Guerra às drogas: uma conta de R$ 15 bilhões ao ano
Senado sequer cogita a relação entre nossa política de drogas falida e a grave crise carcerária que vive o Brasil
Como já era esperado, o Supremo Tribunal Federal tem recebido diversas críticas pelo julgamento do RE 635.659, caso que debate a inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas, que pune o porte pessoal de drogas.
O Senado, em contrapartida, em declarada reação ao julgamento pelo STF, está levando adiante a votação da PEC 45/2023, que busca incluir no artigo 5º da Constituição Federal uma medida para criminalizar a posse e porte de todos os tipos de drogas.
A proposição da PEC 45/2023 é uma clara tentativa de retirar do Supremo a legitimidade para julgar os pontos demandados no RE 635.659. Por meio disso, acena o Senado que não se importa com um debate mais inteligente acerca da atual política de drogas. O Brasil, como parece ignorar o Senado, é o terceiro país com a maior população carcerária do mundo, sendo a Lei de Drogas, segundo a USP, a maior responsável pelo encarceramento em massa da população negra – que totaliza 68% dos presos.
Além disso, segundo estudo do Ipea, a guerra às drogas custa R$ 15 bilhões ao ano para os cofres públicos. Isso sem falar na indiscutível violência gerada e retroalimentada por essa guerra sem fim.

Entretanto, parece que o Senado não enxerga esse lado nefasto da guerra às drogas. O parecer do Relator Senador da PEC 45/2023, Efraim Neto, em verdadeira retórica extenuada, menciona vagamente que não haveria tráfico ilícito de entorpecentes sem o usuário, buscando reforçar a tentativa de punição dos usuários.
“Não há tráfico ilícito de entorpecentes sem usuários para adquiri-los, e, por esse motivo, deve-se combater, também, a conduta de quem possuir ou portar drogas, ainda que para consumo pessoal. É a compra do entorpecente que alimenta o tráfico dessa substância, o que acaba por financiar o crime organizado e a violência inerente a essa criminalidade.”
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Essa PEC revela que o Senado sequer cogita a relação entre nossa política de drogas falida e a grave crise carcerária que vive o Brasil. Não se importam também com o fato de que o nosso país gasta quatro vezes mais com o sistema prisional em comparação com a educação básica. Em defesa cega à Lei de Drogas, o relatório apresentado pelo senador, inclusive, traz dados que contradizem a retórica proibicionista e comprovam a ineficiência da política de drogas do Brasil e no mundo.
Há uma contradição entre a perspectiva oferecida no relatório que propõe o endurecimento e ampliação do proibicionismo penal no Brasil e a realidade que organismos internacionais vêm apontando desde 2019, em direção ao fim da guerra global contra às drogas, e um enfoque em saúde e em uma abordagem focada nos direitos humanos, como apontou o último relatório do ACNUDH (Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos). Esse enfoque antes rechaçado, ou restrito aos movimentos sociais, agora adentra os salões da ONU e busca a centralidade no consumidor, na redução de danos e riscos e em fundamentos científicos.
O parecer menciona que o Relatório Mundial sobre Drogas – 2023 da ONU estimou que 296 milhões de pessoas usaram drogas em 2021, o que significa 23% a mais do que há dez anos. Se a guerra contra as drogas tivesse, de fato, funcionado durante esse período, o número evidentemente não teria crescido, diminuiria. A experiência brasileira e internacional demonstra que a violência estatal aplicada cegamente na luta às drogas pouco funcionou, tendo efeito contrário: lotou presídios, condenou usuários como se fossem traficantes e queimou dinheiro. E parece que o Senado quer mais. Não há resposta pronta quando se trata de regulamentação desse tipo de mercado. A população brasileira, porém, pouco a pouco tem identificado que a proibição e opressão cegas das drogas talvez seja mais ou tão danosa quanto as próprias substâncias que se tenta reprimir.
Nesse contexto, parece contraproducente insistir na guerra às drogas, em oposição à ideia global e cada vez mais popular, de investir em novas políticas. É fato que esse avanço demanda esforços e exposições políticas. As experiências cada vez mais latentes em dezenas de estados norte-americanos, o avanço das discussões sobre a regulamentação do uso adulto no México e na Colômbia, a aprovação recente de um primeiro marco legal na Alemanha, tarde ou mais tarde, forçarão respostas legislativas sobre esses temas. Que elas sejam balizadas em um enfrentamento realista, tendo em conta a ciência, a saúde e a experiência jurídica centrada em uma regulamentação focada nos direitos humanos.
O debate inclusive ficou mais complexo com a ampliação do acesso à cannabis medicinal no Brasil. No meio de toda essa confusão, a Anvisa abriu consulta pública para reinclusão da cannabis na farmacopeia brasileira, abrindo novos caminhos para uma regulamentação mais aprofundada da cannabis medicinal e ampliação do seu acesso aos brasileiros. Olhando para o futuro, vemos que estamos muito longe de uma verdadeira solução para essa questão. No exterior já se debate o uso medicinal de outras substâncias até então proibidas e perseguidas, como o MDMA, a psilocibina e a ketamina.
Nesse contexto, insistir na guerra às drogas é o movimento mais confortável que o Senado e o governo Brasileiro podem realizar. Investir em políticas mais inteligentes demandaria esforços e exposições políticas que nossos governantes talvez não queiram enfrentar.
O tempo de uma política mais efetiva, porém, está chegando. O crescimento massivo de pesquisas científicas para o uso medicinal dessas substâncias forçará respostas governamentais acerca desses temas. Porém, até lá, viveremos nesse mundo de incertezas e contradições que é o Brasil.
Murilo Nicolau é advogado especialista em cannabis.