Foucault virou neoliberal depois de tomar ácido?
Calma lá! A questão é bem mais complicada, como revela o provocativo novo livro de Mitchell Dean e Daniel Zamora
Um dos motivos da extraordinária influência que Foucault (1926-1984) exerce sobre as ciências humanas na atualidade é sua contribuição ao estudo do neoliberalismo. Suas considerações acerca do tema aparecem nas lições sobre “O nascimento da biopolítica”, ministradas em 1978 e 1979, porém publicadas somente em 2004. Desde então, elas vêm animando pesquisas sobre fenômenos diversos que vão da relação entre capitalismo e uso de drogas psiquiátricas até a ascensão de uma nova direita global. Na maioria destes casos, perspectivas de orientação foucaultiana são marcadamente críticas quanto às consequências do tsunami neoliberal que nos arrastou nas últimas décadas.

À luz (e na sombra) das catástrofes provocadas por tal tsunami, o livro “O último homem a tomar LSD: Foucault e o fim da revolução”, de Mitchell Dean e Daniel Zamora, revisita o contexto histórico, político e biográfico em que o autor francês se interessou pelo neoliberalismo, contexto que incluiu uma transformadora experiência com LSD na Califórnia em 1975. Polemicamente, os autores encontram nesse interesse de Foucault uma dose de simpatia pelo pensamento neoliberal cujas reverberações políticas, sobretudo no tocante à relação entre estado e desigualdade, parecem altamente problemáticas para uma política de esquerda hoje, já calejada por décadas de desmantelo “antiestatista” da social-democracia pelas revoluções neoliberais.
Dean e Zamora não são “dinossauros” de um marxismo que ignoraria os tantos modos pelos quais Foucault enriqueceu o pensamento de esquerda no século XX, muito menos moralistas histriônicos de orientação conservadora. Se a proposta do livro parece antipática aos tantos de nós que admiram Foucault, cabe admitir que ela não é perseguida como um panfleto denuncista, mas mediante uma investigação detalhada de textos e contextos que respeita as nuances da obra foucaultiana. Os autores examinam pacientemente as circunstâncias que levaram Foucault a insatisfazer-se com os “estatismos” disciplinares que dominavam a disputa ideológica na Guerra Fria e, daí, a ver no neoliberalismo um caminho experimental para uma “governamentalidade de esquerda”: uma esquerda que, rejeitando a via do “estatismo social”, incorporasse à sua agenda a defesa de práticas de “autogoverno” e o ataque ao “estado assistencialista como um gerador de dependência” (p.210).

A riqueza de detalhes contextuais, bem como o conhecimento seguro que Dean e Zamora possuem quanto aos múltiplos escritos de Foucault, garantem que a leitura deste livro seja instigante e valiosa mesmo para aqueles que não concordarão com suas conclusões. Para dar só um exemplo, foi com este livro que descobri com espanto que François Ewald, ex-assistente de Foucault e editor de suas palestras sobre “o nascimento da biopolítica”, veio a se tornar um dos principais representantes do “empreendedorismo antiassistencial” na academia e na sociedade francesas. Dito isso, autores como Wendy Brown, Christian Laval, Pierre Dardot e tantos outros estão aí para dar testemunho, em contrapeso a Ewald, da relevância continuada de Foucault para uma crítica de esquerda ao pensamento neoliberal. Se for verdade, como argumentam Dean e Zamora, que Foucault era bem mais simpático ao neoliberalismo do que os próprios críticos “neofoucaultianos” de tal sistema, pode-se ver no trabalho desses últimos uma homenagem post-mortem à rica versatilidade da obra de um autor que sempre se recusou a permanecer o mesmo.
Foucault afirmou que fazer o pensamento de Nietzsche “resmungar e protestar” era prestar um tributo a esse pensamento. Nesse sentido, a atenção crítica pela qual Dean e Zamora querem pensar com, contra e além de Foucault, com base na história de um presente já transformado pelo neoliberalismo e que o filósofo francês não viveu para testemunhar, não deixa de ser também um tributo ao seu espírito inquieto.
Gabriel Peters é Professor de Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e Editor do blog do Labemus.