A guerra do Ocidente
A segunda fase do conflito ucraniano começava a contrariar as expectativas daquilo a que logo antes foi referido como “a guerra do Ocidente”. Leia a segunda parte do artigo sobre o tema
Em junho de 2022, um artigo do tenente-coronel da reserva do Exército norte-americano, Alex Vershinin, anunciava “o retorno da guerra industrial”. Trata-se de uma proposição curiosa, pois é difícil imaginar uma guerra que não seja, em alguma medida, “industrial” (no sentido lato do termo). O que essa proposição denuncia, na realidade, é que essa segunda fase do conflito ucraniano começava a contrariar as expectativas daquilo a que logo antes foi referido como “a guerra do Ocidente” ― seria possível também chamá-la de “guerra pós-moderna” ou “guerra neoliberal”, e arrolar outras das suas características, como a ênfase na narrativa e no solucionismo tecnológico[i].
Bem mais recentemente, em outro artigo para um público especializado, outro militar, o general de brigada da reserva do Exército norte-americano John Ferrari, que atua no think tank American Enterprise Institute, vaticina, de forma ainda mais expressiva, que, desde a invasão do Iraque no início da década de 1990 ― ou seja, desde a emergência do momento unipolar ―, os militares norte-americanos, presas da “ilusão do vencedor”, têm aprendido lições equivocadas sobre a guerra.
Ferrari argumenta que a miragem de que novas guerras poderiam ser vencidas com contingentes menores, dotados de munições sofisticadas e, portanto, suportados por caríssima tecnologia, destinada a selecionar alvos com precisão e destroçar o inimigo com barragens de fogo intensas, curtas e de alto impacto (a imagem de uma guerra “cirúrgica”), acabou fazendo com que as forças militares fossem dimensionadas de forma completamente equivocada e tornou impossível a produção de armas em escala.
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Primeira parte do artigo “Ucrânia: dois anos de guerra”
Em suma, a arte operacional norte-americana ― e, por extensão, da Otan ― só tem um plano A: vencer guerras singulares, cada uma de uma vez, orientadas pelo princípio do impacto, e em curto espaço de tempo. Se não der certo, as únicas soluções são: dobrar a aposta ou insistir renitentemente. À primeira vista, o plano A (e único) parece contrariar a imagem das “guerras eternas” travadas pelos Estados Unidos exatamente nas três últimas décadas. Mas elas são “eternas” em sua concepção política de intervenção destrutiva permanente. E em certa medida acabaram se tornando “eternas” porque não foram decididas, em termos militares, conforme o inicialmente esperado. Há que se acrescentar ainda que esse tipo de guerra jamais foi aplicado contra outros inimigos que não aqueles militarmente muito mais fracos, e com resultados, no mais das vezes, duvidosos.
A aparente supremacia tecnológica norte-americana, sobretudo no campo da ISR (Intelligence, Surveillance, and Reconnaissance ― exemplarmente ilustrado no filme “Inimigo do Estado”, de 1998) não havia se defrontado ainda com duas coisas: capacidades eletrônicas análogas (senão superiores) a ela (caso da Rússia); e o uso massivo de munição errante altamente manobrável e barata (drones), inovação na qual o Irã foi pioneiro, oferecendo aos seus parceiros no Oriente Médio, destacadamente o Iêmen, um novo recurso “de guerrilha”. Ambos os elementos põem sérios limites à eficácia do impacto e, portanto, ao ideal da solução rápida de um conflito bélico.
Consolidada em jargões de tipo empresarial como “revolução em assuntos militares”, fornecimento just-in-time e “operações baseadas em efeitos”, a doutrina que lhe é correlata fez com que aquele tipo de guerra apostasse pesadamente no seu diferencial tecnológico (e, por consequência, no seu custo exorbitante, só “suportável” pelo Ocidente), supondo que esse diferencial seria inigualável. Assim, ela descuidou da sua dimensão “social” elementar, qual seja: capacidade de produção e mobilização do país. A guerra russa é bem diferente disso.
Seduzida pelas aparentes maravilhas daquele diferencial tecnológico (igualmente aparente, porque a Rússia já é superior nisso), a Ucrânia, ao se subordinar à tutela da Otan, continua até hoje esperando pelo messias de alguma Wunderwaffe, como tanques Leopard ou caças F-16. O encantamento com a solução rápida (quase que uma mágica dramatúrgica hollywoodiana) foi também o que entorpeceu os generais da Otan nas suas ilusões sobre a “contraofensiva” ucraniana do verão boreal de 2023, para a qual, segundo o porta-voz do Comando do Exército dos Estados Unidos na Europa e na África, o coronel Martin O’Donnell, a Ucrânia recebeu cerca de 600 tipos de armamento e equipamentos, mais do que qualquer outro exército do mundo possui. Evidentemente, se isso tudo não estiver operativamente integrado não significa muita coisa.
Uma derrota ou uma vitória não tem a ver apenas com recursos; ela tem a ver igualmente com concepções (que a elas subordinam os recursos).
