G20 deve acabar com a “terceirização” do multilateralismo
Os países desenvolvidos são os principais responsáveis por essa crise moldada historicamente
De várias maneiras, o multilateralismo, ou o esforço da comunidade internacional para promover o bem global, está sendo desafiado atualmente. Os ‘conflitos’, especialmente os que acontecem em Gaza, são um desafio evidente. No entanto, há também uma subversão silenciosa do multilateralismo em andamento no campo econômico, que precisa ser interrompida e revertida. Trata-se da visão de que o ‘desafio do financiamento para o desenvolvimento’ é tão grande e a participação do setor privado na detenção e no uso dos superávits financeiros globais é tão significativa que apenas a iniciativa privada pode implementar com sucesso os programas necessários para alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e enfrentar a mudança climática.
A consequência disso é que o papel dos governos não é mais tentar transferir os superávits do setor privado para o setor público (por meio de novas formas de cooperação tributária internacional, por exemplo), mas usar os recursos públicos disponíveis para desbloquear investimentos e gastos privados. A proposta é ir além de reconhecer que a realização dos ODS, a garantia da transição para o carbono necessária e a construção de resiliência em todo o mundo são responsabilidades primárias dos governos ou “públicas”, para enfatizar que a cooperação entre os governos (ou o multilateralismo) é o melhor meio para implementar essas tarefas. O pragmatismo exige, argumenta-se, que essas tarefas e, portanto, o multilateralismo, sejam “terceirizados”.
Em nenhum lugar essa visão é expressa de maneira mais clara do que no campo do financiamento para o desenvolvimento sustentável. Um requisito fundamental do multilateralismo na esfera econômica é a necessidade de transferir recursos dos países ricos e desenvolvidos para os países menos desenvolvidos, a fim de financiar a mitigação, a adaptação e a compensação por perdas e danos, e para viabilizar os enormes gastos necessários para concretizar os ODS como fundamento da luta pela paz. A magnitude dessa demanda aparece, por exemplo, no valor, reivindicado na cúpula da COP29, em Baku, de US$ 1,3 trilhão por ano até 2030, de financiamento necessário para os países menos desenvolvidos, que deve fluir dos governos dos países desenvolvidos, principalmente na forma de subsídios e financiamentos concessionais.
O caso dos fluxos de recursos dos países desenvolvidos para os menos desenvolvidos já é bem conhecido e amplamente apoiado. Devido à contribuição historicamente desproporcional dos países de alta renda para as emissões de carbono globais e ao princípio aceito no Acordo de Paris de “responsabilidades comuns, porém diferenciadas, e capacidades respectivas”, esses países devem assumir a maior parte da responsabilidade para financiar a transição para uma economia de baixo carbono, necessária para alcançar a meta de manter o aquecimento global abaixo do teto de 1,5°C ou 2,0°C.
Além disso, uma vez que esses gastos, na maioria das áreas, provavelmente não gerarão retornos monetários significativos, mas entregarão grandes benefícios sociais, o empréstimo com juros não pode ser uma forma viável de financiamento. Daí a necessidade de que esses recursos venham de fluxos públicos, na forma de subsídios ou empréstimos concessionais, que em grande parte sejam equivalentes a subsídios. Essa exigência também se aplica às necessidades de financiamento para os ODS. Em ambos os casos — financiamento climático e para os ODS —, as necessidades dos países menos desenvolvidos, muitos dos quais estão endividados ou já deixaram de pagar suas dívidas externas, são tão grandes que não se pode esperar que eles levantem os recursos necessários internamente.
O empréstimo não é uma opção. Esses países já estão em uma posição em que os déficits crônicos na balança de pagamentos tornaram impossível suportar o peso da dívida externa, levando à inadimplência em muitos casos. Eles podem contrair empréstimos internamente mais facilmente; no entanto, a isenção fiscal para incentivar o investimento privado pode resultar em uma grande e crescente fatura de juros, que retira recursos de despesas necessárias para a proteção social. Na verdade, a responsabilidade da comunidade internacional não se limita a fornecer novos recursos para enfrentar a crise que aflige o planeta, e também anula parte dos fundos concedidos anteriormente como crédito, sobre os quais já foram obtidos retornos substanciais, para proporcionar a tão necessária margem de manobra fiscal aos governos dos países de menor renda.
As tarefas impostas por esses problemas, que exigem respostas urgentes, devem ser assumidas pelos governos, especialmente dos países desenvolvidos, que têm a principal responsabilidade por essa crise moldada historicamente. Os benefícios sociais de se resolver essas questões são imensos e globais — os países de alta renda também seriam beneficiados, não apenas os de menor renda, como o secretário-geral da ONU, António Guterres, reiterou. O retorno financeiro para o setor privado é muito baixo e, em alguns casos, os riscos são altos demais para que este assuma as responsabilidades, a menos que o faça como mero executor contratado pelo governo para uma tarefa, em troca de pagamento. Mas mesmo esse tipo de divisão de responsabilidades entre o Estado e o setor privado provavelmente não funcionará, porque os incentivos de ambos são incompatíveis. Os governos querem benefícios sociais para o bem público; o setor privado quer lucros para impulsionar a agenda de acumulação corporativa.
O momento é propício para uma ação pública agressiva. Superávits foram acumulados pelo grande capital nos últimos 25 anos (ou mais) e a desigualdade aumentou a níveis sem precedentes desde a Segunda Guerra Mundial, de modo que obter recursos por meio de ações coordenadas internacionalmente para taxar o setor privado pode gerar, com pouco esforço, grande parte dos recursos necessários. O multilateralismo tem um papel a desempenhar na mobilização de capital e não apenas na implementação da agenda.
É neste momento de desafios e oportunidades que os países desenvolvidos, citando seus próprios “problemas internos”, estão se retirando de um esforço global de financiamento muito necessário. As negociações sobre financiamento climático são um exemplo disso. Em contrapartida, estão apresentando um argumento para terceirizar o que é claramente uma responsabilidade dos governos para o setor privado. O G20, como grupo dos atores globais mais influentes, deve abandonar esse esforço de “terceirizar” o multilateralismo.
* A International Development Economics Associates (IDEAs) participou do T20, grupo de engajamento dos think thanks do G20, nas forças tarefas de Reforma da Arquitetura Financeira Internacional.
CP Chandrasekhar é o chefe global de Pesquisa e Política da International Development Economics Associates (IDEAs), economista baseado em Nova Déli, foi um professor de economia na Jawaharlal Nehru University, é colunista do Frontline, Business Line e do Economic and Political Weekly e entre suas publicações recentes está o livro Desmonetização Decodificada: Uma Crítica ao Experimento Monetário da Índia.
Charles A. Abugre é economista de desenvolvimento ganês e diretor executivo da International Development Economics Associates (IDEAs), colaborador regular do African Governance Report e do African Economic Report publicados pela Comissão Econômica das Nações Unidas para a África, foi um alto funcionário público do Governo de Gana, diretor regional da Campanha do Milênio das Nações Unidas (PNUD), chefe de pesquisa e política na Christian Aid UK e palestrante na Swansea University, Reino Unido e atua como diretor não executivo da Tax Justice Network, entre outros.