Essa tal de PEC da Reforma Administrativa
Antes de falarmos sobre a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Reforma Administrativa, enviada em setembro pelo presidente Jair Bolsonaro ao Congresso, precisamos discutir sobre a reforma do Estado brasileiro. A Reforma Administrativa surge no bojo do neoliberalismo, da globalização econômica do capital e da reestruturação produtiva.
O governo de Fernando Collor inicia no Brasil a anuência ao neoliberalismo. As discussões econômicas e políticas são trocadas pelo discurso técnico-gerencial e pelo ideário da descentralização, do ajuste, da privatização e da flexibilização. Os princípios da administração gerencial têm como base teórica a Public Choice, escola neoliberal que estuda a diferença entre o mercado e o quase mercado, de forma a deixá-las aproximadas.
A globalização financeira e produtiva também modificou o papel do Estado porque moveu grande parte do volume de recursos financeiros, não mais para a esfera produtiva, mas para o âmbito financeiro, agravando o desemprego e interferindo no financiamento das políticas públicas, já que diminuiu a arrecadação de impostos.
A outra estratégia de superação da crise é o próprio neoliberalismo. Para essa teoria, não é o capitalismo que está em crise, mas o Estado. O plano seria retificar o Estado e reduzir sua intervenção para suplantar a crise. O mercado é que deve derrotar as falhas do Estado.
O âmago da reforma do Estado consiste na recuperação da capacidade de governo, intimamente comprometida como reflexo de elementos de ordem conjuntural e histórico-estrutural, segundo Eli Diniz [i]. Para essa autora, a intensidade e a escala dos problemas que afligiram a sociedade brasileira a partir do início da década de 1980 caracterizaram uma crise de variadas dimensões. A clareza de seus aspectos econômicos, que se apresentaram por meio de forte endividamento externo, por altos índices de inflação, desemprego e recessão, ofuscou a compreensão dos seus componentes institucionais e políticos, cuja expressão maior foi a crise do Estado.
Segundo Diniz, o enfrentamento da crise rogou por um Estado eficiente. Entretanto, a acepção dominante de eficiência estatal e a percepção dos meios para garantir a desejada eficácia recriaram os velhos vícios da marginalização da política e da preferência dos governos tecnocráticos controlados por especialistas. Essa modalidade de gestão pública produziu o afastamento do Executivo, comprometendo a racionalidade governativa.
Outro fator aumenta esse quadro de dificuldades. Ainda de acordo com Diniz, a preferência dada aos programas de estabilização econômica e o acirramento das batalhas em torno da distribuição de recursos parcos esvaziaram itens essenciais da agenda pública, tais como as reformas sociais.
A acepção de fortalecimento da eficácia do Estado, no que concerne ao refinamento da sua capacidade de ação, foi um imperativo da reforma do Estado. Tornou-se cada vez mais presente na agenda pública a proposta que indica a modificação do Estado, de modo a torná-lo capaz de executar com sucesso suas políticas e de conquistar suas decisões. A imobilização da ação estatal não aconteceu tanto do exagero de demandas, mas da modificação do Estado, em que se corroeram seus recursos administrativos e prejudicou sua capacidade governamental. Desde o governo de Fernando Collor, inspirado por uma acepção minimalista, a reforma do Estado foi estabelecida através do enxugamento da máquina burocrática. Daí notou-se a derrubada do aparelho do governo, agravando-se a situação de ruína do setor público.
Políticas de reformas
No âmbito operacional, as políticas de reforma do Estado focam no reencontro das medidas possíveis para a reestruturação de novos padrões de relações entre a Sociedade, o Mercado e o Estado em um mundo globalizado e democrático (REZENDE, 2002)[ii].
Para esse mesmo autor, de forma histórica, é possível caracterizar e delimitar duas gerações de políticas de reforma do Estado. As reformas da primeira geração tiveram como foco o ajuste fiscal englobando reformas tributárias, cortes nos gastos públicos, desregulamentação e privatização de setores específicos, bem como liberalização comercial e econômica, e o ajuste fiscal sendo entendido como um conjunto de proposições com o intento de possibilitar maior eficiência e racionalidade na gestão e no uso das receitas e despesas da administração pública.
Na segunda geração que se afirmou a partir da década de 1990, o escopo foi para modificações institucionais mais profundas. Tais alterações suscitaram iniciativas voltadas para a emergência e o desenvolvimento de políticas de reforma da administração pública, do legislativo, do judiciário, das relações trabalhistas, a modernização tributária, reformas nas estruturas de regulação, revisão das vinculações entre governos subnacionais e centrais, bem como programas em massa de privatizações.
A Reforma Administrativa foi um dos fundamentais eixos da segunda geração de reformas e estas compatibilizaram de variadas formas a necessidade de reexaminar a performance da administração pública através de mudança institucional e de ajuste fiscal (REZENDE, 2002)[iii].
O chamado ajuste fiscal tem como sinônimo a austeridade. Esta é “uma forma de deflação voluntária em que a economia se ajusta através da redução de salários, preços e despesa pública para restabelecer a competitividade, que (supostamente) se consegue melhor cortando o orçamento do Estado, as dívidas e os déficits” (BLYTH, 2017, p. 22)[iv].
