Faz sentido expandir o ensino à distância no Brasil?
Curva de crescimento do ensino à distância coincide com a massificação das empresas no setor educacional
A mecanização da indústria foi revolucionária quando se tem em conta que ela mudou o jeito de ser da sociedade, que deixou de ser rural rapidamente e transferiu o seu núcleo aos centros urbanos. Como tudo na vida, há prós e contras. De um lado, houve o aumento da produção com a padronização dos produtos, que se tornaram mais baratos. De outro, foram criados diversos problemas ainda hoje sem solução, como a exploração de mão de obra infantil. A ideia dessa introdução é demonstrar que os problemas devem ser vistos dentro de contextos e com a perspectiva de tempo (passado, presente e futuro) que eles exigem para se desenrolarem. É assim que se quer debater o EaD.
Nesse primeiro momento é importante fazer uma pergunta simples: o EaD atende ao interesse de quem? Para responder a isso é preciso pensar os fenômenos sociais numa escala temporal: nos últimos dois séculos, a educação superior no Brasil foi fundamentalmente sem fins econômicos, prestada ou por instituições de ensino superior estatais ou por fundações e associações privadas. Inclusive, a estruturação das universidades (e não apenas faculdades) nacionalmente aconteceu de modo tardio, pois enquanto esse tipo de entidade surgiu no Peru em 1551 e na Argentina em 1613, aqui só aconteceu na década 1920 (com a criação formal da URJ pelo Decreto n.º 14.343, atual Universidade Federal do Rio de Janeiro). No entanto, principalmente depois de 2005, a legislação passou a autorizar não apenas a criação de empresas educacionais, mas também a conversão de instituições de ensino superior (IES) sem fins econômicos nos mais diversos tipos de empreendimentos empresariais. Isso deu causa ao surgimento dos “grandes conglomerados empresariais educacionais”, também chamados de “big players educacionais”.
É interessante que essa circunstância coincide com o crescimento exponencial do ensino à distância. Isso impõe uma reflexão, notadamente se o modelo EaD é uma necessidade do país ou se é apenas um fator que facilita a obtenção de lucro? Antes de considerar a questão proposta acima é preciso compartilhar algumas percepções sobre experiências internacionais. Em Israel a educação é majoritariamente não empresarial e o governo contribui diretamente no custeio das IES subsidiando as mensalidades dos estudantes. Os Estados Unidos e a Austrália têm fortes programas de financiamentos estudantis, ainda que com metodologias diversas entre si. Nesses locais, normalmente, a educação superior tem um baixo nível de lucratividade direta, mas ainda assim enriquecem muito tais territórios como se verifica na questão do registro de patentes, nos quais Estados Unidos, Israel e Coreia do Sul são líderes com grandes retornos financeiros difusamente distribuídos no país. Aparentemente, nenhum deles colocou o EaD como uma de suas prioridades. No Brasil, no entanto, é possível verificar que a curva de crescimento do ensino a distância coincide com a massificação das empresas no setor educacional (iniciando a ascensão em 2006 e seguindo a tendência até hoje), conforme o Censo da Educação Superior 2022, divulgado este ano pelo Inep. Isso levou o número total de estudantes de graduação saltar de, aproximadamente, 4,5 milhões no ensino superior em 2005 para 9,5 milhões em 2022 (quase 45% desse total no ensino à distância). Esse crescimento veio também com expansão de cursos de R$ 99 e “Polos a Distância” com baixíssima estrutura.
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Após essa ampliação, tornou-se comum o contato com os egressos desses cursos e suas respectivas queixas de baixo aprendizado e ausência do desenvolvimento efetivo das habilidades necessárias ao exercício da profissão. Aparentemente, porém, serviram à consolidação do caráter empresarial e lucrativo da graduação superior, pois há indicadores que justificam que se conclua que tais cursos podem ter influenciado fortemente na consolidação dos quatro maiores conglomerados empresariais educacionais, que atualmente concentram 23% do total de matrículas do país.
Em contrapartida, as IES públicas têm destaque no âmbito da pesquisa (o que é justificável dado o investimento público/subsídio necessário à manutenção de linhas consistentes de mestrado e doutorado), as entidades sem fins econômicos têm visibilidade em pesquisas aplicadas, como é o caso da parceria entre a PUC RJ e a Petrobras, com a criação de tecnologias e patentes na área petroquímica; da PUC RS e seu instituto Cérebro; a relação entre a Unisinos e a “itt Chip” (semicondutores); a Universidade Presbiteriana Mackenzie e seu aclamado processo de incubação de empresas. No entanto, ao se analisar dados do Inep é possível pensar que os conglomerados empresariais educacionais destacam-se no ensino à distância (na ampla oferta que fazem desse tipo de serviço). Talvez essa seja a vocação dos big players, provavelmente em razão do maior retorno de lucro – e não há problemas com isso, desde que a qualidade do ensino seja preservada (o que, entretanto, não aparenta ocorrer atualmente).
Há pontos importantes que devem ser estudados: o curso de pedagogia presencial tem 171.700 matrículas no ensino presencial e 650.164 no EaD (ano base 2022), então o que justifica o Brasil estar com a média de matrículas em cursos de educação muito acima dos demais países da OCDE (enquanto as demais nações têm 7% do total de matrículas nesses cursos, nacionalmente a oferta é de 17,9%) e as crianças brasileiras estarem classificadas entre as piores do mundo no quesito de “habilidade de leitura” (ranking “Pirls”)? Por que os cursos EaD da rede de ensino superior pública têm uma proporção de um professor para cada 34 alunos e a rede privada possui uma razão de 1 professor para cada 171 estudantes? Qual motivo justifica 72,1% dos docentes formados cursarem o ensino à distância e não a educação presencial? Talvez a resposta esteja relacionada ao fato dessa modalidade de cursos (EaD) ter maior retorno financeiro imediato.
Diante disso, a medida tomada pelo Ministério da Educação ao abrir uma “Consulta Pública” sobre a expansão dos cursos EaD (prazo já encerrado) tem razão de ser, justifica-se. Os boatos (constantes em alguns jornais) de que seria proibida a oferta de dezesseis cursos nesse formato faz sentido, porque o setor de educação superior é de interesse nacional para qualquer país e a busca pelo lucro deve ser atrelada a esse paradigma. Porém, quem tem o poder para isso é o governo. Sobre a pergunta feita anteriormente, notadamente se o EaD é modelo necessário ao Brasil ou um facilitador de lucro, a resposta é complexa, porém o debate social não pode mais aguardar. Há muitos pontos a serem esclarecidos o quanto antes.
Hoje se convive com indícios de proporção entre o número de professores e estudantes muito defasada, a precarização da qualidade de ensino nessa modalidade e também da relação trabalhista dos docentes no ensino à distância (reprodução de aulas gravadas com cessão de direitos autorais, baixos salários e desvalorização de carreiras, entre outros itens), contudo a preocupação principal orbita os indícios de incapacidade do Ministério da Educação em realizar a supervisão desse tipo de serviço, em fiscalizar a oferta dos cursos EaD e o dos respectivos polos a distância. Nessa perspectiva, é preocupante pensar que foram autorizadas mais de 3 milhões de vagas no EaD que estão ociosas e que, se ocupadas, dificilmente serão fiscalizadas pela administração pública. São fartos os motivos que justificam que o poder público tenha um olhar conservador e utilize lupa nessa questão, inclusive para preservar todos os interesses nacionais e também os difusos e coletivos dos estudantes, dos professores e da sociedade em geral.
Dyogo Patriota é assessor jurídico da ABRUC.
Faz sentido sentido sim expandir o ead! Quando a pessoa tem vontade de aprender a modalidade não importa, ela vai para cima estuda, pesquisa e aprende.