Existe alternativa a esse modelo
É num cenário de vácuo político e de enfrentamento do crescimento das ideias e ações conservadoras que se dará a disputa. É numa conjuntura aguçada por crises, mas com tendência de aceleração das lutas sociais, em que se manifestam com força greves e protestos, que socialistas, democratas e progressistas devem se moverIvan Valente
Poucos meses após uma vitória apertada, a presidenta da República e o PT tomam decisões que levam o país a uma encruzilhada. A nomeação de ministros da área econômica, tendo Joaquim Levy à frente, com sua ortodoxia louvada pelos banqueiros e pela grande mídia; a indicação de Kátia Abreu na Agricultura, simbolizando a rendição ao agronegócio e à motosserra; e a composição de um ministério montado em grande parte à base da cooptação e do fisiologismo, para manter a maioria parlamentar e a governabilidade, são sinalizações de como o governo está acuado pela oposição de direita, que saiu fortalecida das urnas. Encurralado pelo discurso conservador da mídia e pelas pressões do capital financeiro, a sensação de estar no corner é agravada pela corrosão de sua credibilidade pelo escândalo de corrupção na Petrobras. Nessas condições, a lógica é romper compromissos de campanha, gerando cobrança de coerência dos que a elegeram. Se for para diminuir a pressão sobre o governo, será cumprida a agenda da candidatura derrotada.
Agora, com a piora das condições econômicas e numa correlação de forças muito mais complicada, a desmobilização da força social de mudança, efetuada já no governo Lula, vai resultar num preço alto. A opção do lulopetismo foi apostar numa política em que os ricos ganham muito e sempre, e os “de baixo” ganham também alguma coisa. Mas, como todos ganham, ninguém reclama. Por outro lado, garantia-se uma governabilidade sem participação popular, lastreada num presidencialismo de coalizão marcado pelo fisiologismo e pela corrupção.
Certamente essa fórmula funcionou baseada em pressupostos e situações conjunturais que não se repetem agora. Por isso, na prática, está esgotada – algo em que o governo e o petismo parecem não querer acreditar.
Um ciclo que caminha para o esgotamento
Quando o PT ganhou as eleições de 2002, já beijando a mão do mercado financeiro, trocou o projeto de reformas profundas contidas no Programa Democrático e Popular pela “Carta aos Brasileiros”. Havia ainda, entretanto, muita representatividade e confiança popular, “gordura para queimar” e segurar expectativas. Antonio Palloci na Fazenda e Levy no Tesouro puderam subir juros e seguir a cartilha exigida pelo FMI, dando continuidade à política de FHC.
Num contexto bastante diverso, a mesma política se mantém hoje com Dilma, assumindo como sagrado o tripé econômico superávit primário, regime de metas da inflação – com a única receita dos juros siderais e a consequente restrição de investimento produtivo, risco de recessão e aumento do desemprego – e câmbio flutuante, supervalorizado e em consonância com os juros altos.
Com a crise aguçada, recomeça a grita pela redução do custo Brasil – leia-se flexibilização das leis trabalhistas e mais terceirizações; maior abertura da economia, que resulta num processo continuado de desindustrialização; mais desregulamentação do fluxo de capitais; e maior dependência de exportação de bens primários. Tudo concorrendo para o aumento da dependência e maior vulnerabilidade da economia.
O modelo que possibilitou a incorporação de milhões de brasileiros no mercado de consumo, mesmo adiando políticas de redução drástica das desigualdades, foi, no entanto, levado a cabo numa conjuntura de condições internas e internacionais favoráveis que agora mostram certa fadiga.
Primeiro, porque a situação da economia mundial, particularmente nos países adquirentes de bens primários, sinaliza uma redução do crescimento. Em segundo lugar, esse modelo reprimarizador do país, adotado pelo agronegócio, extensivo e predador da natureza, vai mostrando seus efeitos perversos relacionados também à atual crise hídrica e energética. Terceiro, porque o próprio modelo de consumo gerou irracionalidades e limites, cujo exemplo simbólico é o incentivo ao transporte individual, que engorda o lucro de montadoras com milionárias isenções fiscais em detrimento do transporte público de massas, tornando explosiva a questão da mobilidade urbana. Em quarto lugar, o maior aperto fiscal exigido pelo mercado e por setores conservadores, atendidos por Dilma apesar do estelionato eleitoral, vai se materializar na redução do papel do Estado e em corte nos gastos públicos. Em nome do combate à inflação, veremos arrocho de salários, aumento do desemprego, menos investimentos no atendimento à saúde, moradia, educação etc. e redução de direitos sociais, trabalhistas e previdenciários, como visto nas recentes maldades perpetradas contra o seguro-desemprego, o auxílio-doença e o abono salarial.
Além disso, a ascensão de milhões de brasileiros a outros patamares de renda estimulou o consumo privado, mas não foi acompanhada da conquista de direitos sociais. A melhoria da capacidade de consumo tendeu muitas vezes a reproduzir padrões e valores de classe, inclusive éticos e comportamentais, mais conservadores. Em vez de exigir educação e saúde pública de qualidade, procuram-se com frequência, ilusoriamente, planos de saúde ou a escola privada como alternativa. As saídas são individuais, e não coletivas. O aumento do consumo levou também a novas demandas, exigências e descontentamentos. E o petismo sabe que perdeu parcela considerável desse eleitorado, que não deixa de ser popular.