Retornando para o caso brasileiro, na apresentação do documento elaborado pelo Ministério da Administração Federal e da Reforma do Estado (MARE) – Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado-, o então Presidente Fernando Henrique Cardoso disse que o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado tenta criar as possibilidades para a reconstrução da administração pública em bases modernas e racionais.
Os governos sucessores, de Luís Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, tiveram como característica o neoliberalismo soft, e os de Michel Temer e Bolsonaro, caracterizam-se pelo neoliberalismo hard dando continuidade a diversas reformas – Trabalhista, Lei da Terceirização, da Previdência – e a Emenda Constitucional nº 95/2016 (determina o Novo Regime Fiscal através do congelamento de gastos por 20 anos), sendo todas elas ataques frontais aos direitos da classe trabalhadora.
Reforma administrativa de Bolsonaro
A PEC sobre a Reforma Administrativa também faz parte desse processo. Ela possui graves problemas em sua forma e em seu conteúdo. No que se refere à forma, ela foi encaminhada ao Congresso Nacional e não passou por um debate ampliado entre o Governo, os especialistas, universidades, as entidades de classe do funcionalismo público, seus respectivos sindicatos, bem como pela sociedade civil organizada.
No que diz respeito ao conteúdo, a PEC sobre a Reforma Administrativa ataca principalmente os servidores e empregados públicos das áreas da saúde e educação, esquecendo os demais âmbitos da Administração Pública. Ela não versou sobre as normas gerais sobre a administração pública direta e indireta, as entidades paraestatais e as de colaboração etc. Ela focou exclusivamente nos servidores, empregados públicos e na organização administrativa muito pouco.
Aquela PEC utiliza terminologias como inovação, boa governança pública, eficiência etc. que são termos utilizados na administração pública gerencial. Permite a acumulação de cargos públicos fazendo com que os novos servidores públicos percam o sentido de pertencimento e de identidade com sua categoria de trabalho e com os seus pares, elevando exponencialmente a carga de trabalho desses servidores, bem como o risco de acidentes de trabalho, de sofrimentos psíquicos e de assédios (morais, sexuais, psicológicos etc).
Tal PEC sobre a Reforma Administrativa também aumenta a possibilidade de processos seletivos simplificados com a diminuição exponencial de concursos para cargos efetivos. Dessa forma eleva-se a probabilidade do ingresso de pessoas com baixa qualificação profissional, bem como para cargos temporários.
Ela também jogou a responsabilidade para futuras Leis Complementares Federais que estruturarão normas gerais de: a) gestão de pessoas; b) política remuneratória e de benefícios; c) ocupação de cargos de liderança e assessoramento; d) organização da força de trabalho no serviço público; e) progressão e promoções funcionais; e) desenvolvimento e capacitação de servidores; f) e, duração máxima da jornada para acumulação de atividades remuneradas.
Por fim, o Presidente da República aumentará seu poder, já que através de decreto ele usufruirá: a) da organização e funcionamento da administração pública federal; b) da extinção de: 1) cargos públicos efetivos vagos; 2) cargos de Ministros de Estado, cargos em comissão, cargos de assessoramento e liderança, funções de confiança e gratificações de caráter não permanente, vagos ou ocupados.
Em síntese, tal PEC sobre a Reforma Administrativa no Brasil prejudicará substancialmente o oferecimento das políticas públicas sociais – emprego e renda, alimentação, assistência aos desamparados, proteção à maternidade e à infância, saúde, trabalho, lazer, moradia, educação, segurança e previdência social -, e interferirá na boa qualidade destas. Esta PEC precisa ser rejeitada integralmente através da mobilização conjunta das entidades dos servidores públicos federais, estaduais e municipais. Concomitantemente devemos explicitar para sociedade civil brasileira sua ideologia e seus malefícios para que fiquem do nosso lado nessa correlação de forças.
Antonio Marcos Alves de Oliveira é professor adjunto I da Universidade Federal do Agreste de Pernambuco (UFAPE). Membro do Grupo de Pesquisa Qualificação Profissional e Relações entre Trabalho e Educação da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Vice-coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisa sobre Psicanálise e Educação da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) e da UFAPE. Contato: [email protected].
[i] DINIZ, Eli. Governabilidade, democracia e reforma do Estado: os desafios da construção de uma nova ordem no Brasil dos anos 90. In: SZWAKO, José; MOURA, Rafael; D’AVILA FILHO, Paulo. Estado e Sociedade no Brasil: a obra de Renato Boschi e Eli Diniz. Rio de Janeiro: CNPq, FAPERJ, INCT/PPED, Ideia D, 2016. p. 47-69.
[ii] REZENDE, Flávio da Cunha. A Reforma do Estado em perspectiva comparada. In: BRASIL. Balanço da Reforma do Estado no Brasil: A Nova Gestão Pública. Brasília: MP, SEGES, 2002. p. 223-233.
[iii] Conferir nota “v”.
[iv] BLYTH, Mark. Austeridade: a história de uma ideia perigosa. São Paulo: Autonomia Literária, 2017.