Futebol, um jogo de azar: Ferreira Gullar ridicularizaria dialeto do futebol
Poeta maranhense transpôs para o esporte o influente paradigma de Mallarmé nas artes. No limite, a aleatoriedade invalida o novo linguajar dos especialistas na modalidade. Leia no novo artigo da série Entrementes: futebol, política e cultura popular
Todo jogo é de azar: e, de uma hora para outra, a nova linguagem dos cursos da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) para formação de técnicos é convertida em profunda inutilidade. O recém-fundado glossário a cifrar a modalidade, que há um século circulava na cultura popular do país, não tem mais serventia. Com isso, o esforço para transpor as expressões dos teóricos é carregada por cores de caricatura, humor involuntário dos doutos no esporte.
Externos, desequilibrantes ou não (seriam os mesmos que os extremas?); os terços final, inicial e médio; blocos baixo e alto; entre linhas ou entrelinhas; temporização; transição; atacantes terminais; sinapses; jogo apoiado; o portador da bola e a pressão com a qual convive, seja alta ou baixa; os verbos balançar, performar, pivotar – tudo é descartado. São acompanhados rumo ao nada pelos termos em inglês, a exemplo de box-to-box, pressing, rec-five, winger.
Foi Ferreira Gullar quem relacionou o futebol com essa aleatoriedade. No limite, a visão seria um escárnio contra os rompantes idiomáticos que prometeram reabilitar o futebol brasileiro no cenário internacional, mas como previsto não conseguiram superar a desigualdade econômica na comparação com o hemisfério norte, a desorganização dos principais torneios e a mentalidade estreita dos dirigentes. Se é o azar que define a vitória, a importação de dialetos incompreensíveis é vazia e alvo de chacota.
O autor maranhense incorpora na sua leitura de futebol um paradigma de vanguardas artísticas dos séculos XIX e XX: a de que nem a mais avançada e brilhante concepção de um autor seria capaz de abolir o acaso a que sua obra está suscetível. Essa percepção do poeta francês Stéphane Mallarmé surge a partir do jogo de dados. Ou seja, para o esporte, essas teorias expostas por treinadores e membros de comissões técnicas nunca seriam capazes de reduzir a zero o peso das contingências.
Gullar não era totalmente alheio ao futebol. Praticou a modalidade na infância, era torcedor do Vasco da Gama e acompanhou a carreira de seu pai em clubes de alto rendimento. Escreveu o poema “O Gol” a respeito do êxtase que comove as arquibancadas quando o placar é alterado e dedicou colunas na Folha de S.Paulo ao assunto, já nos anos 2000. Essa paisagem na qual o futebol é inserido está diretamente conectada ao seu ofício de crítico.
Além de poeta, o escritor maranhense assinou trabalhos no teatro, na canção popular, na televisão e principalmente em jornais. Foram as publicações na imprensa que incentivaram o acesso aos artistas plásticos e, por conseguinte, a formação de um circuito que delegaria a Gullar seus textos teóricos. Embora fossem os escultores e os pintores que testassem as fronteiras entre forma e espaço, o autor foi o responsável por manifestos dos neoconcretistas e sobre a ideia de não objeto.
Resultado do convívio e da contemplação perante gente como Hélio Oiticica, Lygia Clark e Lygia Pape, a crítica nunca pretendeu antecipar tendências ou apresentar os modelos que os artistas precisavam seguir para atingir um almejado avanço. As análises das artes plásticas tinham como objetivo descrever as recentes criações. Ao menos era isso que o poeta declarava em entrevistas. De certa maneira, essa esquiva de parâmetros fixos confere espaço para o imprevisto, para o jogo de azar.
Nos veículos de comunicação, o poeta se debruçou sobre vários assuntos, do já mencionado futebol à política. Nos textos sobre as disputas de poder em Brasília se notabilizou, no novo milênio, pelo antipetismo. A militância no Partido Comunista parecia muito distante dos últimos anos de vida, marcados pela oposição acirrada à figura do presidente Lula, durante seus dois mandatos iniciais, e pela defesa da derrubada da presidenta Dilma Rousseff, em 2016.
Em perspectiva, a consciência social do Centro Popular de Cultura (CPC) também é relativizada. Esse núcleo da União Nacional dos Estudantes (UNE) foi capitaneado por artistas e intelectuais de classe média, como o próprio Gullar. Na tensão que antecedeu o golpe de 1964, o CPC se propôs a realizar a conexão direta com o povo, mas esbarrou no elitismo de seus participantes, na idealização do campo, das cidades brasileiras e na simplificação das manifestações artísticas.
Os desvios não fazem com que todas as suas reflexões sejam, de partida, eliminadas. Pensar o futebol como jogo de azar, por exemplo, é uma ousadia. Inicialmente, por colocar em questão conhecimentos que perduram por décadas e serviram para sustentar projetos de país distintos – por vezes, antagônicos. Em seguida, por reacender uma intuição que os torcedores têm em alguma medida: o grau de aleatoriedade do esporte, em diversos momentos, supera estratégias ensaiadas durante meses.
Gullar menciona um lance em especial: no escanteio, mesmo para os times mais preparados defensivamente, o lançamento na área coloca muito em risco a meta protegida pelo goleiro. O controle de bola com a cabeça é delicado e até para distanciá-la do próprio gol os zagueiros têm mais dificuldade. Em contrapartida, para os ataques menos habilidosos, a jogada é uma oportunidade única de demonstrar quão arbitrária é a modalidade mais popular no Brasil.
Em vez de constatar a dimensão surpreendente do futebol ou traduzir pelo menos os movimentos no gramado, técnicos e intérpretes da cobertura esportiva preferem se diferenciar da coloquialidade com dialetos herméticos. Em vão: o esporte é o mesmo, propenso ao fascínio que motivou Gullar até os últimos livros – o próprio escritor reconhecia no espanto a força motriz que proporcionava a sua obra poética. Os convertidos ao novo idioma recaem, assim, no absurdo.
Enredo estranho tecido pelo poeta, que identifica os resultados do futebol aos lances de sorte – essa associação lança luz sobre semelhanças da modalidade com o jogo do bicho, cujos líderes em tantos sentidos se aproveitaram da abrangência das competições profissionais e de seus principais nomes. Vem à tona igualmente o encantamento provocado pelos placares aleatórios e pela maior possibilidade de derrotas em campo de times favoritos, com ou sem bons desempenhos.
Helcio Herbert Neto é doutor em História Comparada (UFRJ), mestre em Comunicação (UFF), formado em Jornalismo (UFRJ) e em Filosofia (UERJ).