Existe uma onda conservadora?
Certo avanço do pensamento conservador pode ser constatado em escala mundial. Na América Latina, prossegue o ataque do neoliberalismo e da grande mídia às iniciativas dos países que optaram pelo enfrentamento do imperialismo norte-americano, como Venezuela, Equador e Bolívia. Na Europa, o crescimento de partidos xenófobos, bastante agravado com os atentados na França, traz o centro do debate para a luta antiterrorista, com reforço à islamofobia, e acaba enevoando a discussão sobre o papel do capital financeiro e o poder concentrado de megaempresas, inclusive sobre a soberania dos países.
É inspirador o que vem acontecendo em países como Grécia e Espanha, onde o cansaço advindo da austeridade fiscal e a fadiga de partidos que tradicionalmente hegemonizam os rumos políticos têm levado ao aparecimento de novas propostas, com a viabilidade de chegar ao poder. É o caso do Syriza na Grécia, vencedor das eleições realizadas em 25 de janeiro, e do Podemos na Espanha, que mantêm amplos laços com os movimentos sociais e combatem a política da Troika (FMI, Banco Central Europeu e Comissão Europeia) de impor tenebrosos ajustes fiscais, com sacrifícios de milhões. Esses partidos, que crescem em popularidade e têm baixa rejeição, apavoram os mercados e se preparam para governar e enfrentar a resistência dos que capitaneiam a política neoliberal na Europa. Tanto na América Latina como na Europa é possível ver importantes espaços políticos que podem ser ocupados por projetos de esquerda.
Mas aqui no Brasil, por exemplo, o fato de o PT e aliados terem se deslocado para o centro e para a direita, frustrando expectativas de mudança e adotando aspectos cruciais da agenda de direita, levou o próprio PSDB para uma posição ainda mais reacionária. Já em 2013, as grandes manifestações, que começaram com uma marca de esquerda, contra o aumento das tarifas, e levaram ao desejo de ganhar as ruas contestando o poder constituído, também abarcaram ideologias de direita camufladas na luta contra a corrupção e os partidos. Setores conservadores ganharam gosto pelas ruas e, ativos nas redes sociais, mais tarde canalizaram energias para a candidatura tucana à Presidência.
Há que considerar ainda o crescimento do conservadorismo orgânico no Congresso Nacional. Bancadas temáticas, com pautas ultrarreacionárias, se fortaleceram: a ruralista, a da bala, a do fundamentalismo religioso. Querem aprovar a qualquer custo emendas constitucionais ou projetos que representam brutais retrocessos. É o caso da PEC n. 215, que acaba na prática com as terras indígenas; do PL que revoga o estatuto do desarmamento; do Estatuto da Família e do Nascituro. Essas bancadas têm atuação articulada, sinérgica e suprapartidária, e já têm candidato à Presidência da Câmara.
Seu reacionarismo e o de grande parte do Parlamento, porém, não se atêm apenas a essas temáticas. O predomínio do pensamento conservador está na aceitação da lógica da ortodoxia econômica relacionada à necessidade de corte de gastos públicos para os que mais precisam e na total concordância em entregar a banqueiros e rentistas R$ 910 bilhões do orçamento para pagar juros, amortizações e rolagem da dívida pública. Não à toa chegamos ao cúmulo de ter “movimentos” apoiados pela oposição de direita nas galerias exigindo o cumprimento da Lei de Responsabilidade Fiscal.
A falsa polarização
É preciso ressaltar, contudo, que há uma falsa polarização partidária (PT × PSDB), que se materializou de forma exacerbada nas últimas eleições, como se, para além da disputa de poder, houvesse diferenças estruturais de projetos, particularmente na macroeconomia. Não há. A governabilidade conservadora é outro ponto de encontro dessa polarização, em que o síndico muito disputado é o PMDB.
Mais duas questões merecem atenção na exacerbação da polarização partidária. A primeira é a significância que adquiriu o tema da corrupção na disputa política, num processo que vem desde o esquema do mensalão, agora potencializado pelo saque contra o patrimônio da Petrobras. Um escândalo de grandes proporções, que envolve praticamente todos os grandes partidos, mas encontra destaque no partido do governo e em sua base aliada, com maior força. A verdade é que o PT deu asas e recebeu o carimbo do envolvimento com a corrupção, o que resultou numa rejeição de parcela significativa do eleitorado, estendendo-se além das classes médias. Esse desgaste de um partido e um governo antes identificados como de esquerda deu musculatura ao conservadorismo, manifestado na agressividade retórica e no flerte da oposição de direita até com setores golpistas.
