Future-se leva adiante política de supressão da autonomia universitária
A política que preconiza que a educação é uma área a ser convertida em locus da difusão do fundamentalismo ideológico anti-iluminista, antissecularista e claramente irracionalista está fortemente enraizada nas prioridades do governo Bolsonaro
As indicações para reflexão, debate e ação aqui sistematizadas complementam dois outros textos do autor, respectivamente relativos à primeira e à segunda versões do Future-se. O presente balanço examina, de modo mais específico, a terceira versão divulgada em 3 de janeiro de 2020, mas não se restringe a ela, pois busca analisar as nervuras essenciais das três versões. Como defendido no texto, a última versão do MEC, o Future-se 3 (F3), não difere substancialmente das anteriores; o subtítulo deste texto poderia ser o mesmo da análise da segunda versão: “o DNA neoliberal, expresso em contrato de gestão, define a nova versão”.
O primeiro texto examina os fundamentos do projeto, especialmente um de seus pilares centrais, a saber, a crença de que existe forte demanda por inovação por parte das empresas, o que poderia carrear muitos recursos para as universidades, caso estas adotassem um ethos empreendedor. Como o MEC pressupõe que as instituições universitárias irão resistir à refuncionalização, o Future-se 1 (F1) estabeleceu uma série de medidas heterônomas para induzir as mudanças organizacionais necessárias para convertê-las em universidades empreendedoras (e distantes dos valores iluministas) – organizações sociais (OSs), contratos de gestão, fundos de investimentos subordinados às OSs, sociedades de propósito específico etc. Isso não mudou nas demais versões.
O primeiro artigo sistematizou indicadores que refutam a premissa central da demanda por inovação dos setores produtivos e defendeu que o segredo do Future-se é a apropriação do patrimônio das instituições: o Future-se retiraria o patrimônio das federais, transferindo-o para as OSs e para os Fundos a fim de serem capitalizados no mercado financeiro ou, mesmo, alienados para captação direta de recursos. Os resultados assim obtidos teriam de ser aplicados em conformidade com os objetivos particularistas do Future-se.
O segundo artigo demonstra que, em virtude das críticas generalizadas, o MEC reposicionou as organizações sociais, deslocando o contrato de gestão e o controle do patrimônio das universidades para o guarda-chuva do MEC (nada a ver com a performance de Weintraub!). Na segunda versão (F2), o fundamental foi preservado: a subordinação das prioridades da instituição aderente aos ditames do Future-se e, consequentemente, a alavancagem da refuncionalização das universidades permanece impulsionada por OSs lastreadas pelo patrimônio das instituições, resultando na perda de autonomia. O governo Bolsonaro, no contexto de sua pretendida guerra cultural e de combate ao idealizado marxismo cultural, reafirmou a crença de que as mudanças rumo à universidade empreendedora somente serão possíveis por medidas tutelares para minar a autonomia universitária.
O esvaziamento das prerrogativas de autonomia da universidade é realizado com método. O Future-se cria enclaves de mercado no interior das instituições por intermédio de “contratos de desempenho”, do Fundo Soberano do Conhecimento e do Fundo patrimonial do Future-se. Com a bem-sucedida redução orçamentária das universidades federais, um resultado da Emenda Constitucional no 95/2016, as instituições seriam constrangidas economicamente a “empreender” negócios em áreas atraentes para o capital e deixar à mingua (por falta de orçamento) os projetos de extensão, as humanidades, as ciências básicas e a assistência estudantil. Os corolários disso são a hipertrofia da razão utilitarista com o abandono progressivo da ética na produção do conhecimento e tectônicos retrocessos no processo de democratização das universidades e institutos federais: a assistência estudantil é, de fato, um alvo muito fundamental para o governo – descapitalizada, contribuiria para debilitar as cotas que, na ótica governamental, alimentam o “coitadismo”, e, sobretudo, para afastar os estudantes pobres que, no futuro, atrapalhariam o pretendido fim da gratuidade, objetivo sistematicamente acalentado pelo ministro da Economia Paulo Guedes, ecoando os organismos internacionais.