Impacto versus atrito
Ao terminar a primeira fase da guerra na Ucrânia, o Ocidente via-se embalado pelo que pareciam ser duas alternativas vencedoras: ou as capacidades russas entrariam em um processo de desgaste irremediável e progressivo, que abalaria a própria legitimidade do seu governo e desembocaria em um processo (orientado pelo Ocidente) de “mudança de regime”; ou a continuação da guerra se daria sob a mesma quadratura operacional da primeira fase, qual seja, movimento e impacto, só que agora protagonizados pela Ucrânia, com o apoio maciço da Otan. Nenhuma das duas alternativas se confirmou.
Apesar de ter investido muito da sua “narrativa”, cega e obsessivamente replicada pelo grande conglomerado da sua mídia empresarial, na primeira alternativa ― que significava fundamentalmente replicar (por um mecanicismo maníaco) a fórmula da derrota soviética no Afeganistão ―, o Ocidente viu suas ilusões desbaratadas pela resposta logística e econômica russa. Mais do que isso: agora, ao invés de se desgastar, quanto mais tarda a guerra, mais a Rússia aciona dispositivos que a tornam mais forte e minam as capacidades logísticas e econômicas do Ocidente, a ponto de a guerra na Ucrânia ter-se tornado o que se tornou: uma alavanca geopolítica.
Uma parte disso se explica pela conjuntura emergente da “ordem multipolar”. No entanto, não parece ser equivocado correlacionar a resposta russa com aquela substituição simbólica a que antes se aventou para a dinâmica do caso: o “lugar de sujeito”, inicialmente ocupado pelo governo russo, passa a ser ocupado pela nação russa. Claro, em termos objetivos, uma correlação permite construir uma hipótese. É preciso testá-la. Se confirmada, o curioso fenômeno que o fracasso da “guerra do Ocidente” (ou guerra pós-moderna, ou guerra neoliberal) faz emergir não seria outro que algo a que se poderia designar como “o retorno da nação”[ii].
Afinal, em que consistiria a recolonização ocidental da Rússia, à maneira dos anos 90, após uma eventual mudança de regime, que não na “emancipação” individualista dos consumidores russos (e sua igual ― senão pior ― miserabilização), enquanto os recursos do país tornam-se ativos de outros proprietários? Velhos espectros culturais em torno da queda da União Soviética voltam a assombrar (ou seria… a rejuvenescer?). Fora do individualismo, a arrogância do Ocidente tem muita dificuldade de reconhecer qualquer outra ética. Mas isso parece ser próprio não só do capitalismo como do próprio Ocidente de uma maneira geral ― apesar desse Ocidente ter produzido um conhecimento como a Antropologia, que é da ordem do muito particular, e que, em sua forma pós-moderna, sob a égide da mesma hegemonia anglo-americana, assumiu uma feição teórica e uma agenda nitidamente liberais.
No que respeita à segunda “alternativa vencedora” do Ocidente, as próprias ações russas na primeira fase da guerra pareciam responder (mesmo que ambiguamente) à imagem de uma guerra de impacto. Daí, talvez, a projeção equivocada da Otan. Essa projeção parecia ver-se confirmada no outono de 2022, com os avanços do novo exército ucraniano, pesadamente equipado pela Otan, na região de Kharkov (nordeste da Ucrânia), realizados sobre uma força militar russa rarefeita (como era desde o princípio) que optou, prudentemente, por se retrair, ao custo de entregar entroncamentos estratégicos como Kupyanski, Izyum e Krasny Lyman, sem deixar um único campo minado. Esse foi o momento que fez com que o governo russo superasse sua relutância e finalmente convocasse uma mobilização parcial de reservistas (300 mil), seguida pela captação sustentada de cerca de 40 mil voluntários todo mês ― e esse segundo movimento é sociologicamente tão ou mais relevante que o primeiro. De qualquer modo, foi também a partir daquela projeção que a Otan concebeu, mesmo sem dispor de poder aéreo local ― portanto, contrariando sua própria doutrina ―, a contraofensiva ucraniana do verão de 2023. E foi aí então que, por fim, consagrou-se a sua exaustão.
[i] Já no ano 2000 a famigerada RAND Corporation, “o mais influente think tank do Estado Profundo” norte-americano, em um de seus manuais doutrinários, lia o poder militar mundo afora no contexto irremediável de uma “era pós-industrial”. Isso torna legítimo perguntar a esses “pensadores” norte-americanos não apenas o que teria, no fim das contas, tornado possível algo como “o retorno da guerra industrial”, mas também o que diabos seria, de fato, o “pós-industrial”.
[ii] Uma das características mais marcantes da gestão dessa nova “guerra industrial” pela Rússia é que o país parece ter herdado do modelo socialista soviético uma concepção da qual o Ocidente liberal não é (ou já não é mais) capaz: planejamento em nível macro, qual seja, uma gerência operativa, a longo prazo, de caráter público, dos negócios estratégicos da nação, que vai além dos agentes particulares, abarcando a infraestrutura social como um todo. Nesse sentido, a Rússia expressaria um revigoramento do paradigma nacional, que vinha sendo sistematicamente depreciado pela globalização liberal.