E aqui se coloca a segunda questão vital para nossa democracia: o papel político da chamada grande mídia, suas pautas prioritárias e seletivas. A supercobertura do tema da corrupção o traz para o centro da política sem, evidentemente, colocar o dedo na ferida da corrupção: a privatização da política por meio do financiamento privado das campanhas. Combate-se, na prática, uma profunda reforma política. O que se vê, então, é um governo encurralado, acovardado, atendendo à agenda conservadora e fugindo da real democratização dos meios de comunicação.
Por onde caminhar
É nesse cenário de enfrentamento do crescimento das ideias e ações conservadoras e, ao mesmo tempo, de vácuo político que se dará a disputa. É nessa conjuntura aguçada por crises, mas com tendência de aceleração das lutas sociais, em que se manifestam com força greves e protestos de rua, que socialistas, democratas e progressistas devem se mover e ocupar espaços à esquerda. Setores que têm compromisso com a mudança não podem deixar de apostar na mobilização popular contra a agenda conservadora, num movimento de baixo para cima, baseado numa plataforma mínima de mudanças.
Em relação ao conjunto de reivindicações unitárias, é preciso destacar um núcleo de questões urgentes e estratégicas e, ao mesmo tempo, capazes de galvanizar o interesse popular. Isso será feito com rigor e unidade nos instrumentos coletivos de ação. Mas fazemos aqui algumas considerações vitais para o sucesso dessa empreitada.
Em primeiro lugar, recolocar no centro da política a questão macroeconômica. Quebrar o consenso neoliberal. Não aceitar que 40% da arrecadação de impostos se destine a remunerar o capital financeiro. A questão da auditoria da dívida e sua renegociação precisa ganhar as ruas e os cartazes, na contraface da exigência de direitos sociais.
Outra questão é atacar a concentração de renda, que resulta na espetacular desigualdade social do país. Para isso, deve ter prioridade uma profunda reforma tributária, progressiva, taxando prioritariamente a propriedade e a riqueza, e não o consumo e a renda assalariada, como hoje. Aqui é preciso destacar a simbologia da taxação das grandes fortunas, por seu apelo e denúncia de que o Brasil é um dos países campeões de concentração de renda.
Também não haverá democracia de verdade sem a quebra do monopólio dos meios de comunicação, que produz o consenso dos “de cima” e pratica o pensamento único. O movimento social precisa assumir claramente a bandeira da democratização da mídia. Duas exigências devem ser o fim da propriedade cruzada dos meios de comunicação e o fim das outorgas de rádio e TV para políticos, como prevê o artigo 54 da Constituição.
Diante da péssima qualidade dos serviços públicos e do não atendimento de demandas básicas, também urge manifestar apoio ostensivo aos movimentos pelo direito constitucional à locomoção (tarifa zero) e à luta por moradia digna, não acoplada aos interesses de empreiteiras. Tampouco acreditamos em “pátria educadora” com salários indignos para o magistério e transferências brutais de recursos públicos para os grandes negócios da educação universitária. Nossa luta é pela defesa de uma escola pública, gratuita, de qualidade, universal e laica. O mesmo vale para a saúde pública.
O reacionarismo da proposta do agronegócio e seus aliados madeireiros e mineradoras impede a reforma agrária, aumenta a violência no campo e ataca os direitos indígenas e quilombolas. A virulência das propostas e ações da bancada ruralista também precisa ser denunciada. A reforma agrária caminha junto com a reforma urbana; a demarcação das terras indígenas, junto com a defesa do meio ambiente. A derrubada da PEC n. 215 e a reforma agrária devem ser encampadas pelas mobilizações.
Outra questão que não pode faltar é a defesa dos direitos humanos e a desmilitarização das polícias.
Por fim, a bandeira da ética na política não pode ficar nas mãos da direita e à mercê da manipulação da mídia. Os inúmeros casos de corrupção, do escândalo da Petrobras ao trensalão dos governos tucanos, devem ser apurados e punidos com rigor, com a responsabilização de corruptos e corruptores. Aqui é preciso atacar a raiz da corrupção, item central da reforma política, que só virá com pressão popular: o fim do financiamento privado de campanha. A centralidade dessa questão exige inclusive coerência dos lutadores pelo não recebimento de financiamento empresarial. Propomos que seja encampado imediatamente o #devolveGilmar, em referência à ADI da OAB, que bane o financiamento eleitoral por pessoa jurídica, já tem maioria no STF e segue protelada por Gilmar Mendes.
Uma plataforma plausível e incidente, que consiga dar corpo a movimentos políticos transformadores e à urgência da mobilização social, é o que deve dar sentido à construção da unidade das forças populares e lutadores sociais para forjar instrumentos coletivos. Uma frente de movimentos e organizações políticas deve cuidar de barrar o sectarismo e o isolacionismo de um lado, mas não dar trégua ou fazer concessões àqueles que, no governo e na oposição de direita, trabalham para dar fôlego ao projeto neoliberal e à governabilidade conservadora. Só assim será possível canalizar o descontentamento e a indignação com a injustiça e a desigualdade social e a desilusão com a política, impedindo um retrocesso ainda maior. O espaço à esquerda está colocado. É preciso ter capacidade para ocupá-lo.
Ivan Valente é Deputado federal (Psol-SP).