A despeito do F2 incluir as fundações de apoio das universidades em seus circuitos, os supostos novos recursos seguiriam sob controle externo e fora do âmbito da autonomia de gestão financeira e patrimonial das federais. Claramente, uma lei menor mudaria o teor da Constituição. A verdade é que o governo não permitiu dúvidas sobre o teor do projeto, pois, ao mesmo tempo em que divulgou o F2, enviou ao Congresso uma proposta orçamentária que derrete o orçamento das universidades, do CNPq e da Capes, cujo orçamento foi reduzido à metade em 2020. E, uns dias depois, efetivou novas medidas ofensivas à autonomia, inclusive por medida provisória, como pode ser visto a seguir.
A leitura do excelente dossiê organizado pelo grupo de pesquisa de Graça Druck, professora da UFBA, permite uma visão geral das multifacetadas e generalizadas críticas ao Future-se. Estranhamente, o MEC contabiliza o interesse de 25 universidades federais no programa (O Globo, 3 fev. 2020, p.18). O mapeamento do posicionamento das federais mostra outro quadro: excetuando os reitores nomeados de modo ilegítimo, a avaliação generalizada é de que as duas primeiras versões comprometem de modo estrutural o futuro das universidades públicas. Entretanto, poucas se manifestaram de modo explícito sobre a terceira versão do Future-se (F3). Alguns reitores/as chegaram a expressar a avaliação de que a última versão é inócua e não precisa ser combatida. Este artigo argumenta que isso é um grave equívoco.
Terceira versão do Future-se mantem o fulcro do projeto antiuniversitário
A informação de que o F3 estava aberto à consulta foi propagada por massiva – e custosa – campanha publicitária. Denominado “projeto de lei que institui o Programa Universidades e Institutos Empreendedores e Inovadores – Future-se”, foi submetido à consulta pública nos termos do Art. 41 do Decreto n 9.191/2017, até o dia 24 de janeiro de 2020. O ministro Weintraub e seu secretário do Ensino Superior, Arnaldo Lima – que, significativamente, já não se encontra no cargo – buscaram apresentar o projeto como uma versão atenuada, na qual os pontos polêmicos teriam sido retirados do texto.
Contudo, uma mirada geral do texto, conforme agudamente apontado por João Carlos Salles, reitor da UFBA e presidente da Andifes, permite concluir que a autonomia segue sendo desconsiderada; a rigor, todo o teor do Artigo 207 da Carta está sendo brutalmente aviltado: os principais pilares das versões anteriores permanecem estruturando a proposta do F3.
Não custa repetir, é um erro metodológico de amazônicas proporções examinar o teor de um projeto de lei como se o mesmo não estivesse em relação com outras iniciativas legais, econômicas e políticas. É importante lembrar que, no contexto de sua publicação no Diário Oficial em 3 de janeiro do corrente ano, novas medidas hostis à autonomia foram efetivadas: o texto da MP 914 que dispõe sobre o fim da autonomia no processo de escolha de reitores, a Portaria nº 2.227 que cerceia a participação de servidores das universidades em congressos e eventos e a PEC nº 186/2019 que revoga os fundos que asseguram os recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), a principal fonte de recursos de pesquisa para a Finep e para o CNPq. Mais claro, impossível.
O F3 é parte de um largo espectro de medidas em aberto confronto com a ciência, a tecnologia e a cultura. Por isso, muitos setores da comunidade acadêmica encontram-se apreensivos com o “processamento das sugestões” (apresentadas no período da consulta) pela Casa Civil e pelo MEC weintraubiano. Por que a apreensão com a consolidação das sugestões é plenamente justificada?
As formas virtuais de consulta são peculiares. Todas as pessoas familiarizadas com o processo de elaboração de leis sabem que a relatoria define, em grande parte, o teor dos projetos a serem votados. As sugestões equiparam antidemocraticamente indivíduos, entidades representativas do campo acadêmico e instituições. Cada sujeito apresenta sua contribuição sem que a mesma possa ser conhecida pela sociedade. Somente a Casa Civil e o MEC terão acesso ao conjunto das contribuições e, nos termos do Decreto 9.191/2017, farão o seu “processamento” na forma de uma nova versão que, efetivamente, deve ser encaminhada ao Congresso Nacional.
