra. Mais que em outros lugares, os massacres e o paramilitarismo, ajudados pela força pública, arrasaram o Médio Magdalena. Apesar da ameaça permanente, a ACVC conseguiu formar uma zona de reserva camponesa destinada a assegurar a autossubsistência das comunidades. “Esse projeto faz parte da resistência pelo território”, continua Guerra, não sem um tom de desafio na voz: ameaçado de morte, perseguido judicialmente, ele precisou se exilar durante vários anos na Venezuela.
Com satisfação, pisando sobre o pasto, Guerra acaba de inspecionar o centro de reprodução de búfalos instalado nas proximidades do vilarejo. Dados pelo Programa de Desenvolvimento e Paz da Organização das Nações Unidas (ONU), os primeiros desses animais se multiplicaram e atualmente “permitem que cinquenta famílias se beneficiem do gado da associação”. Transbordando energia, Arizanillo completa: “Mostramos ao povo que, se nos organizarmos, podemos encontrar soluções”.
Após uma canoa errar o caminho, os dois dirigentes tomaram a rota certa para Barrancabermeja, um porto petroleiro situado no Rio Magdalena, onde está a sede da ACVC. Quando passou um veículo por El Tigre, uma localidade do município de Yondo, interromperam a conversa. É lá que, antes da “desmobilização”, em 2005, os paramilitares instalavam regularmente suas trincheiras e interceptavam os camponeses que figuravam em suas listas. Era lá que…
Ninguém nega que as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) e o Exército de Libertação Nacional (ELN) também contribuem para encher essas terras de aflição. Mas, confiou-nos Martínez, expressando um sentimento amplamente compartilhado, “não estou de acordo em responsabilizar exclusivamente a guerrilha pelo conflito. Aqui, é a extrema direita que ultrapassou todas as barreiras da barbárie”. Ele sabe do que está falando, pois foi conselheiro municipal de Yondo três vezes durante as décadas de 1980 e 1990, pela União Patriótica (UP). “Esse período foi uma experiência muito dura, muito cruel: resultou em muitas viúvas, órfãos, terras abandonadas.”
A UP surgiu por iniciativa das Farc no dia 12 de março de 1984, no marco de um diálogo levado adiante com o presidente Belisario Betancur e de um acordo de cessar fogo que durou mais de dois anos. A União reagrupou guerrilheiros desmobilizados, membros do Partido Comunista e de diversas correntes progressistas com o objetivo de permitir que os insurgentes passassem da organização armada à vida civil quando o acordo de paz fosse consolidado pelas reformas sociais prometidas pelo governo. Nas eleições de março de 1986, a UP elegeu cinco senadores, nove deputados, 23 prefeitos de cidades intermediárias e vários conselheiros municipais – um sucesso espetacular naquele contexto, para uma primeira participação.
Com a rapidez de uma arapuca que cai, os paramilitares, apoiados secretamente por militares e pelos serviços de informação, cercaram os dirigentes, militantes e simpatizantes da oposição. Entre torturas, homicídios e desaparecimentos, contam-se no mínimo 4,5 mil vítimas. Na época, depois de sair das florestas do Caquetá e das linhas de frente da guerrilha para integrar a UP, o deputado recém-eleito Luciano Marín Arango foi obrigado a tomar o caminho de volta para salvar a pele e, sob o pseudônimo de Iván Márquez, retomou a luta armada. É ele quem, desde 18 de outubro de 2012, conduz as delegações das Farc nas negociações com o governo de Juan Manuel Santos.
“Que eles dialoguem, que se entendam e acabem com isso”, enerva-se Martínez, em Puerto Matilde. A paz, aqui, é um sonho. Mas não qualquer paz; “a paz com justiça social”, impacienta-se Inocencio Pino, olhando para o esquadrão de militares que vigiam o desembarque em San Pablo, no Magdalena. Em Cantagallo, também na beira do rio, o velho Elias Rodríguez, com os olhos marcados pelo cansaço, entoa o mesmo canto: “Alguns pensam, e estão enganados, que o resultado das negociações deve ser a rendição da guerrilha. Na verdade, não é possível colocar um fim no conflito se não forem feitas mudanças e, em particular, uma reforma agrária”.
