Filosofia e Ciência: um antídoto contra o negacionismo e suas variantes
Além dos cuidados com a higiene, o uso de máscaras e o distanciamento físico, a vacinação em massa apresenta-se como a alternativa mais consistente e eficaz para combater não só a propagação do novo coronavírus, mas também de evitar seus efeitos mais drásticos em termos de saúde pública
Ao longo dos últimos doze meses nossa atenção tem se voltado, quase que exclusivamente, para a pandemia de Covid-19 que ainda atravessamos. Com reflexos talvez impensáveis em nossas vidas, seus efeitos escancaram nossas fragilidades, as desigualdades sociais e estruturais, além dos evidentes efeitos da apropriação e transformação que impomos ao meio ambiente. Em tempos de bravatas negacionistas – nos quais o terraplanismo e a disseminação de falsos e absurdos efeitos colaterais das vacinas são dois exemplos bem conhecidos – a ciência tomou o centro da cena nos mais diversos meios de comunicação e informação: jornais, revistas, telejornais e redes sociais. A solicitação da avaliação científica tornou-se uma tônica, conferindo à ciência e aos cientistas destaque incomum. É a partir do parecer científico que se tem engrossado o movimento contra a propagação de fake news, particularmente aquelas que, sem qualquer aparato crítico relevante e confiável, disseminam aqueles efeitos absurdos e fantasiosos das vacinas.
O lugar ocupado pela ciência nesse contexto é, sem dúvida, uma boa notícia. Contudo, pode ensejar uma compreensão pouco fundamentada sobre a ciência, dando margem, inclusive, a alguma espécie de dogmatismo. Decorre daí a importância da Filosofia e História da Ciência. Componentes de longa data de nossos currículos universitários, sua função não se esgota na exegese de autores, mas insere-se no contexto dos problemas epistemológicos e éticos suscitados pelo conhecimento científico – entendido no seu arco mais amplo possível. Para além desses currículos, é preciso que esses problemas se façam presentes na formação de estudantes da Educação Básica, o que exige um trabalho interdisciplinar acompanhado de estratégias e materiais didáticos adequados. A razão me parece dupla: de um lado, a imunização contra todas as variantes de negacionismo, de outro, promover um entendimento mais bem fundamentado sobre a boa ciência.
Via de regra, os noticiários sobre as vacinas contra Covid-19 estão repletos de termos que se referem a conceitos centrais quando tratamos de conhecimento científico. Dentre eles, os conceitos de teste e base empírica são, muito provavelmente, os mais utilizados para que se justifique não somente a confiança, mas também a crença nos resultados científicos. Não é incomum, nesses mesmos noticiários, depararmos com a manifestação de cientistas sobre algumas incertezas. Por exemplo, a incerteza de se saber se as vacinas atualmente disponíveis serão ou não eficazes contra futuras variantes do novo coronavírus. Tomadas conjuntamente, confiança e incerteza, propiciam um terreno fértil para promoção daquele entendimento mais fundamentado da ciência e, com ele, a defesa da eficiência do conhecimento científico envolvido com a produção de vacinas. E isto justamente porque a confiança está relacionada com “uma crença pragmática nos resultados da ciência”, tal como afirma Popper no primeiro capítulo do livro Conhecimento objetivo. Dedicado à sua solução do problema da indução, o autor nos lembra que nosso conhecimento do mundo é conjectural, caracteriza-se como um conjunto de hipóteses que, submetidas à crítica, devem ser capazes de obter resultados satisfatórios ao serem contrastadas com a evidência empírica a fim de serem admitidas. Nesse momento, suas palavras soam como uma boa dose de bom senso: “De um ponto de vista racional, não podemos ‘confiar’ em teoria alguma, pois nunca se mostrou nem se pode mostrar, que qualquer teoria é verdadeira”, afirma a certa altura daquele livro. Contudo, diz ainda, “podemos preferir, entretanto, como base de ação, a teoria mais bem testada” – o que significa que a escolha da teoria mais bem testada envolve, em certo sentido, a confiança que nela depositamos. Confiança pragmática, mas nem por isso irracional. Com base nesse critério podemos equacionar incerteza e confiança, quando tratamos das soluções propostas no campo científico.
É certo que as incertezas e controvérsias científicas são parte integrante do processo científico, mas como salienta Luciana Zaterka, em recente entrevista para a Anpof , “a saída para as incertezas e controvérsias da ciência se encontra na própria ciência.”. É a partir da “preferência pela teoria mais bem testada como base de ação” que chegamos a um tipo de confiança menos dogmática e, por isso mesmo mais esclarecida. Confiança diretamente envolvida com a solução enfatizada por Zaterka e, em certa medida, assentada no preceito cartesiano de evitar a precipitação e a presunção. Preceito que, como sabemos, articula-se com um dos objetivos centrais do Discurso do método & Ensaios, a saber, elaborar um método “para bem conduzir a própria razão e procurar a verdade nas ciências”.
A ação que ora se coloca tem impactos fundamentais para a contenção da pandemia. De fato, além dos cuidados com a higiene, o uso de máscaras e o distanciamento físico, a vacinação em massa apresenta-se como a alternativa mais consistente e eficaz para combater não só a propagação do novo coronavírus, mas também de evitar seus efeitos mais drásticos em termos de saúde pública. Alternativa devidamente amparada nas evidências empíricas, obtidas por testes conduzidos segundo o devido rigor científico. A crença em sua eficácia está, portanto, racionalmente fundamentada. Novamente, como nos lembra Popper: “uma crença pragmática nos resultados da ciência não é irracional, porque nada é mais ‘racional’ do que o método de discussão crítica, que é o método da ciência.”. Essa mesma racionalidade reforça o compromisso ético com a vacinação, pois nos permite defendê-la em virtude da segurança decorrente dos protocolos de teste científico, tendo em vista a previsão de seus efeitos colaterais.
O bom entendimento do que a ciência pode realizar nos conduz a um duplo efeito. De um lado, a firme rejeição de afirmações lunáticas, desprovidas de qualquer evidência consistente ou rigor metodológico. De outro, a compreensão lúcida daquilo que, por intermédio da discussão crítica, pode ser tomado como algo digno de confiança para nossas ações. É nesse sentido que o combate ao negacionismo ganha contornos muito próprios quando consideramos a tarefa que sempre nos coube, não só como filósofos e filósofas, mas também e principalmente como professoras e professores de Filosofia: formar nossos alunos e alunas por meio do rigor argumentativo e conceitual, tendo em vista a autonomia de pensamento e o compromisso ético e social. Desse modo, ao lado de estudos filosóficos sobre gênero, racismo e pensamento descolonial, emerge do atual contexto social em que vivemos a relevância de estudos voltados para a Filosofia, a História e a Sociologia da Ciência e da Tecnologia, os quais devem nutrir e fomentar nossa prática docente. Relevância que solicita um trabalho interdisciplinar, por meio das interfaces entre ensino de ciências e ensino de Filosofia. Se não nos cabe como filósofos e filósofas a árdua tarefa de desenvolver vacinas eficazes contra a Covid-19 e outras doenças, certamente nos cabe o papel de democratizar a compreensão mais ampla possível daquilo que nosso conhecimento é capaz de construir. Nossas aulas podem ser um poderoso antídoto contra o negacionismo e suas variantes mais perversas.
Paulo Tadeu da Silva, da Universidade Federal do ABC