Não pode parecer natural que o destino das instituições universitárias e dos institutos federais de educação tecnológica dependam de sugestões que serão ‘processadas’ pela desidratada e desmembrada Casa Civil, sabe-se lá sob a efetiva direção de quem, sem a apreciação da comunidade universitária que, afinal, deveria ser a voz decisiva do processo. Ademais, as conexões e afinidades de Onyx Lorenzoni com o ideólogo Olavo de Carvalho permitem aduzir a linha de ação da Casa Civil sobre o tema. Vale lembrar que o ministro da Educação foi auxiliar de Onyx na Casa Civil e é um devoto do ideólogo.
Sobre o agir do ministro, é justo reconhecer sua capacidade de formar ao menos um consenso: após o clamor nacional pela saída do ex-Secretário Nacional de Cultura, Weintraub tem se destacado pelo impressionante consenso sobre a necessidade de seu afastamento do cargo. Por motivos muito diferentes, um largo espectro de forças políticas – do Todos pela Educação à UNE, do DEM e do Centrão aos partidos de esquerda, dos grandes grupos de comunicação aos blogs da esquerda, todos, todas, exortam a substituição do atual ministro.
É de se imaginar, com calafrios, como o referido “processamento” do novo texto do Future-se pode acontecer no âmbito da Casa Civil, em profunda crise, imbuída da missão de conduzir uma guerra cultural junto com um MEC também em crise. A política que preconiza que a educação é uma área a ser convertida em locus da difusão do fundamentalismo ideológico anti-iluminista, antissecularista e claramente irracionalista está fortemente enraizada nas prioridades do governo Bolsonaro. Recentemente, ganhou novos contornos com a incorporação de um entusiasta da doutrina esotérica do “design inteligente”, design que serve de invólucro para o persistente criacionismo, ao comando da Capes. Esse órgão do MEC é o principal aparato de fomento à pós-graduação e de apoio à formação de professores. Como não estabelecer conexões entre o relexicalizado “contrato de resultado” do F3 (Art. 5 e 6) com a subordinação das prioridades da Capes ao “objeto do contrato” – assegurando “concessão, preferencial, de bolsas da Capes ao programa Future-se” (F3, § 2º, Art. 6).
Não revela boa fé, por conseguinte, afirmar que o F3 é uma “vacina inativada” (frente às versões 1 e 2) sem poder destrutivo. O fulcro permanece. Refuncionaliza as universidades como organizações de serviços de empreendedorismo temperado pelo capitalismo dependente e permite a alocação do patrimônio da instituição em fundos de investimentos enredados em impressionante aparato de controle encabeçado pelo MEC e pela área econômica (Art. 28). O novidadeiro contrato de resultado (Art.8), conforme o Art. 11, é monitorado pelo MEC, por meio de norma sobre o sistema de governança também da lavra governamental e dirigido por comitê gestor (Art. 9) cuja composição isola as vozes das universidades. A supremacia das organizações sociais – e de seus contratos de gestão (Art.14 e 17) – desidrata a relevância dos conselhos deliberativos das instituições. É revelador que o projeto afirme que o Future-Se irá cumprir os dispositivos constitucionais (Art.2), como se houvesse a possibilidade do não cumprimento.
Os contratos de gestão seguem presentes no F3 para a subordinação da vida universitária às organizações sociais (Seção II, Art. 17, Art. 29). Os indicadores de desempenho que balizam o contrato de gestão/contrato de resultado possuem a gramática do mercado que reconfigura o fazer universitário, em detrimento de suas funções sociais comprometidas com os problemas dos povos e com os desafios epistemológicos e teóricos da produção do conhecimento novo. Tampouco no F3 as OSs (e as Sociedades de Propósito Específico) estão situadas no escopo da autonomia universitária; ao contrário, objetivam até abrir caminho para a contratação de pessoal pelo regime privado (Art. 25), desconstituindo o Regime Jurídico Único, via que o governo pretende instaurar generalizadamente na reforma administrativa (PEC no 187/2019), investida que conta com o empenho destrutivo do ministro Guedes; em defesa da contrarreforma, qualificou os servidores como parasitas que estão matando o hospedeiro, a saber, o governo (sic!). O inteiro teor do projeto objetiva direcionar o fazer universitário para o dito empreendedorismo e para a dita inovação, objetivos que, no contexto, são distópicos e prescindem da ciência, da arte e da cultura.