Em Bogotá, Xavier Cuadros, um dos porta-vozes da Marcha Patriótica, onde militam nossos interlocutores precedentes, engrossa o mesmo discurso: “O processo em curso não pode se limitar ao encontro de delegados do governo e da oposição armada; deve, sim, prever mecanismos de participação que se ampliem aos movimentos sociais”.
La Marcha, vitrine política da guerrilha?
Aparentemente desarticuladas pela repressão, as organizações populares reapareceram com força na capital – em julho de 2010, data do bicentenário da independência – para “mostrar sua unidade perante a burguesia”. Nessa ocasião, durante um cabildo abierto(conselho aberto), a Marcha Patriótica foi evocada pela primeira vez. Dois anos depois, de 21 a 23 de abril de 2012, La Marcha, como é chamada atualmente a convergência de iniciativas e processos de unidade regional, reuniu 80 mil pessoas e representantes de mais de 1,5 mil organizações locais e nacionais na Praça Bolívar, em Bogotá − um acontecimento. Autodefinida como um “movimento político e social”, essa força crescente privilegia, segundo Cuadros, “a mobilização e as manifestações, ou seja, os canais não institucionais de participação, para acumular forças e se transformar, com o tempo, em alternativa de poder”.
Se o estilo do presidente Santos contrasta com o de Álvaro Uribe, ele não é menos liberal economicamente que seu predecessor, de quem foi ministro da Defesa. E Santos também tem a mesma intenção de transformar o país em fornecedor de matérias-primas, o que implica conceder às multinacionais grandes porções de terras, já concentradas em latifúndios.2 Segundo números oficiais, 16% dos habitantes da Colômbia vivem como indigentes e 45% (62,1% no campo) estão abaixo da linha de pobreza.3
Historicamente pobre, o mundo rural constitui o núcleo de La Marcha. Contudo, a presença do Partido Comunista, da esquerda liberal de Piedad Córdoba,4 de sindicatos, setores estudantis – em particular a Mesa Estudantil Ampliada (Mane), criada a partir das lutas contra a privatização das universidades públicas –, meios de comunicação alternativos, bem como de “novas identidades” (mulheres, ecologistas, gays e lésbicas, atores culturais etc.), garante um traço urbano que a fortalece.
Apesar das similitudes e diferenças, não faltam aliados: o Congresso dos Povos (organização indígena); a Minga (também indígena); a Coalizão de Movimentos Sociais da Colômbia (Comosoc); as igrejas pela paz etc.5 Todos convergiram na Rota Social Comum pela Paz, que, em 12 de outubro de 2012, durante uma jornada de mobilização nacional, levou às ruas 350 mil “indignados”, que entoavam as palavras de ordem: “Sem emprego, não há paz; sem saúde, não há paz; sem educação, não há paz!”.
Uma formulação legítima, mas delicada. Porque no dia 18 de outubro, na abertura da primeira sessão do diálogo, o comandante Márquez, recordando o caráter político das Farc, também reivindicou uma “transformação estrutural do Estado”. Essa presunção escandalizou a Colômbia “que decide”, ou seja, o país das cidades e de uma classe média que melhorou o nível de vida sem ser afetada pelo desastre social e pelos conflitos que assolam o campo. O chefe da delegação governamental, Humberto de la Calle Lombana, replicou imediatamente que, na mesa de negociações, “o modelo econômico do país não está em discussão”.6 Não demorou para o Ministério da Defesa e os meios de comunicação acusarem La Marcha de ser um braço político dos “terroristas” da guerrilha, assim como foi a União Patriótica em seu tempo.
A organização protestou, afirmando que essa acusação é falsa: enquanto a UP surgiu de uma iniciativa direta das Farc, com delegados próprios, “La Marcha é fruto de uma convergência de organizações legitimamente constituídas e que trabalham abertamente, pacificamente”.
Na Colômbia, existe um conflito social. Por mais que a guerrilha pratique métodos particularmente detestáveis (sequestros, assassinatos, implicação de alguns segmentos no narcotráfico), ela é produto da luta armada, não nasceu do nada. “O discurso das Farc não difere muito do de um partido de esquerda, de um sindicato ou organização contestatória no âmbito de uma democracia confiscada”, analisa o diretor do jornal semanal comunista Voz, Carlos Lozano, em Bogotá.
Certamente, algumas das organizações que formam o núcleo de La Marcha são oriundas de zonas de conflito – Cauca, Magdalena, Catatumbro, norte do Santander, oriente colombiano – e foram construídas em processos de resistência não isentos de porosidade ou passagens por la insurgencia. As Farc, de seu lado, jamais relegaram o trabalho político: depois das últimas negociações abortadas em 1999-2002, criaram um Partido Comunista clandestino e um Movimento Bolivariano, também subterrâneo. Ainda assim, não é possível negar que a maioria das organizações pertencentes a La Marcha é constituída por habitantes dessa Colômbia agonizante e que não estão de acordo com o status quonem com a luta armada.
A repressão não para
“Se por um lado não negamos aos insurgentes a condição de organização política portadora de uma demanda de transformação, por outro eles não representam o conjunto do movimento popular”, insiste David Flores, porta-voz de La Marcha. Um lugar na mesa de negociações? É, sem saber definir exatamente as modalidades de participação, o que reivindica La Marcha. No Acordo Geral para o Fim do Conflito e a Construção de uma Paz Estável e Duradoura, assinado pelas Farc e pelo Estado em setembro de 2012, a participação da sociedade não foi inicialmente aprovada.
Em Havana, os insurgentes insistiram em uma representação direta. Ao considerar que a presença de homens ligados ao setor patronal, industrial e militar em sua delegação representava o conjunto do país, o governo previu, para “os outros”, um modo menor de consulta – por internet!7 Finalmente, aceitou que, em Bogotá, entre 17 e 19 de dezembro, sob a égide da ONU e da Universidade Nacional, se realizasse um “Fórum político de desenvolvimento agrário integral”. O evento reuniu 1.314 pessoas (533 organizações, a maioria de La Marcha) e os debates insistiram sobre a necessidade de construir um modelo mais equitativo de desenvolvimento agrário – o grande nó do conflito. As quatrocentas recomendações elaboradas nessa ocasião foram transmitidas às duas partes presentes na mesa de negociações. Um detalhe significativo: alinhada às posições violentamente “antinegociações” do ex-presidente Uribe, a poderosa Federação Colombiana de Criadores de Gado (Fedegan, na sigla em espanhol) se recusou a participar do fórum.
Algumas semanas antes, ao marcar suas diferenças e divergências com as Farc, um dirigente de La Marcha nos confiou: “Podemos aprovar ou não as formas de ação deles, mas é certo que elas fizeram com que o establecimientose sentasse à mesa, coisa que nenhuma organização social ou partido político conseguiu na história deste país”. Porém, o caminho ainda é longo até a obtenção da “paz com justiça social” tão reivindicada. “A revolução não se dará na mesa de negociações, mas, da mesma forma que a guerrilha, o governo precisa fazer concessões. Até onde está disposto a ceder?”, admite lucidamente Lozano. E, principalmente, o governo estaria disposto a conceder garantias a uma oposição que não pede nada além da possibilidade de se expressar democraticamente, porém firmemente? “Enquanto ‘eles’ estiverem na mesa de negociações, nós estaremos na rua”, afirma Lozano.
Após a pseudodesmobilização em 2005, vários paramilitares foram reciclados em bandos criminosos, cujos métodos não mudaram. A repressão generalizada contra os movimentos sociais não cessou – 57 sindicalistas foram assassinados nos últimos dois anos – e La Marcha já amarga várias prisões arbitrárias, assassinatos e desaparições. “Eu não tenho medo de me envolver. Mas, como todos, peço a Deus que me proteja”, lança um camponês da Sabana de Torres, no Médio Magdalena, com um sorriso no rosto.
Maurice Lemoine é jornalista e autor de “Cinq Cubains à Miami (Cinco cubanos em Miami)”, Dom Quichotte, Paris , 2010.