Não menos importante, todas as versões do Future-se criam cunhas para a mercantilização e o comércio transfronteiriço de educação. As alterações na LDB efetivadas pelo F3 (Art. 30) possibilitam que as universidades privadas tenham a prerrogativa, atualmente exclusiva das instituições públicas, de reconhecimento dos diplomas estrangeiros – graduação e pós-graduação stricto sensu. A permissão para que o setor privado reconheça diplomas estrangeiros atende às reivindicações das corporações que atuam na área educacional ávidas por legalizar a formação de consórcios com suas matrizes e associadas no mundo, abrindo o mercado educacional brasileiro, ainda mais profundamente, aos interesses das corporações educacionais mundializadas.
Pelos motivos apresentados, os defensores da crença de que o F3 é uma versão atenuada, pois apenas reitera o que já está previsto em Lei, podem não estar apreendendo as nervuras centrais do Projeto. De fato, tomando como referência o Art. 1, é fato que todos os objetivos elencados já possuem normas legais que, embora necessitem ajustes e correções, permitem contratos, projetos de interesse comum, pesquisas aplicadas e interações sistemáticas da universidade com a área de pesquisa e desenvolvimento, inclusive de empresas. Porém, como assinalado, o F3 tem outro objetivo estratégico.
O Future-se é uma ferramenta para o ajuste ultraneoliberal e para o fundamentalismo
O escopo e os objetivos nada têm a ver com programas que possibilitem superar desafios tecnológicos necessários à soberania do país e ao desenvolvimento complexo de cadeias produtivas de bens e serviços a partir de novos prismas para o aprimoramento das forças produtivas, em perspectivas ecológica, socioambiental e criadora. Tampouco estão comprometidas com relações de produção baseadas no reconhecimento da dignidade dos seres humanos que vivem do próprio trabalho e são explorados.
A política econômica do país, com a EC no 95/2016, a abertura de mineração em territórios indígenas, a privatização dos recursos hídricos, o desmembramento da Petrobras, o incentivo ao desmatamento na região amazônica para a expansão dos rebanhos, a venda da Embraer, e a desconstituição dos órgãos do Estado que incorporam conhecimento científico, nada disso corrobora um projeto de nação soberana e que almeja assegurar o bem-viver para toda gente. O propósito, como assinalado desde a primeira versão do Future-se, é a refuncionalização das universidades e institutos para que possam ser ajustados ao padrão de acumulação do capital encaminhado pelo ministro Guedes, em sintonia com o núcleo hegemônico do capital, objetivo incompatível com universidades públicas vivazes e pulsantes.
Tão importante quanto lutar pela nomeação de um ministro da Educação que, realmente, tenha uma disposição construtiva em relação à educação e, particularmente, à educação pública é interromper a ofensiva fundamentalista em curso na educação, na ciência e na cultura. E esse objetivo exige a rejeição imediata do Future-se e a afirmação do método democrático de discussão dos projetos de lei relativos às áreas citadas. Ameaças como as políticas de vouchers, a PEC 188/2019 que propõe o fim da vinculação dos recursos financeiros da educação e da saúde, previstos na Constituição, a interrupção de concursos públicos para o preenchimento de cargos no serviço público, as agressões irracionalistas ao fazer científico-cultural, o cerceamento da liberdade de cátedra e de pensamento, o estrangulamento do orçamento das universidades e dos órgãos de ciência e tecnologia, e as restrições às políticas de assistência estudantil somente serão revertidas, de modo categórico, com amplas mobilizações sociais. O chamado à frente de luta em prol do público segue, por isso, urgente.
Roberto Leher é professor titular da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRJ.